Opinião

Ata de registro de preços: até onde vai a 'carona' permitida pela legislação?

Autores

  • é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo mestre em Administração Pública pelo IDP pós-graduado em Gerência de Cidades pela FAAP graduado em Administração de Empresas. ex-vereador entre 1997 e 2000 e de 2001 a 2004 vice-Prefeito em 2005 e 2006 e prefeito entre 2009 e 2012 e entre 2013 e 2016 de Mogi das Cruzes (SP) e ex-deputado estadual em 2007 e 2008 e ex-deputado federal entre 2019 e 2023.

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  • é bacharel em Direito pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie especializado em Direito Municipal pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) advogado e assessor técnico-procurador no TCE-SP lotado no Gabinete do conselheiro Marco Aurélio Bertaiolli.

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21 de março de 2025, 16h22

No dia 9 de março, a reportagem exibida pelo programa “Fantástico”[1], da rede Globo, revelou um possível esquema para venda de atas de registro de preços em cidades no Estado do Rio Grande do Sul e a sua adesão por outros entes da federação, dentre eles, cidades em estados longínquos do próprio Rio Grande do Sul, nas quais eram aparentemente beneficiados — ilicitamente, diga-se — empresários e gestores públicos.

Afora toda eventual questão criminal que envolve os fatos denunciados pela reportagem — que não será objeto deste artigo — tem-se outro questionamento relevante, especialmente no âmbito do direito administrativo, que capitaneia o título do presente artigo: até onde vai a “carona” permitida pela legislação à adesão da ata de registro de preços?

Primeiro, e em se tratando de um artigo de opinião, é preciso definir àqueles que não operam o direito diariamente, do que definitivamente se trata a mencionada “ata de registro de preços”.

Nos termos legais, a ata de registro de preços constitui, dentro do Sistema de Registro de Preços, um “documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual são registrados o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação, no aviso ou instrumento de contratação direta e nas propostas apresentadas”[2].

Ou seja, trata-se de documento que vincula o fornecedor de maneira prévia a se responsabilizar por fornecer, em contratações futuras, o objeto nas quantidades, qualidade e preços inicialmente previstos.

Esta ata de registro de preços é formalizada dentro de um processo licitatório, por um órgão ou entidade da administração pública, que pretende adquirir os respectivos bens ou serviços.

Como funciona a “carona”

Já o mencionado instituto da “carona”, por sua vez, permite que um órgão ou entidade não participante daquele procedimento licitatório originário a ele adira, adquirindo os bens ou serviços lá pactuados, garantindo, assim, vantagens ao caroneiro, como a agilidade nas aquisições, economia de tempo e recursos, inclusive na opção em não deflagrar certame licitatório para aquele fim, regulação de estoques, dentre tantos outras.

Em termos legais, o instituto era previsto no Decreto nº 7.982/2013, que regulamentou o Sistema de Registro de Preços previsto no artigo 15 da Lei nº 8.666/93 (a antiga lei de licitações) e foi expressamente recepcionado e consagrado pela Nova Lei de Licitações e Contratos, a Lei nº 14.133/2021.

Nesse sentido, os incisos I e II do §3º do artigo 86 da Lei 14.133/2021 preveem a possibilidade de adesão à ata de registro de preços por aqueles não participantes da licitação originária, isto é, regulamenta as caronas, nas seguintes hipóteses:

  1. os órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal podem aderir à ata de registro de preços de órgão ou entidade no âmbito federal, estadual ou distrital; trocando por miúdos, aqui excluiu-se a possibilidade de adesão às atas de registro de preços de órgãos municipais;
  2. os órgãos e entidades da administração pública municipal podem aderir à ata de registro de preços de outro órgão ou entidade gerenciadora municipal, desde que o sistema de registro de preços tenha sido formalizado mediante licitação; a dizer, permitindo a adesão à ata de registro de preços entre municípios e entidades municipais, da mesma natureza, em uma espécie, chamemos, de adesão “intermunicipal”.

Já o §8º do mesmo artigo, veda “aos órgãos e entidades da administração pública federal a adesão à ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade estadual, distrital ou municipal”, ou seja, órgãos e entidades da administração pública federal só podem aderir a atas de outros órgãos e entes federais.

Impuseram, ainda, os §§4º e 5º do artigo 86 da Lei nº 14.133/2021, limitação aos quantitativos passíveis de serem contratados, igualmente a saber:

  1. as aquisições pelo “caroneiro” não poderão exceder a 50% dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório registrados na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e para os órgãos participantes, e
  2. o quantitativo decorrente das adesões pelos “caroneiros” não poderá exceder, na totalidade, ao dobro do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes originários, independentemente do número de órgãos não participantes que aderirem à ata.

O problema da “carona”

Mas o leitor pode se perguntar: ora, diante da imposição de restrições entre os órgãos e entidades e das imposições de limites à adesão, então qual o grande problema envolvendo o carona?

Spacca

O primeiro deles consiste em não ser possível conceber que uma mesma ata de registro de preços possa corresponder, precisamente, às necessidades entre órgãos e entidades do Oiapoque (AP) ao Chuí (RS).

Dito de outro modo, não é crível que uma mesma aquisição, por exemplo, de livros, tenha absoluta identidade de condições apresentadas a um município no extremo sul do Brasil e outro de outro estado da federação.

A questão é lógica: a distância entre eles, os possíveis fornecedores, os preços de logística, as condições de entrega, o mercado em si, são absolutamente diferentes, o que, a toda evidência, impacta no preço ofertado pelos fornecedores àquele produto.

Críticos poderiam dizer: mas isso já acontece em plataformas online! Sim, de fato, acontece, mas não nos esquecemos de que nas plataformas online só os grandes fornecedores apresentam tais condições e disputam entre si.

Igualdade de condições dos licitantes

Em compras públicas, é preciso permitir as mesmas condições de participação a todos os licitantes, especialmente às microempresas e empresas de pequeno porte, as quais, nessa conjuntura, seriam certamente alijadas da disputa.

O segundo problema consiste na própria aferição de legalidade do procedimento licitatório: ao Órgão do controle externo ao qual está submetido o “caroneiro”, isto é, o respectivo Tribunal de Contas, seria subtraída a possibilidade de escrutinar a legalidade do certame.

Exemplo prático: uma licitação na modalidade do Sistema de Registro de Preços promovida por um município do Rio Grande do Sul seria avaliada, apenas e tão somente, pelo Tribunal de Contas daquele estado, ainda que à respectiva ata de registro de preços aderisse um município do Estado de São Paulo.

Vejam, ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo seria suprimida a possibilidade de verificar a legalidade do instrumento que deu origem à respectiva ata, o que igualmente não se pode conceber, respeitosamente.

Incompatibilidade mercadológica

Justamente por isso, o que se defende no presente artigo, é a impossibilidade do uso indiscriminado da figura do carona nas atas de registros de preços, isto, repita-se, por incompatibilidade mercadológica e pela própria e necessária submissão do ajuste originário ao órgão de controle externo ao qual esteja submetido o “caroneiro”.

O tema é caro e vale a tautologia: faz todo o sentido permitir que municípios limítrofes, próximos, dentro de um mesmo ente federativo, por exemplo, partilhem as mesmas necessidades e peguem carona nas atas de registro de preços uns dos outros. O que não se pode admitir, sob pena de se distorcer e banalizar o instituto, submetendo a toda espécie de ilegalidade, é o uso indiscriminado do carona entre municípios em situações, Estados e realidades completamente distintas.

Isto, repita-se, não coaduna — ou ao menos não parece conformar — com a intenção lançada pelo legislador ao prever a possibilidade da carona.

Assim, a carona já é um fato e a legislação permite, mas o instituto precisa ter um limite até onde ir e este, no nosso modo de ver, deveria ser restrito à possibilidade de adesão à ata por órgãos e entidades da administração pública submetidos ao mesmo Órgão de Controle Externo, do contrário, correm-se sérios riscos de se fragilizar a legalidade das contratações.

 


[1] Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2025/03/09/propina-em-atas-de-registro-livros-viram-caso-de-policia-em-porto-alegre.ghtml, acessado em 13 de março de 2025.

[2] Art. 6º , inc. XLVI , da Lei nº 14.133/2021.

Autores

  • é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, mestre em Administração Pública pelo IDP, pós-graduado em Gerência de Cidades pela FAAP, graduado em Administração de Empresas. ex-vereador, entre 1997 e 2000 e de 2001 a 2004, vice-Prefeito, em 2005 e 2006, e prefeito, entre 2009 e 2012 e entre 2013 e 2016, de Mogi das Cruzes (SP), e ex-deputado estadual, em 2007 e 2008, e ex-deputado federal, entre 2019 e 2023.

  • é bacharel em Direito pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especializado em Direito Municipal pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), advogado e assessor técnico-procurador no TCE-SP, lotado no Gabinete do conselheiro Marco Aurélio Bertaiolli.

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