Opinião

Antagonismo entre o foro privilegiado e o exercício da ampla defesa

18 de março de 2025, 6h34

A Constituição da República prevê que certas autoridades, no exercício de cargos públicos específicos, devem ser processadas e julgadas por tribunais previamente estabelecidos. Trata-se do foro privilegiado por prerrogativa de função, uma garantia prevista na Constituição.

Agência Brasil

Essa prerrogativa tem como objetivo assegurar o pleno exercício do cargo ou mandato, e não proteger pessoalmente quem o ocupa. O foro privilegiado confere a determinadas autoridades o direito de serem julgadas por tribunais superiores, diferentemente da maioria dos cidadãos, que são processados na primeira instância do Judiciário.

No Brasil, essa prática é uma herança deixada pela política adotada no tempo em que o país era uma colônia portuguesa, mas que não sobreviveu à Constituição de 1824, que já dispunha de cláusulas isonômicas das pessoas perante a lei. A Constituição Política do Império do Brasil, em verdade, aboliu expressamente todos os privilégios que não fossem essencial e intimamente ligados aos cargos por utilidade pública (artigo 179, XVI). Excepcionou à regra apenas as causas que, por sua natureza, pertencessem a juízos particulares, na conformidade das leis (artigo 179, XVII).

A vedação à prerrogativa de foro permaneceu expressa na Constituição Republicana de 1891 [1], na Carta Política de 1934 [2] e na de 1946 [3]. No regime militar de 1964 a proibição também foi mantida, como se inferia no artigo 150, §15, da Constituição de 1967: “A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção”. O texto permaneceu inalterado pela Emenda Constitucional 1 de 1969.

No entanto, com a redemocratização, a Constituição da República de 1988 não apenas incorporou o foro privilegiado como também determinou quais autoridades, em razão de seus cargos ou funções públicas, seriam contempladas com essa prerrogativa especial vinculada às suas atribuições funcionais. A partir desse marco, o sistema constitucional brasileiro passou a reconhecer apenas privilégios processuais vinculados estritamente ao exercício da atividade funcional, rejeitando qualquer benefício de natureza meramente pessoal.

Embora a justificativa para o foro privilegiado seja garantir o funcionamento das instituições, ele acaba por restringir um direito constitucional essencial: a ampla defesa. Isso ocorre porque os julgamentos realizados diretamente por tribunais superiores excluem a possibilidade de revisão da decisão por uma instância superior, contrariando o princípio do duplo grau de jurisdição.

Esse princípio fundamental do direito processual garante às partes de um processo judicial o direito de ter sua causa analisada por duas instâncias diferentes do sistema judiciário. Isso significa que, após a decisão de primeira instância, a parte pode recorrer a um tribunal superior para que o julgamento seja reexaminado, permitindo a correção de eventuais erros e assegurando maior confiabilidade e justiça às decisões.

Constituição e convenção

Nessa senda, ainda que Constituição de 1988 não mencione expressamente o “duplo grau de jurisdição”, ela consagra esse princípio em diversas disposições. O artigo 5º, inciso LV, assegura que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, o que implica o direito de recorrer de decisões judiciais.

Além disso, a própria estrutura do Poder Judiciário (artigo 92, da Carta Magna) pressupõe a existência de instâncias revisoras, ao definir as competências dos tribunais, seja para julgar ações originárias, seja para processar recursos. Na mesma toada, o princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV) também reforça essa garantia, ao assegurar que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Sobreleva ressaltar que, além do ordenamento constitucional, a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, trata do duplo grau de jurisdição de forma específica. O artigo 8.2.h garante a qualquer pessoa condenada por um delito o direito de recorrer da sentença para um juiz ou tribunal superior. Essa previsão, além de assegurar que as decisões judiciais podem ser revisadas, fortalece a segurança jurídica e evita arbitrariedades.

A inclusão desse direito na referida convenção demonstra o compromisso dos Estados signatários com a proteção dos direitos humanos e com a garantia de um sistema judicial justo e eficaz, notadamente porque a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem reafirmado que o duplo grau de jurisdição se aplica a todos os processos penais.

Direito Comparado

No entanto, a existência do foro privilegiado no texto constitucional brasileiro representa infração direta à convenção e, por conseguinte, violação ao compromisso assumido pelo país ao aderir ao pacto. Isso porque, de acordo com o texto constitucional, quem é processado e julgado pelo Supremo Tribunal Federal não tem direito à apelação. A decisão daquela corte representa um veredito definitivo, contra a qual não cabe recurso que permita revolver a matéria fática de defesa. A irrecorribilidade do julgado, além de configurar monopólio de instância única, é antagônico ao regime democrático, que visa promover a justiça, a inclusão e a igualdade de oportunidades.

Spacca

O julgamento de autoridades diretamente por tribunais superiores compromete não apenas a ampla defesa, mas também o funcionamento do próprio Poder Judiciário. Nesse aspecto, como apontou o ministro Roberto Barroso no julgamento da AP 938 QO, em 2018, “o modelo brasileiro de foro privilegiado não encontra paralelo no Direito Comparado. Países como Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos e Canadá sequer preveem essa possibilidade, enquanto na França e em Portugal o foro se restringe ao presidente da República e, em alguns casos, aos ministros de Estado”.

O e. ministro foi muito feliz quando afirmou que “fato é que não é difícil de demonstrar que, com essa quantidade de pessoas e com essa extensão, o foro se tornou penosamente disfuncional na experiência brasileira. E as disfuncionalidades são múltiplas”. Afirmou, também, que “o Supremo se afasta da sua missão primordial: Guardião da Constituição e de equacionamento das grandes questões nacionais. Funcionar como tribunal criminal de primeira instância, como regra geral, é papel de juiz de primeiro grau e não do Supremo Tribunal Federal”. Arrematou compartilhando as seguintes reflexões: “[…] o sistema é ruim; o sistema funciona mau; o sistema traz desprestígio para o Supremo; o sistema traz impunidade”.

Ampliação

Na mesma decisão, o STF reconheceu a disfuncionalidade do sistema e estabeleceu novos parâmetros para a prerrogativa de foro: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”.

Apesar dessa limitação, recentemente o Supremo ampliou o foro privilegiado para ex-autoridades, mesmo após o fim de seus mandatos. Essa mudança gerou insegurança jurídica e pode levar ao deslocamento de processos para instâncias superiores, projetando essa nova tramitação no risco da morosidade resultar em prescrição, especialmente em casos de ex-prefeitos, atualmente, denunciados e processados na primeira instância.

A realidade é que aqueles que possuem foro privilegiado têm o direito de defesa restringido, pois suas condenações não podem ser revisadas por outra instância. Enquanto cidadãos comuns podem recorrer a tribunais superiores, autoridades julgadas diretamente pelos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais não têm direito à apelação ao Superior Tribunal de Justiça, que se limita a discutir questões de direito e não reexamina provas.

Assim, enquanto um cidadão comum pode ter seu caso analisado em até quatro instâncias (juízo de primeiro grau, Tribunal de Justiça ou TRF, STJ e STF), autoridades com foro privilegiado são julgadas diretamente por tribunais superiores, sem direito a um segundo julgamento da matéria fática. Essa distorção viola o princípio da igualdade e compromete a garantia da ampla defesa.

É fácil concluir, portanto, que o foro privilegiado, ao impedir a revisão das decisões condenatórias por uma instância superior, confronta-se com o princípio constitucional da ampla defesa e com compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O direito à apelação não pode ser negado a qualquer cidadão, independentemente do cargo que ocupa ou tenha ocupado.

Se a Constituição vigente afirma que todos são iguais perante a lei, esse princípio deve ser respeitado na prática, garantindo a todos, sem exceção, o direito ao duplo grau de jurisdição e à plena defesa judicial.

 


[1] Art.72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:

§23. Á excepção das causas, que por sua natureza, pertencem a juizos especiaes, não haverá fóro privilegiado.

[2] Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistencia, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:

25) Não haverá fôro privilegiado nem tribunaes de excepção; admittem-se, porém, juizos especiaes em razão da natureza das causas.

[3]  Art 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

§26 – Não haverá foro privilegiado nem Juízes e Tribunais de exceção.

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