opinião

O fim do 'foro privilegiado' é republicano?

Autor

12 de janeiro de 2021, 18h38

Embora o tema tenha saído um pouco das pautas da mídia, durante algum tempo vimos jornalistas e comentaristas das grandes emissoras televisivas destilarem críticas e mais críticas contra o tal "foro privilegiado". Considerando que esse tema retornará com força às pautas jornalísticas em algum momento após a pandemia, acredito que seja crucial analisá-lo.

Esclareço que emprego as aspas no "foro privilegiado" pois esse instituto não é um "privilégio" e não é tecnicamente denominado dessa forma. O correto seria foro especial por prerrogativa de função. "Privilégio" remeteria a um horizonte não republicano, uma regalia dos nobres, o que vai totalmente de encontro à narrativa que se tenta construir. Todavia, como esse termo acabou se consagrando, irei me referir ao tal foro a partir de agora de forma coloquial e sem as aspas. Mas que a ressalva fique registrada.

Se fizermos um apanhado dos principais argumentos contrários ao foro privilegiado veiculados, teríamos a seguinte síntese: 1) trata-se de um instituto que ofende o princípio da isonomia, já que o "cidadão comum" — ou, alguns diriam, "cidadão de bem", mas não vamos caminhar por aqui — não teria acesso a ele; 2) trata-se de um meio de os políticos fugirem da "Justiça", arrastando os processos indefinidamente até que seus crimes prescrevam. No entanto, não são feitos questionamentos sobre a origem desse instituto ou sobre quais teriam sido os elementos históricos que o tornaram necessário. Por isso, comecemos com um pouco do passado.

Imagino que muitos já devam ter ouvido o termo "coronelismo", associando-o, de forma quase imediata, às práticas eleitorais do "voto de cabresto", do aparelhamento da máquina local e, principalmente, de uma influência política ligada à terra. Não obstante, esse fenômeno, que remete sobretudo à Velha República (embora se estenda por toda a história republicana brasileira), está na raiz de expressões como "para os amigos tudo, para o inimigo, a lei" ou "juiz nosso", "delegado nosso". Além da influência eleitoral, os tais coronéis também tinham ao seu lado as instituições estaduais e federais, autoridade adquirida através de negociações de votos locais com políticos dos outros níveis federativos.

E o foro privilegiado? A esta altura o leitor já deve ter compreendido que não era incomum que as instituições de Estado fossem empregadas em favor dos interesses dos coronéis. Prisões de inimigos políticos eram corriqueiras, realizadas pelas polícias e judicialmente chanceladas. Fraudes na contagem dos votos impressos eram legitimadas pelas instâncias locais (vale aqui um parêntese: a criação da Justiça Eleitoral e, mais recentemente, o voto pela urna eletrônica tornaram o nosso sistema extremamente seguro. Aqueles que levantam suspeitas de fraudes parecem querer o retorno a um sistema que era, verdadeiramente, fraudável. O motivo é bastante óbvio). O foro privilegiado, com isso, nasceu como uma forma de levar a justiça de agentes políticos para julgadores que estariam longe da influência dos líderes locais e, com isso, trazer alguma imparcialidade.

Alguém poderia argumentar que atualmente não há mais o risco de que instituições de Estado sejam utilizadas para influenciais processos eleitorais. Esse alguém diria que as autoridades estaduais e federais em nível local não estão mais suscetíveis aos mesmos jogos coronelistas da Velha República. A esse alguém eu lembraria alguns nomes: Beto Richa, Marconi Perillo, Jaques Wagner. O que esses nomes têm em comum? São três políticos que, na condição de ex-governadores e em campanha para o Senado, foram submetidos a operações policiais midiáticas às vésperas da eleição de 2018. Dois deles foram, inclusive, presos cautelarmente. Dois deles perderam a eleição. Coincidência ou não, os dois derrotados foram os mesmos que sofreram as prisões.

Poderíamos, ainda, lembrar das inúmeras operações que ocorreram dentro das universidades, das determinações judiciais de censuras a cursos e aulas ocorridas nesse contexto. Poderíamos citar, claro, a retirada de sigilo de uma delação premiada promovida por um "juiz imparcial", juiz este que viria a ser ministro do governo que a sua decisão ajudou a eleger. Poderíamos falar de uma juíza que, na sede de condenar um político, copiou trechos inteiros da sentença do tal "juiz imparcial", sequer se dando ao trabalho de parafrasear — o que, convenhamos, um aluno do ensino fundamental faria ao copiar um trabalho da internet. Mas não lembrarei desses casos (frase irônica). Apenas os menciono para mostrar que a "aplicação da lei apenas aos inimigos" não ficou na Velha República. Apenas os menciono para reafirmar a necessidade de existir um tribunal que esteja afastado das influências políticas, que proporcione um mínimo de imparcialidade àqueles que se dispõem à vida pública.

Quanto aos três argumentos levantados pela mídia contrariamente ao foro privilegiado, vamos ao primeiro deles, segundo o qual se trata de um instituto que ofende o princípio da isonomia. Ora, há mais de dois milênios um grego já dizia que a igualdade é dar a cada um o que lhe é devido. Poderíamos interpretar esta afirmação inferindo que indivíduos em situação de igualdade devem ser tratados igualmente. Não obstante, indivíduos em situação de desigualdade devem ser tratados desigualmente. Com isso, caberia o questionamento: alguém que tem em suas mãos decisões sobre o futuro da sociedade deve se sujeitar ao mesmo regime de responsabilidade que todos os demais? A resposta a essa pergunta está na própria noção de República (e, evidentemente, no texto constitucional). Uma vez que determinados agentes se expõem a um escrutínio público e a caminhar pelo campo instável do poder, eles devem ser responsabilizados por seus atos, mas não a partir de uma noção privada de política.

Quanto ao argumento de que o foro privilegiado seria um meio de os políticos fugirem da "Justiça", arrastando os processos indefinidamente até que seus crimes prescrevam, devemos ter ainda mais cuidado. Se analisarmos o que o constituinte estabeleceu, veremos que os parlamentares federais serão processados criminalmente no STF. E se eles não fossem processados no STF? Como funcionaria a sua persecução? Primeiramente, sabe-se que esses indivíduos têm acesso aos melhores advogados. Dito isso, esses indivíduos seriam denunciados a um juiz de Direito na primeira instância. Recebida a denúncia, impetrariam um HC para o trancamento da ação penal ao respectivo tribunal, que seja julgado por um colegiado. Esse HC pode ser levado até mesmo às instâncias extraordinárias, julgado, em última instância, pelo STF. Acabou? Evidente que não.

Mantida a decisão que recebeu a denúncia, haveria a apresentação da defesa, a instrução probatória (testemunhos, perícias, acareações, depoimentos). Esse desenrolar pode demorar meses ou anos. Ao final, caso seja condenado pelo juiz, interporá o recurso de apelação, levando o caso, novamente, ao tribunal local. Alguns meses depois, caso o tribunal mantenha a condenação, os melhores advogados levariam o caso para o STJ, que, se mantivesse também a condenação, ocasionaria em um novo recurso ao STF. E nesse caminho estou desconsiderando eventuais novos HCs, arguições de nulidade (que poderia levar a repetições de atos e novos atrasos), embargos de declaração, arguições de suspeição e impedimento, embargos de divergência, correições parciais. Apesar de tido, o julgamento desembocaria no STF. Ora, não seria mais inteligente atalhar todo o caminho protelatório e submeter o agente político diretamente ao julgamento no STF? Não seria mais rápido? Imagino que aqueles que levantam o argumento de que o foro privilegiado cria embaraços à Justiça não conhece o sistema recursal.

Diante disso, concluo com a questão que abre esta breve reflexão: o fim do "foro privilegiado" é, realmente, republicano?

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!