Opinião

Declaração Universal dos Direitos da Humanidade: mudanças climáticas e chamado mudança

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14 de maio de 2025, 6h03

Paradoxo na civilização: o estado de emergência climática

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Homem passando diante de termômetro de rua indicando temperatura de 40 graus

O mundo atual foi tomado pela mobilização contínua dos termos alarme, urgência, exceção, emergência. Este conjunto de termos é seguido por um outro conjunto de termos: perigo, risco, extremo, epidemia, calamidade, enchente, catástrofe. Aparentemente, está-se diante de um grupo de palavras em circulação no discurso cotidiano. Mas, e o que vem a seguir? Que consequências delas se pode extrair?

Ora, um outro conjunto de palavras: fome, mortes, migrações forçadas, refugiados climáticos. Enfim, diante deste dicionário de termos (da crise climática) e de uma gramática do tempo (da história do presente), forma-se a linguagem e a equação dos de nossos dias. Está-se diante de um conjunto de fatores que esgotam as possibilidades de saída, diante do ponto-de-não-retorno em que nos encontramos. Isto já deveria ter sido suficiente para criar o alarme e, para além dele, tomarem-se as medidas necessárias. O tema tem chamado a atenção, pelas situações extremas enfrentadas pela população e, em artigo recente, o filósofo Vladimir Safatle defendeu a ideia de se decretar um Estado de emergência climática [1].

A ameaça que surge no horizonte (e, não se trata mais de um horizonte distante, mas do horizonte do agora) tem a característica de fazer soar a sirene, na medida em que torna a exceção (catástrofe como acontecimento que escapa ao ordinário) algo duradouro (permanente, constante) [2] e, exatamente por isso, desastroso à capacidade humana de reorganização. Aliás, a qualidade dos eventos excepcionais é exatamente esta, qual seja, o efeito de surpresa provocado pelo caráter não controlado, não previsível e de consequências arriscadas. De certa forma, as “trombetas escatológicas” já soaram e a humanidade não escutou, tendo-se passado a época dos paliativos e medidas de longo prazo. A questão já está posta para o presente (e nem concerne mais, apenas, às futuras gerações).

É por isso que o etnólogo francês Bruno Latour, em sua obra Diante de Gaia, nos convoca a aprender a ouvir, pois o apelo não é desmedido e nem deve ser em vão [3]. O fato é que, debruçados sobre o tempo presente, deveríamos reconhecer que algo deu errado em nossa concepção “civilizatória“. Nada disso é novidade, pois o ambientalismo já vem chamando a atenção para estes riscos desde os anos 1970. A invocação constante do termo “Antropoceno” designa um conjunto de impactos humanos sobre o planeta que não devem ser negligenciados para uma análise mais detida da questão [4]. Em poucas palavras, a transição da ‘civilização do carbono’ a uma ‘civilização de economia verde’ depende de uma severa reversão do estado avançado em que se encontra a degradação ambiental em todo o mundo.

Esgotamento da natureza e os riscos à humanidade

A questão chama a atenção para o papel da reflexão filosófica em tempos de eventos extremos. A equação arriscada do presente aconselha a uma revisão crítica, profunda e consciente — para a qual, através da ideia de sustentabilidade, o filósofo Leonardo Boff já vem chamando há tempos [5] — de qual é, e de qual tem sido, a nossa relação com a natureza, de qual lugar lhe destinamos, de como a abordamos e de que forma temos retribuído à generosidade com a qual ela nos abrigou durante séculos. Se a tudo que contorna o homem se deve chamar (simplesmente) de coisa, então, tudo o que circunda o homem foi tornado (à imagem e semelhança do mercado) objeto, e é exatamente esta a visão de mundo a ser alterada. Impõe-se pensar que humanos e não-humanos formam uma unidade de vida, onde se um sofre, os demais também sofrem [6].

Mudanças climáticas e o chamado à mudança

As mudanças climáticas vieram para ficar e, com seus impactos, elas alteram tudo. Elas são capazes de colapsar a ordem estabelecida. De fato, não é mais possível continuar a insistir no mesmo modelo. A lógica continuísta do sistema econômico insiste num modelo falido e desastroso, na medida em que exploratório e predatório. Os limites planetários já foram rompidos, e, agora, urge reconhecer que a árdua tarefa de reparação, proteção e cuidado demandará esforços significativos para produzir efeitos concretos (de curto, médio e longo prazo).

Assim, as mudanças climáticas contêm em si uma mensagem, qual seja, o chamado à mudança. O chamado à mudança envolve: 1) mudança de consciência; 2) mudança de concepção; 3) mudança de atitude; 4) mudança de políticas; v.) mudanças econômicas. Nestes termos, a mudança hoje não é uma questão de posição de mundo, ideologia política, ou ainda, de opção moral. Antes, ela deve ser capaz de conclamar a todo(a)s por algo de interesse comum. Sem mudança não há futuro possível! A proteção da natureza é hoje a (própria) proteção do homem, na forma da proteção às presentes gerações e, também, às futuras gerações [7].

Palavra de ordem do momento: desaquecimento ou barbárie

O imperativo categórico kantiano de nosso tempo não é outro, senão: “Age de modo a preservar o meio ambiente para garantir a sobrevida planetária da humanidade!”. Trata-se de um imperativo que relaciona o eu ao outro, inequivocamente. É isto, ou barbárie. Mais ainda, ao acompanhar o pensamento da filósofa francesa Corine Pelluchon, é para dizer que a palavra de ordem destes tempos é: “Reparemos o mundo![8].

Isto significa que não é necessário aguardar o retorno a um estado de natureza hobbesiano — o que implicaria a guerra de todos contra todos (homo homini lupus) — para ter consciente que diante de recursos escassos e condições limítrofes de sobrevivência, a guerra generalizada seria o tônus da coexistência planetária.

A escassez de alimentos, os prejuízos na agricultura, o desaparecimento de espécies e a perda da subsistência para comunidades tradicionais implicam num risco exasperado para a humanidade. Sem nenhum exagero, os dados da Acnur apontam que dos 120 milhões de deslocados forçados do mundo, ¾ são de pessoas que vivem em países atingidos por fortes consequências decorrentes das mudanças climáticas [9].

Ações globais, esforços concertados, mudanças estruturais e políticas públicas são necessárias, devem estar integradas e são de implementação imediata, para que se possa (ao menos) minorar os efeitos daquilo que já está em curso no mundo. De toda forma, torna-se urgente que um paradigma normativo seja votado pela ONU para representar o locus simbólico desta nova fronteira de luta pelo direito e, também, para apontar no sentido de um consenso global sobrea temática, manifestação de uma baliza normativa comum a todos os povos.

Teor normativo da Declaração e a economia verde

Atualmente, o paradigma normativo que pode servir de baliza normativa comum é a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade (Déclaration Universelle des Droits de l´Humanité – Paris, 2015). No dia 13 de maio de 2025 (Genebra – Palácio das Nações Unidas), celebrou-se a data em que a Declaração completou 10 anos de existência (2015-2025), tendo sido confeccionada por ocasião da COP 2015, realizada em Paris (França).

O evento celebrativo tem sentido ambíguo, ao menos do ponto de vista jurídico. E isso porque, de um lado, enaltece a sua existência como intenção normativa, mas, de outro lado, cria um ambiente de pressão por sua adoção pela ONU, pois passados 10 anos, luta-se (ainda) por sua transformação num documento que confere complementação e atualidade à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), agora sob os desafios diretos das mudanças climáticas.

Em sua tessitura enunciativa, a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade está composta por quatro princípios, seis direitos e cinco deveres. Ela inaugura uma visão integrativa entre humanos e não-humanos, em seu artigo 5º [10]. A sua proposta geral está voltada para o estímulo a uma economia verde, de baixo carbono e que valorize a preservação ambiental, o replantio e a conservação dos ecossistemas da biosfera, conectando os interesses das presentes e futuras gerações, bem como as diversas formas de vida que coexistem no planeta. Em verdade, ela é um convite à renovação da esperança em torno da preservação da vida e da integração das diversas formas de vida num único espírito de fraternidade universal. O nosso dever primeiro é o de confirmar a sua importância e suportar a sua aprovação como sendo o documento jurídico símbolo de nossa era.

 


Bibliografia

ACNUR. Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflitos e deslocamento forçado. Novembro, 2024. Disponível em https://www.acnur.org/br/media/sem-escapatoria-na-linha-de-frente-das-mudancas-climaticas-conflitos-e-deslocamento-forcado. Consultado em 28.04.2025.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

ANGUS, Ian. Enfrentando o antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre. Trad. Glenda Vincenzi e Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2023.

BOFF, Leonardo. Sustentabilidade. Petrópolis: Vozes, 2012.

COOKE, Maeve, Reenvisioning freedom : human agency in times of ecological disaster, in Constellations, London, Sage, 30, 2023, p. 119-127.

GORDILHO, Heron José de Santana. Direito ambiental pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2009.

KRENAK, Ailton, Ecologia política, in Ethnoscientia, v. 3, n. 2, 2018, ps. 01-02. Disponível em https://periodicos.ufpa.br/index.php/ethnoscientia/article/viewFile/10225/Krenak%202018. Acesso em 01.04.2025.

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Trad. Maryalua Meyer. São Paulo: UBU, 2020.

PELLUCHON, Corine. Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza. Trad. Felipe Rodolfo de Carvalho. Porto Alegre: Editora Zouk, 2024.

SAFATLE, Vladimir. Decretar o estado de emergência climática, in Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 01 de fevereiro de 2025. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/02/decretar-o-estado-de-emergencia-climatica.shtml. Acesso em 27/03/2025.

 

 


[1] Safatle, Decretar o estado de emergência climática, in Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 01.02.2025.

[2] Cf. Agamben, Estado de exceção, 2004, p. 19.

[3] “As advertências de Cassandra só serão levadas em conta se dirigidas a pessoas que têm ouvido para as trombetas escatológicas” (Latour, Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, 2020, p. 248).

[4] A respeito, consulte-se Angus, Enfrentando o antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre, 2023.

[5] “Ela é fruto de um processo de educação pela qual o ser humano redefine o feixe de relações que entretém com o universo, com a Terra, com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo dentro dos critérios assinalados de equilíbrio ecológico…” (Boff, Sustentabilidade, 2012, p. 149).

[6] “Da mesma forma, a ecologia, a justiça social e a causa animal estão ligadas, porque elas pressupõem igualmente refletir sobre os limites planetários e sobre o lugar que conferimos, no seio da nossa existência, aos outros, humanos e não humanos” (Pelluchon, Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza, 2024, p. 39).

[7] Cf. Gordilho, Direito ambiental pós-moderno, 2009, p. 85 e seguintes.

[8] “Pois a hora da reparação é aquela do evitamento do pior e da superação do caos” (Pelluchon, Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza, 2024, p. 20).

[9] A este respeito, consulte-se o Relatório da Acnur. Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflitos e deslocamento forçado. Novembro, 2024.

[10] Art. 5º: “L’humanité, comme l’ensemble des espèces vivantes, a droit de vivre dans un environnement sain et écologiquement soutenable”; “A humanidade e todas as espécies vivas têm o direito de viver num ambiente saudável e ecologicamente sustentável”.

Autores

  • é professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), embaixador da Déclaration Universelle des Droits de l´Humanité (2025) e pesquisador 1-B do CNPq.

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