Mover e sustentabilidade automotiva: Decreto 12.435/2025 e desafios da descarbonização
25 de abril de 2025, 19h34
O Programa Mobilidade Verde e Inovação (Programa Mover) foi regulamentado pelo governo federal no dia 15 de abril por meio do Decreto 12.435/2025, e é certamente a maior novidade em matéria de sustentabilidade automotiva dos últimos tempos neste país. Essa norma disciplinou a Lei 14.902/2024, que instituiu esse programa voltado à modernização da indústria automotiva com enfoque em sustentabilidade, inovação tecnológica e transição energética.

De acordo com o § 1º do artigo 1º da lei citada, o intuito do Mover é “de apoiar o desenvolvimento tecnológico, a competitividade global, a integração nas cadeias globais de valor, a descarbonização, o alinhamento a uma economia de baixo carbono no ecossistema produtivo e inovador de automóveis, de caminhões e de seus implementos rodoviários, de ônibus, de chassis com motor, de máquinas autopropulsadas e de autopeças”.
O decreto estabelece medidas, diretrizes, metas e sanções administrativas para o caso de descumprimento, principalmente no âmbito da comercialização e importação de veículos no país, em consonância com os compromissos internacionais sobre sustentabilidade e transição energética.
O programa requer uma governança complexa e interdisciplinar que envolve diferentes órgãos e agendas da esfera federal. Nesse diapasão, compete ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) a definição dos termos e prazos para a comprovação dos compromissos e a emissão do ato de registro correspondente, à Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), vinculada ao Ministério dos Transportes, caberá a emissão do Certificado de Adequação à Legislação de Trânsito (CAT) e a atribuição do código de marca-modelo-versão do veículo no Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam), e o Ibama será o órgão responsável pela emissão da Licença para Uso da Configuração de Veículo ou Motor (LCVM).
O artigo 2º da Lei 14.902/2024 dispõe que o Poder Executivo estabelecerá requisitos obrigatórios para a comercialização de veículos novos produzidos no país e para a importação de veículos classificados sob os códigos 87.01 a 87.05 da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (Tipi), aprovada pelo Decreto 11.158/2022. Esses requisitos estão relacionados à eficiência energética veicular (ciclo do tanque à roda) e à emissão de dióxido de carbono (eficiência energético-ambiental) no ciclo do poço à roda.
Segundo o anexo III do decreto, o ciclo do tanque à roda é a “análise de ciclo de vida que considera as emissões de gases de efeito estufa associadas à operação de veículos leves e pesados dentro de um ciclo de uso padronizado”, ao passo que o ciclo do poço à roda é o “ciclo de vida que considera as emissões de gases de efeito estufa que se originam desde a fase de extração de recursos naturais, passando pela produção e pela distribuição da fonte energética, até seu uso em veículos leves e pesados de passageiros e comerciais”. Isso significa que o Mover deve envolver toda a cadeia produtiva de energia utilizada na mobilidade, fato que por si só demonstra a abrangência do programa.
Eixos, instrumentos e sanções
Trata-se, provavelmente, da principal aposta do país rumo à modernização da indústria automotiva nacional, tendo foco em sustentabilidade, inovação tecnológica e transição energética. O programa está estruturado em cinco eixos fundamentais, que são: 1) a descarbonização, 2) a inovação, 3) a competitividade industrial, 4) a reindustrialização e 5) desenvolvimento regional.
Entre os seus instrumentos, é possível destacar: 1) o incentivo à pesquisa e à produção de tecnologias sustentáveis, 2) a concessão de benefícios fiscais e linhas de crédito para empresas comprometidas com a economia de baixo carbono, e 3) o fortalecimento das cadeias produtivas nacionais, sendo evidente a ênfase nos chamados instrumentos econômicos de política ambiental [1].
O decreto estabelece duas sanções administrativas principais: a primeiro diz respeito ao cancelamento do ato de registro de compromissos, ao passo que a segunda se refere à aplicação de multa compensatória pelo não cumprimento das metas de eficiência energética. Tais penalidades estão vinculadas às obrigações previstas no próprio decreto, especialmente no artigo 1º, que impõe requisitos obrigatórios para a comercialização e importação de veículos novos no Brasil, de caráter obrigatório a partir de 1º de junho de 2025:
“Art. 1º A partir de 1º de junho de 2025, a comercialização de veículos novos produzidos no País e a importação de veículos novos classificados nos códigos da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – Tipi, aprovada pelo Decreto nº 11.158, de 29 de julho de 2022, relacionados no Anexo I, ficarão condicionadas ao compromisso de o fabricante ou o importador atender aos seguintes requisitos obrigatórios:
I – para os veículos classificados nos códigos da Tipi relacionados no Anexo I, seção A:
a) atingimento de níveis mínimos de eficiência energética veicular no ciclo do tanque à roda e emissão de dióxido de carbono equivalente (eficiência energético-ambiental) no ciclo do poço à roda, em relação aos produtos comercializados no País, nos termos do disposto no Anexo II, seção B;
b) atingimento de níveis de reciclabilidade veicular, em relação aos produtos comercializados no País, nos termos do disposto no Anexo III, seção B.1;
c) adesão a programas de rotulagem veicular, definidos pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e estabelecidos pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia – Inmetro, pela Secretaria Nacional de Trânsito do Ministério dos Transportes e pela Secretaria de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, com eventual participação de outras entidades públicas, referentes à eficiência energética, à segurança e ao conteúdo e à origem de componentes, abrangendo 100% (cem por cento) dos modelos, produzidos no País ou importados, a serem etiquetados no âmbito dos referidos programas; e
d) atingimento de níveis de desempenho estrutural e tecnologias assistivas à direção em relação aos produtos comercializados no País, nos termos do disposto no Anexo IV, seção A; e
II – para os veículos classificados nos códigos da Tipi relacionados no Anexo I, seção B:
a) assunção do compromisso de apresentação de relatório dos resultados de eficiência energética veicular ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, nos termos do disposto no Anexo II, seção C;
b) atingimento de níveis de reciclabilidade veicular, em relação aos produtos comercializados no País, nos termos do disposto no Anexo III, seção B.2;
c) adesão a programas de rotulagem veicular, definidos pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e estabelecidos pelo Inmetro, pela Secretaria Nacional de Trânsito do Ministério dos Transportes e pela Secretaria de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, com eventual participação de outras entidades públicas, referentes à eficiência energética, à segurança e ao conteúdo e à origem de componentes, abrangendo 100% (cem por cento) dos modelos, produzidos no País ou importados, a serem etiquetados no âmbito dos referidos programas; e
d) atingimento de níveis de desempenho estrutural e tecnologias assistivas à direção em relação aos produtos comercializados no País, nos termos do disposto no Anexo IV, seção B (destaque nossos).”
Olhar holístico e inovador
Outra meta de cunho ambiental prevista é para os veículos classificados nos códigos da Tipi relacionados no Anexo I, seção B do decreto. A partir de 1º de janeiro de 2027 a comercialização de veículos novos produzidos no país e a importação de veículos novos, adicionalmente ao disposto nos incisos I e II do caput, ficará condicionada ao compromisso de o fabricante ou o importador atender aos requisitos obrigatórios relacionados à pegada de carbono do produto, no ciclo do berço ao túmulo, em ato a ser editado pelo MDIC, possivelmente em forma de portaria. O ciclo do berço ao túmulo considera as emissões de gases de efeito estufa incorporadas no ciclo do poço à roda, acrescidas aquelas geradas desde a extração dos recursos naturais e na fabricação de autopeças, na montagem e no descarte dos veículos leves e pesados de passageiros e comerciais. Fica patente, assim, a visão holística do programa, que procurou abarcar toda a indústria automotiva nacional.
A lógica por trás dessas obrigações está alinhada ao princípio do poluidor-pagador, segundo o qual os custos externos gerados pelas atividades produtivas, como é exatamente o caso as emissões de carbono, devem ser internalizados pelos próprios agentes econômicos responsáveis [2]. Além de estar em consonância com a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) — Lei Federal 12.187/2009 — e com o Acordo de Paris, ratificado pelo Brasil em 12 de setembro de 2016, o programa guarda relação direta com o artigo 170, VI da Constituição de 1988, que institui como princípio da ordem econômica a defesa do meio ambiente “inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.
De forma direta, o programa está alinhado à diretrizes ambientais e energéticas deveras inovadoras, cabendo destacar: 1) o incremento da eficiência energética, do desempenho estrutural e da disponibilidade de tecnologias assistivas à direção dos veículos comercializados no país, 2) a promoção do uso de biocombustíveis, de outros combustíveis de baixo teor de carbono e de formas alternativas de propulsão, valorizando a matriz energética brasileira e iii) a adoção de sistemas produtivos mais eficientes, com vistas à neutralidade de emissões de carbono. Ao incentivar a adoção de tecnologias limpas, de forma a ajudar no atingimento das metas internacionais de combate às mudanças climáticas e de transição energética, o Mover posiciona o país como um ator relevante na discussão sobre a mobilidade limpa.
Necessidade de planejamento
Os agentes econômicos que integram o ecossistema produtivo, como fabricantes de automóveis, caminhões, ônibus, chassis com motor, máquinas autopropulsadas e autopeças, devem se planejar estrategicamente para atender às exigências da nova ordem regulatória voltada à descarbonização da indústria automotiva no Brasil. O não cumprimento dessas obrigações deverá resultar em sanções administrativas, sem mencionar a possibilidade no futuro de outras esferas de responsabilização ambiental que eventualmente poderão ser acionadas pelos órgãos e mecanismos de controle.
A maior crítica que se pode fazer ao novel decreto é a ausência de metas concretas e quantificáveis, pois ao remeter a regulamentações futuras o texto perde a oportunidade de dar efetividade imediata ao assunto, como é o caso da definição dos requisitos obrigatórios relacionados à pegada de carbono do produto (no ciclo do berço ao túmulo), cujo disciplinamento ficou de ser feito pelo MDIC. Há que se definir critérios de seleção dos incentivos que impeçam a concentração de recursos em grandes montadoras, uma vez que se faz premente um olhar específico para as pequenas e médias empresas. Também se sugere fortalecer a fiscalização do programa, que deverá contar com um grau maior de controle social, haja vista a necessidade de se dar concretude aos princípios da participação e da transparência.
É indiscutível que o Programa Mover contribui para a promoção de um sistema geral de mobilidade mais verde e inovador, e a edição do Decreto 12.435/2025 é um passo importante nesse sentido. Para garantir a eficiência do sistema, no entanto, é preciso que as regulamentações complementares instituam mecanismos claros de exigibilidade, metas mensuráveis e canais de controle social. Com isso, o programa poderá e deverá contribuir para a própria transição climática e energética no Brasil e no planeta, e não apenas para a modernização da indústria automotiva, pois é evidente o seu propósito de descarbonizar a economia.
[1] São instrumentos de política pública que procuram agir na lógica do mercado econômico. A finalidade é tornar o ato de poluir mais oneroso, na tentativa de induzir a adoção de comportamentos e decisões ecologicamente mais interessantes. É o caso de benefícios fiscais condicionados a metas de descarbonização, linhas de créditos diferenciadas para produção limpa e contrapartidas ambientais solicitadas para maior acesso aos benefícios. O inciso XIII do art. 9º da Lei 6.938/1981, de forma exemplificativa, cita como exemplos desse tipo de instrumento a concessão florestal, a servidão ambiental e o seguro ambiental.
[2] Antônio Herman Benjamin afirma que o princípio do poluidor-pagador visa a fazer com que o empreendedor inclua nos custos de sua atividade todos as despesas relativas à proteção ambiental. Referência: O princípio do poluidor-pagador e a reparação do dano ambiental. In: BENJAMIN, Antônio Herman (coord). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 227.
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