O legado da Lei de Responsabilidade Fiscal
6 de maio de 2025, 6h31
Entre os anos de 1999 e 2000, a convite da equipe do senador pelo Amazonas Jefferson Péres (1932-2008), integrei grupo revisor do projeto de lei que viria a ser conhecido como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) — Lei Complementar 101/2000. Juntamente do professor Ilvo Debus e do consultor Fernando Veiga Barros e Silva, tive contato com um texto legal com grande viés econômico e financeiro.

O senador Jefferson Péres (PDT-AM)
A complexidade da matéria e os vários conceitos apresentados, conhecidos apenas por aqueles que militam no terreno das finanças públicas, me fizeram perceber que o grande desafio do projeto seria o seu entendimento por parte de 26 estados, mais o Distrito Federal, e cerca de 5.600 municípios.
Com o apoio do professor Debus, elaborei o texto Entendendo a Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasília, 2000 e 2002, Ministério da Fazenda – Esaf), artigo que, na forma de livro, teve duas publicações que totalizaram 12 mil exemplares, distribuídos pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) a todos os poderes de todos os entes públicos em nível nacional. Na forma digital (disponível, entre outras plataformas, aqui) a cartilha Entendendo a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 25 anos, recebeu cerca de dois milhões de acessos. O texto mais atualizado está em meu livro Gestão Pública (Ed. Saraiva; SP, 2025, 5ª edição).
Não é exagero asseverar que a LRF revolucionou a forma como o setor público e a sociedade brasileira passaram a enxergar o tema finanças públicas no Brasil. Uma das exigências, e uma das principais características da norma legal, passou a ser a transparência e a publicidade dos atos de gestão, envolvendo receitas e despesas públicas (artigos 48 e 49 do texto original).
Se um cidadão desejar saber quanto seu município gasta com a folha de pagamentos, se cumpre os limites de gastos com saúde e educação, ou quanto de investimentos públicos foram realizados em um determinado período, graças as regras da LRF, é possível saber. Relatórios fiscais com detalhes em relação a execução orçamentária e financeira passaram a ser publicados a cada bimestre – Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) — e a cada quadrimestre — Relatório de Gestão Fiscal (RGF) —, conforme artigos 52 e 54 do texto original da LRF.
A LRF permitiu aos governos estaduais e municipais identificarem a trajetória da dívida pública, a participação da folha de pagamentos nos gastos totais, classificando cada ente público a partir de sua situação fiscal e da capacidade de pagamentos. Ou seja, os estudos sobre as finanças públicas passaram a contar com indicadores capazes de estabelecer comparações entre os diversos entes públicos.
Em outras palavras, a Lei de Responsabilidade Fiscal, por meio de seus vários conceitos econômicos, se apresentou como uma forma de diagnosticar as contas públicas, juntamente da apresentação de um receituário para uma gestão fiscal responsável. Definindo e analisando os principais indicadores econômicos e financeiros nas três esferas de governo, o texto aprovado em maio de 2000 (que teve inspiração em diversas normas internacionais [1]) apresentava-se como instrumento central e completo em relação ao diagnóstico e ao tratamento das principais doenças que assolavam o setor público brasileiro, após a vitória contra a inflação, patrocinada pelo Plano Real. Restaria ao país seguir as regras de seu instrumento de controle e de gestão mais valioso, discutido em audiências públicas e aprovado nas duas Casas de Leis.
Ao longo de 25 anos, várias normas foram editadas visando o “aperfeiçoamento” do texto da LC 101, aprovado em 2000. De fato, em nosso país, gostamos de criar regras. Nesse sentido, foram editadas, entre outras leis:
- LC 131/2009 – Acrescenta dispositivos à Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.
- LC 156/2016 – Estabelece o Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal; … e altera a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000.
- LC 173/2020 – Estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, e dá outras providências.
- LC 176/2020 – Estabelece o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal e o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal; altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.
- LC 200/2023 – Institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico; e altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).
- LC 212/2025 – Institui o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), destinado a promover a revisão dos termos das dívidas dos Estados e do Distrito Federal com a União; … e altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).
Alterações indicam o óbvio
A pergunta que podemos fazer em relação a todas essas alterações trazidas para a LRF é se de fato seriam necessárias? As questões relacionadas às situações de calamidade pública (LC 173/2020) já possuíam previsão legal (artigo 65). As regras para a transparência e o equilíbrio fiscal, propostos na LC 176 de 2020, já estão dispostas em diversos dispositivos da LRF (artigos 1º e 4º e artigo 48).

No que se refere à instituição de um regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país, conforme proposição das LC 200/2023, as regras estabelecidas pela LRF são suficientes para essa finalidade. De fato, na prática, o Novo Arcabouço Fiscal tenta criar condições ainda mais rígidas para o controle dos gastos públicos, criando dificuldades operacionais para o próprio governo federal.
Já a LC 212/2025 traz, mais uma vez, a possibilidade de refinanciamentos de dívidas estaduais por parte do Governo Federal, medida que deveria ter sido encerrada com a Lei nº 9.496 de 1997. Conforme disposição do artigo 35 da LRF, uma das bases de sustentação da Lei Fiscal, a União não poderia voltar a socorrer os entes subnacionais que viessem a se endividar acima dos limites da gestão fiscal responsável. No entanto, em nosso país, os novos governantes não reconhecem as dívidas deixadas pelos seus antecessores no que conceituei como a “Síndrome da Gestão Anterior”, descrita em capítulo especial do meu livro Gestão Pública (Saraiva, SP, 2025, 5ª edição). Como resultado, a dívida de Estados e Municípios aumentou ao longo dos últimos 25 anos.
A necessidade de sucessivas alterações no texto original da LRF demonstra o óbvio: apesar de uma regra geral e completa para uma gestão fiscal responsável, a Lei de Responsabilidade Fiscal não é cumprida no Brasil. Ao longo desses 25 anos criaram-se medidas para retirar algumas despesas da folha de pagamentos para comprovar, de forma fictícia, o limite de 60% dos gastos com pessoal como proporção da Receita Corrente Líquida (RCL). Outras despesas foram excluídas do cálculo do Resultado Primário, visando demonstrar o cumprimento da meta fiscal, estabelecida na LRF e incluída em anexo das Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Ou seja, o setor público brasileiro, muitas vezes, faz de conta que cumpre a LRF. Detalhes em relação a esses eventos estão em meu livro, já citado.
Afinal, por qual motivo a União, estados e municípios não conseguem seguir as regras estabelecidas em um instrumento legal como a Lei Fiscal de 2000? A resposta pode estar na formação do Estado Nacional, que partiu da vontade de soberanos que comandaram e sustentaram o País durante muitos anos. A nação brasileira não criou o Estado Nacional, conforme ocorreu nos Estados Unidos, por exemplo. No Brasil, o Estado criou a nação.
Como consequência, vive-se da dependência de um poder central que deve, por tradição, fomentar a geração de renda e emprego e fazer a distribuição de renda. Dessa forma, o controle sobre os gastos públicos, em um Estado que procura fomentar a economia, torna-se tarefa hercúlea para Ministros e Secretários que tem a difícil missão de manter as contas públicas equilibradas. Os resultados que observamos nesses últimos 25 anos, em nível federal, foram o crescimento da dívida pública (já que o Tesouro deverá emitir permanentemente títulos para arrecadar recursos e cobrir suas despesas) e a falência da Previdência Pública, devido ao descontrole dos gastos com a folha de pagamentos, além das isenções e limites para o financiamento previdenciário.
Cumpre ainda destacar que, conceitualmente, o aumento dos gastos públicos poderá incrementar o Produto Interno Bruto, se for direcionado, principalmente, para as despesas de capital (investimentos). Como as principais despesas públicas nas três esferas de governo são gastos correntes, o resultado esperado com o incremento das despesas governamentais no Brasil (sem as fontes de financiamentos adequadas) é o aumento da inflação. O artigo 16 da Lei Fiscal, desde maio de 2000, traz as soluções para questões dessa natureza.
Reflexões como essas são necessárias para que possamos ter a certeza de que não basta criar uma Norma Legal como a LRF que, conforme já asseverado, estabelece de forma clara, completa e objetiva os caminhos para uma gestão fiscal responsável: para o desenvolvimento econômico e social do país, a Lei de Responsabilidade Fiscal deverá ser, de fato, cumprida.
[1] Fiscal Transparency, Budget Enforcement Act, Fiscal Responsibility Act, entre outros.
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