Opinião

O atual cenário regulatório do RenovaBio: segurança ou incerteza?

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  • é advogada sócia do escritório Razuk Barreto Valiati mestre em Direito Econômico e Direito Socioambiental (PUC/PR) e membra do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório (IBDRE) onde ocupa o cargo de Presidente da Comissão de Mercado de Carbono.

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  • é estagiária da área de Direito Imobiliário e Contratual do escritório Araúz & Advogados Associados.

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6 de maio de 2025, 15h16

A Lei nº 13.576/2017 instituiu a Política Nacional de Biocombustíveis (Renovabio) como parte integrante da Política Energética Nacional e com vistas à consecução de compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris, no que tange à redução das emissões de gases de efeito estufa e aumento na participação de bioenergia sustentável na matriz energética nacional.

Governo Federal

O objetivo do RenovaBio é reduzir a emissão de carbono proveniente do setor de transportes no Brasil, a partir do reconhecimento dos benefícios econômicos, sociais e ambientais atrelados à utilização de combustíveis renováveis, a exemplo do etanol, biodiesel e biometano, produzidos a partir de cultivos agrícolas como cana-de-açúcar, soja, milho, gordura animal e gases provenientes da decomposição de matérias orgânicas.

A lei de criação do programa (13.576/2017) definiu de maneira clara os seus fundamentos e princípios, bem como previu a existência de metas compulsórias anuais de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa para a comercialização de combustíveis a serem definidos em regulamento próprio. Segundo a lei, a emissão primária de Créditos de Descarbonização (denominada “CBIO”) deve ser efetuada de forma escritural, em livros e registros do escriturador.

A redação original do artigo 9º limitava-se a prever que o descumprimento de metas individuais sujeitaria o distribuidor de combustíveis ao pagamento de multa, sem prejuízo das demais sanções de natureza administrativa, cível e penal (previsão que se revelou genérica e abstrata ao agente regulado).

Metas anuais em decreto regulamentador

Em 2019, sobreveio o primeiro decreto regulamentador (Decreto Federal nº 9.888/2019), o qual tratou das metas compulsórias anuais, inaugurando uma nova etapa ao setor regulado, pois, a partir de então, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) passou a efetivamente estipular metas obrigatórias de redução de GEEs por meio de resoluções (Resoluções nº 15/2019, 08/2020, 17/2021, 13/2022, 06/2023 e 14/2024).

A fragilidade da legislação originária e do primeiro decreto regulamentador, com relação às penalidades aplicáveis em caso de descumprimento das metas de redução, bem como quanto ao respectivo processo administrativo sancionador, gerou um cenário de insegurança entre os agentes regulados, motivando a proposição de demandas judiciais pelas distribuidoras em busca da suspensão da obrigatoriedade de adesão ao RenovaBio.

Spacca

Inclusive, em relatório de fiscalização publicado em 2024[1], a Unidade de Auditoria Especializada em Petróleo, Gás Natural e Mineração (AudPetróleo) da Secretaria de Controle Externo de Energia e Comunicações (SecexEnergia) apontou diversas inconsistências nas políticas públicas de biocombustíveis, como o vazio regulatório na governança da definição do mandato de mistura obrigatória de etanol à gasolina; riscos de não atingimento das metas compulsórias definidas pelo CNPE; fragilidades no controle da ANP sobre a geração e certificação do CBio, o que pode prejudicar a confiabilidade do lastro dos CBios. Constatou-se, ainda, que a governança do monitoramento dos resultados do Programa Selo Biocombustível Social (SBS) teria negligenciado as diretrizes energéticas e econômicas do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel e que os objetivos energéticos de diversificação e desenvolvimento de novas biomassas não estão sendo alcançados de forma satisfatória, em razão da ausência de indicadores de desempenho e metas.

Validade constitucional

Perante o STF, foram propostas duas ADIs, Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 7596 e 7617, confrontando a validade constitucional de parte da lei. Na ADI 7596, discrimina-se o fato de as distribuidoras serem a única categoria da cadeira produtiva eleita a adquirir créditos de carbono. Na ADI 7617, por sua vez, aponta-se possível vício formal no processo legislativo, resultante em desvio de finalidade na tramitação do projeto de lei.

Por influência da pressão apontada pelo setor e do aumento da litigiosidade, foi publicada a Lei Federal nº 15.082/2024, que modifica o texto da Lei Federal nº 13.576/2017, esclarecendo aspectos fundamentais, especialmente no que toca às penalidades aplicáveis em caso de descumprimento legal. A redação do artigo 9º, por exemplo, foi alterada para prever o tipo penal a que se sujeita o distribuidor e seus dirigentes que não cumprem com metas individuais[2]. Além disso, disciplina que a multa pecuniária pode ser arbitrada entre R$ 100.000,00 e R$ 500.000.000,00.

A vigência de uma nova lei ensejou a recém publicação do Decreto nº 12.437, de 16 de abril de 2025, que promove alterações e acréscimos no texto do Decreto nº 9.888/2025, dentre as quais destacam-se:

  1. que no primeiro ano de atuação, a meta individual a ser cumprida pelos distribuidores de combustíveis será fixada de modo proporcional pela ANP;
  2. o aumento do teto de multa de R$50 milhões para R$500 milhões;
  3. o reforço da fiscalização da mistura do biodiesel e diesel fóssil;
  4. a inclusão de distribuidores inadimplentes na lista de sanções.

Cenário de instabilidade

O impacto do Decreto nº 12.437/2025 sobre o setor não parece positivo. De acordo com a Associação Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis (ANDC), a regulamentação “reforça o cenário de instabilidade e de intervenção administrativa desprovida de racionalidade técnico-normativa” do programa de descarbonização. Também subsiste uma crítica relacionada à vedação de comercialização de qualquer combustível com o distribuidor inadimplente com a sua meta individual, a partir da inclusão de seu nome na lista de sanções, publicada pela ANP. De outro lado, nota-se insuficiência da regulamentação no que diz respeito ao processo administrativo sancionador no âmbito da ANP, limitando-se o Decreto nº 9.888/2019 a prever que a lista de sanções será atualizada após observância “das garantias do contraditório e ampla defesa”, sem disciplinar regras atinentes ao devido processo legal (previsão de defesa e recursos, prazos, formas de notificação etc.).

Em suma, apesar das recentes normativas publicadas no âmbito da ANP, diversas fragilidades ainda perduram. Exemplo disso é a gravidade das sanções previstas em lei (inclusive de natureza penal), sem regulamentação suficiente quanto ao processo administrativo sancionador no âmbito da ANP. De outro lado, há certa preocupação quanto a ausência de regime de transitoriedade da Lei nº 15.082/2024 (publicada em 31.12.2024) e a vedação do retrocesso das sanções mais gravosas, em desfavor dos administrados. Por fim, a legislação parece onerar indiscriminadamente as distribuidoras, sem considerar os demais agentes da cadeira produtiva que também contribuem com a emissão de gases de efeito estufa.

Esses e outros fatores, somados, maculam os reais objetivos do RenovaBio, que deveria assegurar previsibilidade ao mercado de combustíveis, induzindo ganhos de eficiência energética e contribuindo com o cumprimento de metas assumidas no Acordo de Paris. Todavia, tem gerado cenário de insegurança jurídica aos agentes do setor.

 


[1] Disponível em: https://sites.tcu.gov.br/relatorio-de-politicas/11-auditoria-operacional-para-avaliar-as-principais-politicas-de-biocombustiveis.html

[2] Art. 68 da Lei nº 9.605/1998. Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental.

Autores

  • é advogada, sócia do escritório Razuk Barreto Valiati, mestre em Direito Econômico e Direito Socioambiental (PUC/PR) e membra do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório (IBDRE), onde ocupa o cargo de Presidente da Comissão de Mercado de Carbono.

  • é advogada associada do escritório Razuk Barreto Valiati, pós-graduada em Direito Administrativo (PUC/SP) e membra do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório (IBDRE), onde ocupa o cargo de Secretária da Comissão de Mercado de Carbono.

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