Renovabio: pode a distribuidora de combustível emitir CBIO?
30 de outubro de 2021, 6h34
A preocupação com o meio ambiente permeia todas as discussões da sociedade, que vê o planeta cada vez mais exaurido da atuação humana predatória.
Nessa linha, os países vêm buscando alternativas para conciliar o desenvolvimento com o uso sustentável dos bens naturais. Uma iniciativa importante foi o chamado Acordo de Paris, tratado mundial assinado por 195 nações, aprovado em 2015 e em vigor desde 2016, que tem como objetivo reduzir o aquecimento global.
A partir de então, no Brasil, passou a haver discussões mais estruturadas a respeito de como reduzir as emissões de CO2 (dióxido de carbono, também conhecido como "gás carbônico") e, à vista do elevado percentual de participação do setor de transporte (mobilidade urbana) no total de emissões, elegeu-se o desenvolvimento e estímulo ao uso de biocombustíveis, em substituição gradual aos combustíveis fósseis, como estratégia primária de descarbonização.
Com esse espírito, foi editada, em 2017, a Lei n° 13.576, que instituiu a Política Nacional de Biocombustíveis (Renovabio), cujo objetivo é a gradual descarbonizarão da matriz energética brasileira por meio do aumento do uso de biocombustíveis.
Os objetivos da novel legislação são claros e expressos no artigo 1°: 1) contribuir para o atendimento aos compromissos do Acordo de Paris sobre mudança do clima; 2) contribuir com a adequada relação de eficiência energética e redução de emissão de gases na comercialização e no uso de biocombustíveis; 3) promover a expansão e o uso de biocombustíveis; e 4) contribuir com previsibilidade para a participação competitiva dos diversos biocombustíveis no mercado nacional.
Nos artigos 2° e 3° são apresentados os fundamentos e princípios do programa, dentre os quais se destaca a "eficácia dos biocombustíveis em contribuir para a mitigação efetiva de emissões de gases causadores do efeito estufa e de poluentes locais".
Em seguida, a lei apresenta um rol de instrumentos para alcançar os resultados pretendidos pela nova política nacional (artigo 4°), destacando-se as: 1) metas de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa; 2) os créditos de descarbonização (CBIO), cuja negociação será feita em mercados organizados (artigo 15); 3) a Certificação dos Biocombustíveis; 4) a manutenção da imposição de adições compulsórias de biocombustíveis aos combustíveis fósseis; e 5) e a concessão de incentivos fiscais, financeiros e creditícios.
Essas medidas de índole regulatório-ambiental — portanto, com clara pretensão de intervenção sócio-econômica —, como se percebe, foram previstas para estimular em toda a coletividade um comportamento ecologicamente correto.
Nas palavras de Gabriel Wedy tratando da abordagem normativa do desenvolvimento de Jeffrey Sachs: "(…) significa que a boa sociedade não é apenas economicamente próspera (com alta renda per capita), mas também inclusiva, ambientalmente sustentável e bem governada" [1].
Com efeito, a lei em estudo tratou de prever redução de emissão de gases causadores do efeito estufa (GEE) a partir de metas compulsórias anuais, as quais serão desdobradas, para cada ano corrente, em metas individuais dos distribuidores de combustíveis, proporcionais à respectiva participação no mercado de comercialização.
As metas anuais serão previstas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE [2]), para um período mínimo de dez anos, cujos valores serão estabelecidos em unidades de créditos de descarbonização [3].
E, para alcançar essa meta, foi previsto um mecanismo chave: a criação de um mercado de créditos de descarbonização, por meio do qual os distribuidores de combustíveis, únicas partes obrigadas, deverão adquirir CBIOs emitidos por empresas produtoras e/ou importadoras de biocombustíveis. Nas palavras do professor Marcos Matsunaga:
"Trata-se, pois, de um mecanismo híbrido, na medida em que combina uma regulação pelo direito, por meio de um comando legal impositivo de uma obrigação, e um incentivo econômico, cuja intensidade será determinada pela dinâmica do mercado, que, em teoria, deveria precificar a externalidade negativa decorrente da emissão de gases poluentes na queima de combustíveis fósseis. O sistema jurídico não atua diretamente na contenção dos efeitos deletérios do sistema econômico, mas introduz um mecanismo pelo qual o próprio sistema econômico se autocorrigiria, precificando a externalidade negativa por ele próprio produzida" [4].
O CBIO, portanto, é um dos principais instrumentos previstos na lei para implementação da nova política. Ele será emitido pelo produtor/importador de biocombustíveis a partir da comercialização desses produtos e deverá ser adquirido pelas distribuidoras de combustíveis, as quais, por sua vez, têm que cumprir meta anual individual de toneladas de CBIO fixada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) [5].
Nos termos da Lei n° 13.576/17, a emissão primária do CBIO será realizada de forma escritural, nos livros ou registros do escriturador (banco ou instituição financeira), mediante solicitação do produtor/importador de biocombustível, no prazo de 60 dias da emissão da nota fiscal de compra e venda do biocombustível, sob pena de decair o direito de fazê-lo.
O artigo 14 da lei citada prevê as informações que devem constar do CBIO, ao passo que os artigos seguintes (15 e 16) descrevem que a negociação dos créditos será realizada em mercados organizados, inclusive em leilões, indicando-se o escriturador como responsável pela manutenção do registro da cadeia de negócios ocorridos no período.
Por seu turno, o artigo 17 prevê a possibilidade de que regulamento trate de outros aspectos relacionados aos CBIOs, o que, hoje, é feito pelo do Decreto n° 9.888/19.
Feita essa breve introdução, destacamos que, como já registrado, quem solicita a emissão primária do CBIO é o produtor ou importador de biocombustível.
Não há menção expressa ao distribuidor de combustível, mas, como se sabe, ele pode importar biocombustíveis, conforme previsão do artigo 14, inciso II, da Resolução n° 777/2019 da ANP [6].
Havendo autorização regulatória para essa importação, e sendo o importador de biocombustíveis considerado emissor primário de CBIOs [7], vale analisar se o distribuidor que importa biocombustível pode emitir CBIO e, além disso, se pode aproveitar essa emissão para compensar com a própria meta, isto é, sem necessidade de aquisição do título na bolsa de valores.
Em primeiro lugar, nos parece que não há impeditivo normativo para que o distribuidor de combustível, ao importar biocombustível, solicite a emissão do CBIO. Acima, já vimos autorização para importação. Na Resolução ANP n° 758/2018 — que regulamenta a certificação da produção ou importação eficiente de biocombustíveis prevista na Lei do Renovabio — há previsão, no artigo 3°, inciso XIV, de que é considerado importador de biocombustível o "agente econômico autorizado pela ANP a exercer a atividade de importação de biocombustível, nos termos da legislação vigente de cada produto relacionado às rotas do artigo 4° desta Resolução".
Outrossim, na Resolução ANP n° 802/2019 — que estabelece os procedimentos para geração de lastro necessário para emissão primária do CBIO — não localizamos dispositivo proibindo a atuação do distribuidor, na qualidade de importador.
Dessa forma, existindo autorização para que o distribuidor importe biocombustível e ausente proibição no sentido de que ele solicite emissão do CBIO, é de se entender pela possibilidade dessa atuação (cumprindo, por óbvio, as disposições legais e regulamentares aplicáveis — principalmente aquelas editadas pelo MME e ANP) [8].
Em sentido contrário, pode-se argumentar que essa permissão iria de encontro com a política de fortalecer o mercado nacional de biocombustíveis, já que os distribuidores passariam a importar o biocombustível para poder, ao mesmo tempo, emitir o CBIO e obter receita com sua negociação. Sem contar que, nesse cenário, pode-se imaginar uma escassez de títulos no mercado, retirando toda a liquidez que se busca atingir.
Admitindo-se, contudo, a possibilidade de emissão dos CBIOs pelo distribuidor, deve-se analisar se ele pode efetuar a compensação com a sua meta anual ou se estaria obrigado a comercializar os CBIOs no mercado próprio.
Como se disse acima, a comercialização dos CBIOs é feita em bolsa e no modelo de plataforma única, não havendo, ao menos no cenário normativo e prático de hoje, forma lícita "alternativa" de adquirir os títulos.
Além disso, o artigo 7° da Portaria n° 449/2019 do Ministério das Minas e Energia prevê que "o crédito de descarbonização deve ser negociado em ambiente que garanta a não identificação das contrapartes".
Ademais, caso fosse permitida ilimitadamente a importação e a compensação, mais uma vez e de forma agravada, poderíamos flertar com cenário de escassez desses títulos no mercado.
Em suma, nos parece possível, no atual cenário normativo, que o distribuidor de combustível que atue também como importador de biocombustíveis possa ser considerado emissor primário de CBIO. Contudo, aspectos regulatórios e elementos finalísticos da política em si, em conjunto, impediriam a compensação desses CBIOs por ele emitidos com sua própria meta anual.
[1] WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2018. p.131.
[3] Cada unidade de crédito de descarbonização corresponde a uma tonelada de gás carbônico equivalente, calculada a partir da diferença entre as emissões de gases de efeito estufa no ciclo de vida de um biocombustível e as emissões de seu combustível fóssil substituto, nos termos do artigo 3°, §2°, do Decreto n° 9888/2019.
[4] MATSUNAGA, Marcos H. M., Renovabio: reflexões sobre a segurança jurídica e extrafiscalidade. Revista de Estudos Tributários, Porto Alegre, v. 20, n°120, abril/2018, p. 42.
[5] O não atendimento da meta anual pelo distribuidor de combustíveis acarreta imposição de multa proporcional à quantidade de CBIO não comprovada e pode variar entre R$ 100.000 e R$ 50.000.000, conforme previsão do artigo 9°.
[6] "Artigo 14 – Somente poderão importar ou exportar produtos:
(…)
II – distribuidores autorizados pela ANP;
(…)
§1º. Os distribuidores e produtores autorizados somente poderão importar produtos que estejam autorizados a comercializar, nos termos de sua autorização para exercício de atividade outorgada pela ANP".
[7] Artigo 5°, inciso VII, da Lei n° 13.576/2017.
[8] Destacam-se Resolução ANP n° 802/2019 e Portaria MME n° 419/2019.
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