ANPP em ações penais privadas: entre a eficiência do processo penal e o esvaziamento do interesse da vítima
6 de maio de 2025, 17h22
Análise crítica da decisão do STJ no REsp nº 2.083.823/DF
A persistente controvérsia em torno do acordo de não persecução penal (ANPP) no ordenamento jurídico brasileiro atingiu um novo paradigma com a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 2.083.823/DF, reavivando o debate acerca da legitimidade do Ministério Público em propor o ANPP em processos de ação penal privada, mesmo após a aceitação da queixa-crime.
A mencionada decisão, sob a relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, estabeleceu o entendimento de que o ANPP é aplicável em ações penais privadas, desde que cumpridos os requisitos legais, e que o Ministério Público possui legitimidade supletiva para propor o acordo quando verificada a inércia ou a recusa não justificada do querelante. Embora a lógica subjacente à decisão busque otimizar o sistema penal, ela demanda uma análise crítica mais aprofundada, considerando a natureza intrínseca da ação penal privada, a autonomia da vítima e, crucialmente, a imprecisão do critério da “fundada recusa”.
Contextualização da decisão do STJ
O Recurso Especial nº 2.083.823/DF originou-se de uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), que validou a oferta de ANPP pelo Ministério Público em uma ação penal privada, posteriormente ao recebimento da queixa-crime.
No caso em análise, a queixa-crime foi apresentada e recebida durante a vigência do artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP), sem que o querelante, ao ajuizá-la, tenha ofertado proposta de acordo de não persecução penal, tampouco o Ministério Público o tenha feito antes da admissão da peça inicial. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJ-DFT), por sua vez, entendeu que, diante da omissão do querelante, a posterior propositura do ANPP pelo Ministério Público, na qualidade de custos legis, seria legítima e tempestiva, ainda que apresentada após o recebimento da queixa-crime.
O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o recurso especial, negou-lhe provimento, mantendo o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Em seu voto, o ministro Joel Ilan Paciornik fundamentou que inexiste vedação legal expressa à aplicação do acordo de não persecução penal nas ações penais de iniciativa privada, destacando que a moderna justiça penal demanda a ampliação dos instrumentos de justiça negociada, em consonância com os princípios da eficiência e da consensualidade no processo penal contemporâneo.
Análise crítica à luz da legislação, dos princípios constitucionais e da vagueza do critério da ‘fundada recusa’
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, embora sustentada por argumentos de ordem prática, requer uma análise crítica mais minuciosa, considerando a legislação, os princípios constitucionais que regem o sistema penal brasileiro e a problemática da “fundada recusa”.
A ação penal privada, como é cediço, caracteriza-se pela atribuição à vítima da legitimidade para deflagrar a persecução penal mediante a propositura da queixa-crime, assumindo, portanto, a titularidade da iniciativa processual. Trata-se de modalidade excepcional de ação penal, normalmente reservada a infrações de menor potencial ofensivo, nas quais o ordenamento jurídico confere ao ofendido a prerrogativa de avaliar a conveniência e a adequação da persecução criminal à tutela de seus interesses.
Nesse cenário, a possibilidade de o Ministério Público, atuando como custos legis, propor o ANPP em sede de ação penal privada — ainda que contrariamente à vontade da vítima — pode ser vista como medida apta a desfigurar a essência dessa espécie de ação. Ao retirar do ofendido a posição que lhe é legalmente conferida, tal atuação pode tornar a persecução penal inócua sob a perspectiva da efetividade da justiça, sobretudo quando a vítima entende que a instauração do processo penal constitui a resposta mais adequada à reparação do dano sofrido. A imposição do ANPP, sem a anuência do querelante, tem o potencial de frustrar suas legítimas expectativas e fomentar a percepção de injustiça, esvaziando, assim, os fundamentos que justificam a existência da ação penal de iniciativa privada.
Ademais, o ordenamento jurídico já contempla instrumentos específicos para a resolução consensual de conflitos no âmbito da ação penal privada, notadamente a composição civil dos danos e a transação penal, ambos previstos na Lei nº 9.099/1995. Tais mecanismos, diferentemente do ANPP, pressupõem a anuência da vítima como condição para sua celebração, preservando, assim, sua autonomia na condução do processo penal.
A imposição do ANPP, sem o consentimento do ofendido, representaria, portanto, uma mitigação dessa autonomia, sob o pretexto de uma suposta maior eficiência do sistema penal. Tal intervenção poderia enfraquecer os fundamentos que justificam a existência da ação penal de iniciativa privada, comprometendo a percepção de justiça por parte da vítima.
Nos termos dos artigos 72 e 73 da Lei nº 9.099/1995, a composição civil será buscada em audiência preliminar, mediante conciliação conduzida por juiz ou conciliador sob sua orientação (Akerman, 2024). Não sendo possível sua formalização, abre-se, então, a possibilidade de proposta de transação penal, sempre condicionada à manifestação de vontade do querelante.
Na hipótese de ação penal privada, o próprio querelante pode formular a proposta de transação penal, como defendido por importante setor doutrinário. A ausência de referência expressa no dispositivo legal ao querelante justifica-se pelo fato de decorrer do princípio da oportunidade: havendo possibilidade de iniciar a ação penal privada, autorizado está a oferecer a transação. (Akerman, 2024).
Cotejo com a legislação processualista penal e a Lei 13.964/19
O artigo 45 do Código de Processo Penal (CPP) estabelece que “a ação penal, nos crimes de que trata este Código, será pública ou privada”. Já o artigo 28-A do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/19 (Pacote Anticrime), dispõe sobre o ANPP, estabelecendo os requisitos para a sua celebração.
Da análise conjunta desses dispositivos, não se depreende uma proibição expressa à aplicação do ANPP em ações penais privadas. No entanto, a interpretação sistemática do CPP, à luz dos princípios da autonomia da vontade e do devido processo legal, permite inferir que a aplicação do ANPP em ações penais privadas deve ser encarada com ressalvas.
Afinal, a autonomia da vontade da vítima, como já salientado, é um dos pilares da ação penal privada. Ao permitir que o Ministério Público proponha o ANPP contra a vontade da vítima, o STJ estaria relativizando esse princípio, em detrimento da segurança jurídica e da efetividade do sistema penal.
Problemática da ‘fundada recusa’
Um dos aspectos mais sensíveis da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça reside na exigência de que eventual recusa do querelante à proposta de acordo de não persecução penal seja ‘fundada’. Tal exigência, pela ausência de critérios normativos claros e objetivos, abre margem considerável para juízos valorativos subjetivos por parte dos magistrados, o que pode comprometer a previsibilidade das decisões judiciais e gerar significativa insegurança jurídica.

A indeterminação do que se entende por ‘fundamentação suficiente’ da recusa suscita questionamentos relevantes: estaria ela limitada à demonstração de prejuízo concreto ou manifesta inadequação do acordo à gravidade do fato? Abrangeria, por exemplo, razões de ordem subjetiva como o impacto psicológico do crime sobre a vítima ou sua expectativa legítima de ver o agente penalmente responsabilizado de modo mais severo?
A ausência de balizas normativas para aferição do que constitui uma ‘recusa fundada’ impõe à vítima o encargo de justificar, perante o Estado, a sua decisão de não aderir à proposta, invertendo, assim, a lógica principiológica que informa a ação penal de iniciativa privada. Tal imposição configura um ônus desproporcional e pode esvaziar, na prática, a autonomia decisória que a legislação conferiu ao ofendido.
Além disso, a natureza eminentemente subjetiva do critério favorece a adoção de entendimentos divergentes em hipóteses semelhantes, dificultando a uniformidade da jurisprudência e comprometendo a segurança jurídica — valor essencial à legitimidade e estabilidade do sistema penal.
Em contraponto à visão otimista: a necessidade de preservar a autonomia da vítima
Em artigo publicado nesta ConJur, o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do acórdão ora examinado, sustenta a admissibilidade da proposta de ANPP por parte do Ministério Público no âmbito das ações penais privadas. Justifica tal possibilidade com base na potencial contribuição da medida para a celeridade e eficiência do sistema de justiça criminal, bem como na prevenção da impunidade, especialmente em delitos de menor gravidade.
Embora tais fundamentos encontrem respaldo em uma visão moderna de justiça penal, pautada na consensualidade e na racionalização da persecução penal, é igualmente relevante ponderar os contornos normativos e principiológicos da ação penal de iniciativa privada. Essa modalidade processual, como anteriormente exposto, tem por escopo assegurar à vítima a prerrogativa de avaliar, à luz de suas circunstâncias pessoais e do bem jurídico lesado, a conveniência de acionar o aparato estatal repressivo.
Assim, ainda que a busca por maior eficiência represente valor a ser promovido, tal objetivo deve ser compatibilizado com a preservação da autonomia decisória do ofendido, a quem a ordem jurídica, deliberadamente, confiou o protagonismo na condução da ação. Nesse sentido, a possibilidade de intervenção ministerial, independentemente da concordância da vítima, desafia a lógica própria da ação penal privada, cujos institutos — como a composição civil dos danos e a transação penal previstos na Lei nº 9.099/1995 e no Código de Processo Penal — estão condicionados, por sua natureza, à manifestação de vontade do querelante.
A prevalência da atuação estatal nesses moldes aproxima, de maneira substancial, a ação penal privada de uma ação pública condicionada à representação, o que, na prática, pode resultar em esvaziamento das garantias específicas conferidas ao ofendido e em menor efetividade da resposta penal sob sua ótica.
Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que a decisão do STJ no REsp nº 2.083.823/DF, embora tenha como objetivo conferir maior eficiência ao sistema penal, merece uma análise crítica sob a perspectiva da natureza da ação penal privada, da autonomia da vítima e da subjetividade implicada ao critério da “fundada recusa”
A possibilidade de o Ministério Público propor o ANPP em ações penais privadas, mesmo contra a vontade da vítima e sem critérios objetivos para avaliar a “fundada recusa”, pode esvaziar essa modalidade de ação, transformando o processo em algo inócuo no que se refere à sensação de justiça aguardada pela vítima.
É imprescindível, portanto, que se promova uma reflexão mais aprofundada sobre o tema, a fim de evitar decisões que possam comprometer a segurança jurídica e a efetividade do sistema penal, bem como a autonomia e os direitos da vítima.
Referências bibliográficas
– AKERMAN, William; AKERMAN, Priscila. Capítulo 1 – Fissuras no esquema aflitivo-repressor: a solução adequada de litígios na seara criminal e o consenso sobre o destino do processo penal. In: JR., Inezil; AKERMAN, William. Justiça Penal Negociada. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais, 2024.
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– BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
– BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
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– CONJUR. Ministério Público pode propor ANPP em ação penal privada, decide STJ. Consultor Jurídico, 21 mar. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mar-21/ministerio-publico-pode-propor-anpp-em-acao-penal-privada-decide-stj/. Acesso em: 17 abr. 2025.
– CONJUR. Proposta de ANPP pelo Ministério Público em ação penal privada. Consultor Jurídico, 16 nov. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-16/proposta-de-anpp-pelo-ministerio-publico-em-acao-penal-privada/. Acesso em: 18 abr. 2025.
– SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp: 2083823 DF 2023/0233545-4, Relator.: Ministro Joel Ilan Paciornik, Data de Julgamento: 11/03/2025, T5 – Quinta Turma, Data de Publicação: DJEN 18/03/2025.
– TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias da. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais: comentários à Lei 10.259, de 12-07-2001. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
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