Suspensão do fornecimento de energia a entidades públicas inadimplentes
5 de maio de 2025, 19h36
A prestação contínua de energia elétrica é um pilar do funcionamento dos serviços públicos essenciais. A possibilidade de sua interrupção, em virtude de inadimplência de entes públicos, coloca em conflito o direito das concessionárias à remuneração e a garantia de direitos fundamentais dos usuários. A recente decisão proferida no ARE 1.513.758/RJ pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao negar provimento a agravo interposto pelo Ministério Público Federal (MPF), reacendeu o debate sobre os limites jurídicos da suspensão de serviços essenciais em face da inadimplência estatal.

Este artigo visa analisar a legalidade da suspensão de fornecimento de energia elétrica com base na legislação setorial, a compatibilidade dessa prática com princípios constitucionais e a interpretação conferida pelo STF no caso mencionado, identificando as consequências práticas e jurídicas da decisão para o setor regulado e os instrumentos de defesa coletiva dos consumidores.
Fundamento legal para suspensão do fornecimento de energia elétrica
O artigo 17 da Lei nº 9.427/1996 estabelece que a suspensão do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento é permitida, inclusive para consumidores que prestem serviço público essencial, desde que o Poder Público local ou estadual seja previamente notificado com antecedência mínima de 15 dias [1].
A Resolução Aneel nº 456/2000, em seu artigo 94, repetia essa previsão, exemplificando os serviços considerados essenciais (como saneamento, saúde e transporte público). A legalidade da interrupção, nesses casos, encontra fundamento no próprio regime jurídico das concessões públicas, que admite a descontinuidade do serviço em virtude do inadimplemento do usuário, conforme previsto no art. 6º, §3º, II, da Lei nº 8.987/1995 [2].
Portanto, a legislação infraconstitucional não veda a suspensão do fornecimento de energia elétrica a consumidor que presta serviço público essencial, mas condiciona sua efetivação a mecanismos de aviso e coordenação com o Poder Público, com o objetivo de reduzir os impactos sociais da medida.
Princípios constitucionais em tensão
A prática de interrupção do fornecimento de energia, mesmo legal, deve respeitar limites constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III) [3] e o direito à prestação contínua de serviços públicos essenciais (CF, artigo 6º [4], e artigo 175 [5]) impõem uma ponderação quanto aos efeitos sociais da suspensão.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) estabelece, no artigo 22, que os serviços essenciais devem ser prestados de forma contínua, adequada e eficiente [6]. Em contextos onde a interrupção pode afetar diretamente o direito à saúde, à educação ou à vida, como no caso de hospitais públicos, o corte pode configurar violação a direitos fundamentais dos usuários, ainda que não sejam os inadimplentes diretos.
Por outro lado, a permissividade do inadimplemento por entes públicos compromete a isonomia no trato entre usuários e ameaça a viabilidade econômico-financeira das concessionárias, princípio este igualmente protegido pelo ordenamento constitucional e pelos contratos administrativos.
Julgamento do ARE 1.513.758/RJ pelo STF
No caso julgado pelo STF, a ação civil pública proposta pelo MPF visava impedir, de forma ampla, que a Light Serviços de Eletricidade realizasse cortes de energia elétrica por inadimplemento de entidades públicas prestadoras de serviços essenciais no estado do Rio de Janeiro.
Além disso, a ação requeria, de forma incidental, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 17 da Lei nº 9.427/1996 e do artigo 94 da Resolução nº 456/2000 da Aneel.
Após decisões favoráveis à pretensão do MPF no primeiro grau de jurisdição e no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, o ministro André Mendonça monocraticamente deu provimento ao recurso da Aneel e da Light para extinguir a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, que buscava proibir o corte de energia elétrica por inadimplemento de entes públicos prestadores de serviços essenciais.
O relator entendeu que, embora apresentada como controle incidental, a ação não se baseava em situação fática específica e, na prática, visava a declaração abstrata de inconstitucionalidade do artigo 17 da Lei nº 9.427/1996 e do artigo 94 da Resolução Aneel nº 456/2000 — o que configura controle concentrado, de competência exclusiva do STF. Assim, reconheceu o uso inadequado da ação civil pública como sucedâneo de ação direta, e determinou a extinção do processo sem julgamento do mérito.
Submetida a questão à 2ª Turma do STF, esta, por maioria, em julgamento realizado na sessão virtual de 21.fev.2025 a 28.fev.2025, entendeu que o pedido do MPF extrapolou os limites do controle incidental de constitucionalidade, configurando, de fato, um controle abstrato disfarçado. [7]
O ministro relator André Mendonça afirmou que a ausência de base fática específica transformou o pedido em uma pretensão de caráter genérico, incompatível com o instrumento da ação civil pública. A decisão extinguiu o processo sem julgamento de mérito, com base nos artigos 330, II e III, e 485, I e VI, do Código de Processo Civil.
O voto divergente do ministro Edson Fachin reconheceu a legitimidade da ação civil pública para fins de controle incidental, defendendo que o pedido de inconstitucionalidade era uma questão prejudicial necessária à solução do pedido principal. No entanto, prevaleceu a tese restritiva.
Efeitos jurídicos e institucionais da decisão
A decisão do STF reafirma a legalidade da suspensão do fornecimento de energia por inadimplemento, inclusive a entes públicos, desde que respeitado o aviso prévio legal. Além disso, delimita os contornos do controle de constitucionalidade nas ações civis públicas.
Para o setor elétrico, o julgamento oferece maior segurança jurídica, ao impedir que decisões judiciais locais invalidem normas setoriais de forma genérica. Para o Ministério Público e demais legitimados coletivos, a decisão reforça a necessidade de fundamentação fática específica e limitação territorial dos efeitos de suas ações.
A proteção de usuários de serviços essenciais permanece possível, mas deverá ser feita caso a caso, mediante demonstração concreta de risco à coletividade. A atuação preventiva dos órgãos de controle e a negociação entre entes públicos e concessionárias surgem como vias preferenciais para evitar prejuízos à população.
Conclusão
A suspensão do fornecimento de energia elétrica a entes públicos inadimplentes é juridicamente possível, desde que observadas as garantias legais e constitucionais pertinentes. A legislação infraconstitucional autoriza a medida com exigência de prévia comunicação, enquanto o STF reafirma que a sua impugnação deve ocorrer por vias próprias, dentro dos limites do controle de constitucionalidade.
A decisão no ARE 1.513.758/RJ delimita a atuação do Ministério Público na seara coletiva e reitera a competência exclusiva do STF para o controle abstrato. O julgamento não nega a importância dos princípios da continuidade dos serviços e da dignidade da pessoa humana, mas ressalta que sua invocação deve respeitar os procedimentos jurídicos adequados.
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Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segundo Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n.º 1.513.758/RJ. Rel. Min. André Mendonça, j. 03 mar. 2025. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 30 abr. 2025.
BRASIL. Lei n.º 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a concessão de serviços públicos de energia elétrica. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 27 dez. 1996.
BRASIL. Lei n.º 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 14 fev. 1995.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Agência Nacional de Energia Elétrica. Resolução n.º 456, de 29 de novembro de 2000. Estabelece as condições gerais de fornecimento de energia elétrica de forma atualizada. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 30 nov. 2000.
BRASIL. Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
[1] Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual.
[2] Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
(…)
3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
(…)
II – por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
[3] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III – a dignidade da pessoa humana;
[4] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[5] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II – os direitos dos usuários;
III – política tarifária;
IV – a obrigação de manter serviço adequado.
[6] Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
[7] Tese de julgamento: “Ação civil pública com pedido incidental de declaração de inconstitucionalidade desprovido de base fática específica configura controle abstrato de constitucionalidade, usurpando competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, que deveria ser ativada por ação direta, e não por ação civil pública”.
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