Direito Penal, violência de gênero e IA: da Lei nº 15.123/2025
5 de maio de 2025, 18h17
A promulgação da Lei nº 15.123/2025 inaugura um marco jurídico significativo ao agravar a pena do crime de violência psicológica contra a mulher (artigo 147-B do Código Penal), quando este for perpetrado mediante o uso de tecnologias de inteligência artificial, aptas a manipular imagens ou sons — notadamente as chamadas deepfakes. Trata-se de uma tentativa de modernização legislativa frente aos desafios impostos pela era digital, sobretudo diante da crescente instrumentalização da IA como meio de violação de direitos fundamentais, em especial no contexto da violência de gênero.
Embora a inovação normativa seja louvável no plano simbólico e protetivo, a medida exige uma leitura crítica, sob pena de incorrermos em reducionismos punitivistas e ilusões de eficácia penal que ignoram as limitações estruturais do sistema de justiça criminal.
Tecnologia e Direito Penal: entre reconhecimento do risco e resposta legislativa
A inteligência artificial generativa tem permitido a criação de conteúdos audiovisuais hiperrealistas — muitas vezes indistinguíveis do real — com alto potencial lesivo. No campo penal, esse avanço enseja um novo vetor de vitimização: a manipulação digital da imagem ou voz da vítima, com vistas a humilhá-la, difamá-la ou instrumentalizar sua identidade para fins ilícitos.
Nesse cenário, a utilização de deepfakes para constranger, ameaçar ou causar sofrimento emocional à mulher insere-se de forma clara nas hipóteses de violência psicológica, agravando o impacto e a repercussão do delito. A resposta legislativa, nesse contexto, visa conferir maior gravidade à conduta, mediante uma causa de aumento de pena que reflete a reprovabilidade acrescida do meio empregado.
Contudo, como adverte Aury Lopes Jr., “não se combate a falência das instituições com o incremento da resposta penal”, sendo essencial que tais alterações legislativas estejam lastreadas em políticas criminais coerentes e acompanhadas de estrutura adequada para investigação e persecução penal efetivas.
Risco do expansionismo penal e armadilha do simbolismo legislativo
A majoração de penas em razão do uso de novas tecnologias pode parecer, em um primeiro momento, uma resposta proporcional ao incremento do dano causado. Todavia, como ensina Gustavo Badaró, a eficácia do direito penal deve ser aferida não apenas pela gravidade abstrata da sanção, mas sobretudo pela sua aplicabilidade concreta e pela observância das garantias processuais e substanciais do acusado.

A adoção de agravantes tecnológicas sem uma correspondente aparelhagem técnico-pericial — notadamente nos órgãos de investigação e no Poder Judiciário — corre o risco de transformar a norma penal em um instrumento meramente simbólico. Isso porque, diante da elevada sofisticação das deepfakes, a apuração da autoria e a verificação da autenticidade das manipulações exigem recursos que ainda estão fora do alcance de boa parte dos órgãos estatais.
Além disso, o emprego impreciso de expressões como “alteração de voz ou imagem por meio de inteligência artificial” pode ensejar interpretações excessivamente amplas, comprometendo a segurança jurídica e criando brechas para aplicações arbitrárias da lei penal. Conforme bem observa Renato Brasileiro de Lima, o princípio da legalidade estrita exige tipificações claras, taxativas e tecnicamente delimitadas, sob pena de afronta direta ao postulado constitucional da reserva legal em matéria penal.
Violência de gênero e necessária abordagem interseccional
Não se pode perder de vista que a Lei nº 15.123/2025 nasce de uma legítima preocupação com a violência digital de gênero, fenômeno que atinge de forma desproporcional mulheres e meninas em ambientes virtuais. A manipulação de imagens com conteúdo sexual, o uso de deepnudes e a disseminação de vídeos falsos com fins vexatórios integram um quadro de violência simbólica e estrutural que visa silenciar, controlar e deslegitimar a vítima — uma nova forma de misoginia virtual.
A iniciativa legislativa dialoga com a Convenção de Belém do Pará, internalizada pelo Brasil, que impõe aos Estados o dever de prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher, inclusive no espaço digital. Nesse ponto, o agravamento da pena encontra respaldo jurídico e político, ao reconhecer a especificidade da lesão e a necessidade de tutela diferenciada.
No entanto, a resposta penal, para ser eficaz, deve ser inserida em um contexto mais amplo, que inclua educação digital, mecanismos de responsabilização civil e administrativa das plataformas tecnológicas, e sobretudo, acolhimento psicológico e jurídico das vítimas, sob pena de se limitar a uma retórica criminalizadora sem efetividade prática.
Conclusão, ainda que parciais
A Lei nº 15.123/2025 inaugura um novo capítulo na relação entre direito penal e tecnologia, ao reconhecer o impacto das deepfakes na prática de crimes de violência psicológica contra a mulher. Trata-se de uma norma que, embora juridicamente válida e politicamente necessária, exige cautela quanto à sua interpretação e aplicação.
O desafio contemporâneo consiste em equilibrar o imperativo de proteção dos direitos fundamentais com o respeito aos limites do poder punitivo, evitando respostas meramente simbólicas e respeitando as garantias próprias de um Estado democrático de Direito. Somente com esse compromisso ético e técnico será possível construir uma política criminal verdadeiramente eficaz frente aos desafios da era digital.
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Referências
BADARÓ, Gustavo Henrique. Curso de Processo Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Legislação Penal Especial Comentada. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2022.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).
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