Advocacia pública e a reoneração gradual da folha de empresas que contratam com o poder público
4 de maio de 2025, 16h21
A desoneração da folha de pagamento, como política pública que buscou diminuir o preço dos produtos e serviços contratados pelo poder público, foi instituída pela Lei nº 12.546/2011, e constitui em substituir a contribuição previdenciária patronal sobre a folha de pagamento por um percentual incidente sobre a receita bruta, reduzindo significativamente os custos trabalhistas, como forma de estimular a criação de empregos, manter os postos de trabalho e permitir maior competitividade para as empresas, principalmente em setores mais impactados pela carga tributária — como os de transporte, de tecnologia da informação e da construção civil.

A entrada em vigor da Lei nº 14.973/2024, que estabelece a reoneração gradual da folha de pagamento até o fim de 2027, vai repercutir, significativamente, nos custos das empresas que celebraram contratos com a administração pública ancoradas no regime diferenciado, uma vez que o recolhimento sobre a receita bruta é, desde 2011, componente crucial na formulação das propostas no âmbito de licitações públicas, de modo que a mudança de regime impacta diretamente o cálculo dos preços e a viabilidade econômica dos contratos celebrados e das próprias empresas.
Em paralelo, a Lei nº 14.133/2021 prevê a realização do reequilíbrio econômico-financeiro do contrato em razão de fatos imprevisíveis, fatos previsíveis com efeitos incalculáveis, caso fortuito, força maior, fato do príncipe ou fato da administração que causem repercussão nos preços contratados, o que implica, em qualquer das hipóteses, a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso.
A alteração legislativa que encerra o regime de desoneração da folha de pagamento pode ser configurada como fato do príncipe e, ainda, como fato superveniente e imprevisível que reflete diretamente na equação econômico-financeira do contrato e, por conseguinte, gera o direito à recomposição contratual, sendo certo que as empresas não devem simplesmente absorver o custo adicional das contribuições previdenciárias.
Como consequência desse aumento efetivo na carga tributária, vislumbra-se que haverá a formulação de numerosos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos perante os órgãos, as entidades e as empresas que integram a administração pública e que contratam por meio de licitações.
Historicamente, as estruturas que integram a administração pública não respondem, de forma eficiente, ao desafio de ter de implementar a nova legislação e, conjuntamente, analisar tantos pleitos de reequilíbrio, o que faz com que haja desgaste nas relações contratuais em curso, assim como o aumento indesejável dos ônus experenciados pelos contratados, o que pode afetar a qualidade e a entrega dos serviços/produtos contratados.
Além disso, a abordagem adotada costuma ser burocrática e não há um tratamento uniforme, dificultando a adequação das condições contratuais ao novo cenário tributário e econômico, o que também tende a agravar ainda mais o impacto financeiro nas empresas afetadas, e a impactar negativamente a continuidade das atividades contratadas.
Por todas as razões elencadas acima, entende-se como inquestionável o impacto direto na capacidade de execução dos contratos e nas propostas formuladas, sendo certo que as empresas que eram beneficiárias do regime especial só conseguiam oferecer preços mais reduzidos em razão da carga fiscal/tributária menor.

Isso significa que os contratos impactados devem gozar de presunção (mesmo que relativa) de desequilíbrio, e que é interesse da administração pública adotar uma postura mais célere e menos burocrática ao analisar os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro das empresas afetadas pela revogação da desoneração.
É nesse cenário que a advocacia pública de Estado, nas suas diferentes estruturas [1], enquanto órgão consultivo, se torna uma peça-chave para garantir o tratamento jurídico adequado e uniforme dos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro decorrentes do fim da desoneração da folha de pagamento.
A título ilustrativo, naquilo que interessa ao presente artigo de opinião, como evolução do disposto no artigo 131 da Constituição e na Lei Complementar nº 73/93, foram editadas diferentes normas que dispõem sobre as competências da Advocacia-Geral da União (AGU), entre as quais estão: a orientação normativa e a supervisão técnica dos órgãos jurídicos que integram a estrutura da administração pública; a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da administração federal; a unificação da jurisprudência administrativa; a prevenção e a mitigação das controvérsias no âmbito dos órgãos jurídicos da administração federal; e a edição de enunciados de súmula administrativa, resultantes de jurisprudência iterativa dos tribunais.
Ou seja, compreende-se que é papel nobre da AGU — enquanto advocacia pública de Estado — a emissão de pareceres jurídicos e orientações normativas que discorram sobre os atos conduzidos pelos diferentes órgãos e entidades que integram a administração pública, inclusive no âmbito da gestão dos contratos públicos celebrados, com o objetivo de uniformizar os entendimentos jurídicos aplicados e atender aos princípios da eficiência e da celeridade que guiam a atuação dos agentes públicos.
No particular, todas as advocacias públicas de Estado podem ou devem assumir o papel de protagonistas na uniformização do tratamento jurídico das hipóteses de reequilíbrio econômico-financeiro motivados pela reoneração da folha, de modo a superar dúvidas e controvérsias que podem muito bem prejudicar o interesse público de manter uma boa gestão dos seus contratos.
Cabe a tais entidades estabelecer orientações claras quanto aos critérios que devem ser observados pela administração pública ao avaliar tais pedidos, buscando uniformizar a interpretação e a aplicação das normas pertinentes, devendo definir parâmetros e diretrizes para análise e processamento desses requerimentos, inclusive sob uma ótica de presunção do cabimento da recomposição nesses casos específicos.
No período de adaptação à mudança de regime, em que se espera um alto volume de pedidos de recomposição ou reajuste contratual, definir procedimentos padronizados, com diretrizes claras, evitando que cada órgão ou ente público adote entendimentos diferentes sobre como tratar os impactos da reoneração da folha de pagamento nos contratos administrativos, não só vai garantir a celeridade e a eficiência, mas também evitará a sobrecarga dos gestores públicos e uma alta litigiosidade envolvendo o tema.
Comumente, a AGU envida esforços para disponibilizar minutas-padrão para servir de modelos aos assessorados, o que, além de agilizar as análises, reduz o risco de que sejam celebrados contratos e realizados procedimentos em descompasso com a legislação vigente [2].
Em um cenário de relevante mudança fiscal — como o decorrente da reoneração da folha — essa padronização se mostra ainda mais essencial, dado o volume de requerimentos e o impacto econômico considerável, de modo que a falta de uma abordagem coerente por parte da administração pública pode resultar em insegurança jurídica e desequilíbrios adicionais que podem levar, em último grau, à paralisação de serviços essenciais.
Um parecer ou orientação normativa da AGU ou de qualquer outra advocacia pública de Estado pode muito bem: definir a exigência de documentação simplificada para evitar exigências excessivas e burocráticas, considerando a presunção de direito ao reequilíbrio nesses casos; estabelecer possibilidade de redução de prazos para apreciação desses pedidos, especialmente em casos de grande impacto econômico ou setores estratégicos, para garantir a agilidade necessária, evitando que o desequilíbrio financeiro cause danos irreparáveis; estabelecer que o desequilíbrio seja reconhecido de forma presumida em casos nos quais a empresa formule sua proposta sob o regime de desoneração da folha de pagamento, especialmente em setores diretamente impactados pela medida; dispensando, em alguns casos, comprovações mais detalhadas se o impacto for amplamente reconhecido no setor.
Ademais, entende-se que é bastante oportuno que tal parecer ou orientação normativa venham propor um procedimento administrativo simplificado para a análise dos pedidos, reduzindo a burocracia com a criação de formulários de solicitação de reequilíbrio de fácil preenchimento e análise, o que permitiria a adoção de uma análise preliminar descomplicada para casos que envolvem desoneração da folha, bem como garantiria, em caso de não haver possibilidade de recomposição contratual, que o pagamento da indenização ocorra em procedimento célere e simplificado.
Em linhas gerais, entende-se que compete à advocacia pública de Estado sugerir ajustes nos fluxos internos, estabelecendo regras mais claras quanto ao processo de solicitação, análise e decisão sobre a recomposição contratual, a fim de se promover mais previsibilidade e transparência às empresas afetadas, além de proporcionar maior segurança jurídica consubstanciada na racionalização, na uniformização e na celeridade – essenciais a um tratamento mais justo e eficiente em um contexto de desafios econômico-financeiros.
Questão de salvaguarda do interesse público
A definição dessas diretrizes objetiva facilitar a adaptação das empresas às mudanças fiscais sem comprometer a continuidade de suas atividades, garantindo que a Administração Pública atue com razoabilidade e equilíbrio nas decisões, para que as empresas contratadas não sejam prejudicadas por medidas desproporcionais.
Inclusive, em outras oportunidades, motivada por pleitos de maior racionalização, celeridade, eficiência e economicidade, a AGU já tomou iniciativas exemplares e emitiu instruções normativas definindo que não serão necessárias análise e manifestação jurídica específicas nos casos em que o órgão de assessoramento jurídico emitir manifestação jurídica referencial acerca do procedimento [3].
A Manifestação Jurídica Referencial tem como premissa a promoção da celeridade em processos administrativos que possibilitem análise jurídica padronizada em casos repetitivos, que é exatamente o caso dos diversos pedidos de recomposição em decorrência do fim da desoneração da folha de pagamento [4].
Ou seja, permitir que manifestações jurídicas referenciais a respeito do desequilíbrio econômico-financeiro gerado pela reoneração da folha possam substituir análises específicas, decerto já contribuiria em muito para a celeridade e a eficiência necessárias tanto para as empresas, quanto para a própria administração pública, haja vista a necessidade de continuidade das obras e serviços.
Dessa forma, a atuação da advocacia pública de Estado na uniformização do tratamento jurídico dos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro não apenas é uma questão técnica, mas também de salvaguarda do interesse público, sendo capaz de evitar insegurança jurídica e de promover uma gestão pública mais eficiente, assim como de enfrentar os desafios econômico-financeiros impostos pelo fim da desoneração da folha de pagamento, o que tende a garantir a sustentabilidade dos contratos administrativos e a proteção do interesse público consubstanciado na melhor execução dos contratos celebrados para se assegurar efetividade na atuação do Estado brasileiro.
[1] Advocacia-Geral da União (Procuradoria-Geral da União, Procuradoria-Geral Federal e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), Procuradorias Estaduais e Procuradorias Municipais.
[2] BRASIL. Manual de Boas Práticas Consultivas: 4ª edição revista, ampliada e atualizada. Brasília: Consultoria-Geral da União, 2016.
[3] Orientação Normativa 88/2024
[4] PORTARIA NORMATIVA CGU/AGU Nº 05, DE 31 DE MARÇO DE 2022
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