Educação para todos: atuação da advocacia federal na universalização do acesso ao ensino médio
24 de abril de 2025, 6h03
A promulgação da Constituição de 1988 representou um marco na consolidação dos direitos sociais no Brasil, ao afirmar a educação como um direito fundamental e um dever do Estado. O artigo 205 da Carta Magna estabelece que a educação deve promover o pleno desenvolvimento da pessoa, sua preparação para a cidadania e qualificação para o trabalho. Apesar disso, a efetivação plena desse direito enfrenta obstáculos persistentes, principalmente no que se refere à universalização do acesso ao ensino público e gratuito.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº 9.394/1996, reafirma princípios como a igualdade de condições de acesso e permanência na escola e a garantia de padrão de qualidade (artigo 3º), fundamentos orientadores da atuação da advocacia pública na formulação e na implementação das políticas educacionais. A atividade consultiva da advocacia pública federal tem ido além da verificação formal da legalidade, contribuindo para a construção de uma imaginação institucional que impulsione o aperfeiçoamento das ações estatais em educação, com atenção à eficácia e ao impacto social das políticas, em articulação com estados e municípios (Cabral, 2021).
A normatividade infraconstitucional também reflete tais expectativas. A Lei nº 14.113/2020, que regulamenta o novo Fundeb, determina no artigo 50 que a União apoie políticas voltadas à melhoria da qualidade do ensino e à inclusão social. Essa diretriz já constava na Lei nº 9.424/1996, referente ao Fundef. A atuação da AGU na concretização dessas políticas é notável, como no Pacto Nacional pela Retomada de Obras da Educação Básica (MP nº 1.174/2023), que previu R$ 4,1 bilhões em investimentos para ampliar estruturas escolares, com repasses via FNDE, integrando o Novo PAC e criando 740 mil vagas na educação básica. A complexidade dessa ação justificou sua inclusão na Rede AGU de Segurança Jurídica, com a elaboração de modelos padronizados para contratações públicas em parceria com o MGI, contribuindo para a segurança jurídica dos processos administrativos.
Apesar dos avanços normativos, a efetivação desse direito enfrenta resistências estruturais, especialmente diante da exclusão social persistente e das disputas distributivas travadas nos espaços institucionais (Bezerra; Lima, 2021; Santos de Oliveira; Santelli, 2020). O acesso desigual à educação reproduz cenários de exclusão, limitando a inserção dos jovens das classes populares nas melhores oportunidades profissionais.
Dados recentes reforçam essa realidade. O Censo Escolar de 2023 do Inep apontou 7,7 milhões de matrículas no ensino médio, com queda de 2,4% em relação a 2022. Essa etapa também apresenta os maiores índices de evasão (5,9%) e repetência (3,9%) da educação básica. A Pnad Contínua de 2023 revelou que, embora 91,9% dos jovens entre 15 e 17 anos frequentem a escola, apenas 75% estejam no ensino médio, com desigualdades regionais acentuadas — no Norte, a taxa líquida de matrícula é de 65,9%, contra 81% no Sudeste.
O subfinanciamento é apontado como um dos principais entraves à universalização. Embora o Fundeb contemple o ensino médio, os recursos são insuficientes, sobretudo na modalidade integrada à educação profissional (Oliveira, 2009). Pesquisas como a de Carmo et al. (2014) revelam os impactos dessa limitação orçamentária na qualidade do ensino e, por consequência, no acesso ao ensino superior.
Papel estratégico
Nesse cenário, destaca-se a atuação da advocacia pública federal como peça-chave na formulação e na defesa jurídica das políticas educacionais. A Advocacia-Geral da União, responsável pela representação judicial e consultoria jurídica da União, tem sido fundamental para assegurar que as ações do Executivo estejam em consonância com os princípios constitucionais, promovendo, assim, a efetividade do direito à educação.

A qualificação técnica dos advogados públicos é elemento central para esse papel transformador. Sua formação contínua possibilita a proposição de soluções jurídicas eficazes e menos onerosas ao erário, contribuindo para a diminuição da judicialização e ampliando o retorno social das políticas. Exemplo disso é a atuação da AGU em acordos extrajudiciais sobre transporte escolar e distribuição de livros didáticos, o que reforça o papel da advocacia pública como função essencial à Justiça, com capacidade de promover consensos administrativos e superar entraves burocráticos na implementação de direitos sociais.
No campo contencioso, a AGU tem adotado postura proativa. Destaca-se a negociação de acordos sobre os repasses de complementação do Fundef, encerrando litígios que tramitavam há mais de duas décadas no STF e assegurando R$ 9 bilhões para dez estados. Outro exemplo é a atuação na ADPF 341, que impediu a aplicação retroativa de regras do Fies, garantindo direitos de estudantes já contemplados. Esses casos ilustram como a atuação qualificada da advocacia pública pode mitigar riscos orçamentários e assegurar maior eficiência jurídica na gestão das políticas públicas educacionais.
Entre suas principais funções está a prevenção e resolução de litígios que possam comprometer programas educacionais estratégicos, evitando que a judicialização impeça sua continuidade. Também cabe à AGU atuar na defesa da regularidade dos investimentos públicos em educação, garantindo que os recursos orçamentários sejam aplicados conforme os dispositivos constitucionais. A disputa por esses recursos, que frequentemente envolve órgãos de controle e o Poder Judiciário, representa um dos grandes entraves à universalização do ensino público.
Caso Pé-de-Meia
Um exemplo recente dessa atuação ocorreu com o programa Pé-de-Meia, instituído pela Lei nº 14.818/2024, que busca estimular a permanência de estudantes de baixa renda no ensino médio por meio de incentivos financeiros. Financiado com recursos do Fundo de Custeio da Poupança de Incentivo à Permanência e Conclusão Escolar para Estudantes do Ensino Médio (Fipem), o programa enfrentou questionamentos quanto à sua viabilidade orçamentária. A AGU teve papel decisivo ao defender, junto ao Tribunal de Contas da União, a legalidade da política e a manutenção de sua execução.
O programa contempla quatro modalidades de incentivo: matrícula (R$ 200/ano), frequência (R$ 1.800/ano), conclusão (R$ 1.000/ano) e Enem (R$ 200/ano). Os valores são repassados bimestralmente, mediante cumprimento de requisitos como frequência mínima de 80% e aprovação escolar. Financiado pelo Fundo de Custeio da Poupança de Incentivo à Permanência Escolar (FIPEM), gerido pela Caixa Econômica Federal, o programa prevê até R$ 20 bilhões em recursos, tendo destinado R$ 5,6 bilhões em 2024 e com previsão de R$ 7,5 bilhões para 2025.
Em janeiro de 2025, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou a suspensão de R$ 6 bilhões destinados ao Pé-de-Meia, sob alegação de irregularidades nas transferências de recursos dos fundos Fgeduc e FGO ao Fipem, alegando ausência de autorização orçamentária do Congresso Nacional. Em resposta, a AGU interpôs agravo, requerendo a revogação da cautelar ou sua suspensão por 120 dias, com base em três eixos: (1) legalidade das transferências conforme o artigo 11 da Lei nº 14.818/2024; (2) impacto social negativo da interrupção abrupta do programa; e (3) irreversibilidade do prejuízo aos beneficiários.
A AGU sustentou que, além da legalidade do procedimento, a suspensão contrariaria o princípio da continuidade dos serviços públicos e configuraria medida desproporcional. Em 12 de fevereiro de 2025, o TCU deu provimento parcial ao recurso, reconhecendo o perigo da demora reverso e os danos decorrentes da interrupção do programa. Determinou-se, ainda, que o Executivo apresentasse ao Congresso projeto de lei para abertura de crédito ou outro expediente legal compatível com o regime orçamentário.
Esse caso ilustra o papel estratégico da advocacia pública na formulação e na defesa de políticas públicas educacionais. A atuação da AGU não se limitou à esfera contenciosa, mas envolveu a construção jurídica do modelo de financiamento e a sustentação técnica de sua legalidade, e foi além, assegurou princípios da boa governança e a proteção do interesse público. O caso demonstra como uma atuação jurídica estatal qualificada contribui diretamente para a redução das desigualdades no acesso à educação, reafirmando o papel da advocacia pública na construção de um futuro mais justo e igualitário para os nossos jovens.
A atuação da advocacia pública federal na defesa do direito à educação revela-se fundamental para a consolidação de políticas públicas que visam à universalização do ensino médio no Brasil. Ao garantir a conformidade das ações governamentais com os preceitos constitucionais e legais, a AGU desempenha um papel estratégico na garantia de que os recursos destinados à educação sejam aplicados de forma eficiente e em benefício dos estudantes mais vulneráveis.
A decisão do Tribunal de Contas da União que suspendeu temporariamente os repasses do Pé-de-Meia, sob o argumento de irregularidades orçamentárias, colocou em risco o acesso de milhões de jovens ao incentivo financeiro condicionado à permanência na escola. No entanto, a atuação proativa da AGU, fundamentada nos argumentos da legalidade das transferências entre fundos, o impacto social negativo da suspensão e a necessidade de preservar a continuidade do serviço público — garantiu a revogação da medida cautelar. Essa vitória não apenas assegurou a manutenção do programa, mas também reforçou a importância de uma advocacia pública comprometida com a efetividade das políticas educacionais.
Por fim, o caso do Pé-de-Meia evidencia os desafios estruturais que ainda persistem na universalização do ensino médio, desde o subfinanciamento até a necessidade de mecanismos mais eficazes de fiscalização e gestão. A advocacia pública federal, ao atuar na interface entre o jurídico e o político, contribuiu para superar esses obstáculos, assegurando que o direito à educação prevaleça mesmo em cenários de contestação orçamentária. A educação para todos, como previsto na Constituição de 1988, exige não apenas vontade política, mas também uma estrutura jurídica sólida e uma advocacia pública capaz de defender os interesses coletivos com técnica e compromisso social. Assim, a AGU consolida-se como um agente indispensável na construção de um sistema educacional mais justo e inclusivo no Brasil.
Referências
BEZERRA, Vinícius; LIMA, Tatiane. “Constituição do direito à educação no Brasil: histórico e impasses na segunda década do século XXI” In: Educação: Teoria e Prática/ Rio Claro, SP/ v. 31, n.64, 2021.
CABRAL, Rodolfo. “A advocacia pública e a análise jurídica das políticas públicas” In: Jota. Observatório da Advocacia Pública. 24/05/2021. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/a-advocacia-publica-e-a-analise-juridica-das-politicas-publicas?utm_source=chatgpt.com Acesso em: 24/03/2025.
OLIVEIRA, Ramon de. “Possibilidades do Ensino Médio Integrado diante do financiamento público da educação” In: Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.1, p. 051-066, jan./abr., 2009.
OLIVEIRA, M. dos S. de; SANTELLI, I. H. da S. “O direito à educação na ordem constitucional brasileira: texto e contexto” In: Jornal de Políticas Educacionais, v. 14, n. 53, dez., 2020.
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