TCU e a nova gramática do controle: políticas públicas sob o prisma da eficiência constitucional
3 de maio de 2025, 8h00
No Estado democrático de Direito, o controle das políticas públicas pelo Tribunal de Contas da União não pode se limitar à legalidade formal. A missão institucional do TCU deve ser repensada à luz dos princípios e dos direitos fundamentais da Constituição.

Isso significa adotar um modelo de controle que assegure não apenas que as normas sejam cumpridas, mas que os recursos públicos estejam sendo aplicados de forma eficiente, eficaz e efetiva na promoção dos direitos sociais, especialmente nas áreas dos serviços essenciais ao alcance dos objetivos estatais estabelecidos e ao paradigma vigente de controle.
Papel constitucional do TCU e a boa administração pública
O controle externo precisa dialogar com a realidade dos cidadãos e, para isso, é preciso integrar princípios como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), os objetivos fundamentais da República (artigo 3º) e os princípios da administração pública (artigo 37), com destaque para a eficiência. Não se trata de substituir o gestor, mas de garantir que os recursos públicos sejam um instrumento real de transformação social.
Isso reforça a necessidade de aprofundamento nos estudos sobre o processo de avaliação das políticas públicas indiretas, sendo inclusive apontado, por parte da doutrina, um dever jurídico-constitucional nesse sentido. Ressalte-se que a eficácia e a eficiência de uma política pública somente podem ser aferidas mediante um processo de avaliação criterioso e técnico. (Valle, 2010)
Nesse contexto, o TCU tem papel fundamental no que se denomina o direito fundamental à boa administração pública. Não basta aplicar o percentual mínimo por exemplo em educação ou saúde, é necessário avaliar a efetividade dessas políticas. Isso exige um novo modelo de controle, baseado em auditorias operacionais, termos de ajustamento de gestão, participação cidadã e intercomunicação entre órgãos.
Novo olhar ao controle externo à luz de experiências internacionais
A ampliação do escopo de atuação do TCU encontra respaldo em experiências internacionais de fortalecimento do controle orientado a resultados. Tribunais de contas europeus, como os de Portugal, França e Alemanha, têm evoluído do enfoque tradicional na regularidade contábil e legalidade formal para um modelo que incorpora a aferição da eficácia e da eficiência das políticas públicas, especialmente na concretização de direitos sociais. Esse movimento traduz uma mudança paradigmática, em que o controle externo assume papel estruturante na promoção da justiça distributiva (Carvalho; Rodrigues, 2018).
A Constituição de 1988 estabelece um mandato abrangente ao TCU, conferindo-lhe competências que vão desde a realização de auditorias e determinações de providências até a imposição de sanções e a comunicação de irregularidades (Brasil, Constituição Federal, artigo 71). No entanto, mais do que órgão sancionador ou mero fiscal da legalidade, impõe-se ao TCU a responsabilidade de atuar como garantidor da efetividade dos direitos fundamentais. A dimensão material do controle, voltada à análise dos resultados, impactos e externalidades das políticas públicas, deve orientar a sua atuação para além dos parâmetros estritamente normativos (Cunda, 2011).
Nesse contexto, o controle externo deve ser compreendido como instrumento de densificação do conteúdo do mínimo existencial previsto na Constituição (Valle, 2010). Tal como já reconhecido por doutrina especializada, a efetividade dos direitos sociais pressupõe mecanismos de avaliação capazes de aferir a racionalidade, a legitimidade e a eficiência da alocação de recursos públicos (Barcellos, 2018).
Essa lógica justifica, por exemplo, o protagonismo do TCU na avaliação de desonerações fiscais como políticas públicas indiretas, ainda que travestidas de renúncia de receita, mas que têm potencial impacto redistributivo e devem ser submetidas a exigências análogas às das despesas diretas (Garcia; Leonetti, 2021).
Assim, a atuação do TCU em sintonia com padrões internacionais não se dá por mera aproximação institucional, mas como resposta necessária à constitucionalização do controle e à exigência de uma administração pública comprometida com a realização de seus fins — em especial, a dignidade da pessoa humana como fundamento da república (artigo 1º, III, CF) e a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais como objetivos fundamentais (artigo 3º, III, CF).
Do modelo tradicional à nova gramática do controle público
A trajetória do Tribunal de Contas da União revela, com nitidez, o movimento de superação do modelo tradicional de controle, outrora centrado na legalidade estrita e na verificação formal de conformidades. Essa abordagem, embora relevante em seu tempo, mostrou-se limitada diante das exigências de um Estado democrático de Direito que impõe à Administração Pública e, por consequência, aos seus órgãos de controle o dever de concretizar direitos fundamentais com base na eficiência, na equidade e na legitimidade das políticas públicas.
A nova gramática do controle demanda mais que técnica contábil: exige sensibilidade institucional para o impacto social das decisões, análise de resultados concretos e compromisso com a transformação da realidade. O controle deixa de ser um instrumento de mera apuração de falhas e passa a ser um catalisador de soluções, orientado à promoção do mínimo existencial, à boa administração pública e à realização dos objetivos fundamentais da República (artigo 3º, CF/88).
A atuação contemporânea do TCU, nesse sentido, deve combinar rigor técnico com visão estratégica. Auditorias operacionais, termos de ajustamento de gestão, indicadores de impacto e intercomunicação com a sociedade são os pilares desse novo arranjo institucional. Trata-se de um controle que não apenas reage ao passado, mas projeta o futuro: identifica riscos, sugere aperfeiçoamentos e potencializa políticas públicas que entregam valor social efetivo.
Sob o prisma da eficiência constitucional, entendida como a obrigação de maximizar o uso dos recursos públicos para a realização dos direitos fundamentais, o TCU se reposiciona como guardião da efetividade, não da mera legalidade. É essa virada que o insere como ator indispensável na construção de um Estado orientado por resultados, pelo diálogo federativo e pelo respeito à dignidade da pessoa humana.
Do velho paradigma de fiscalização à nova linguagem da corresponsabilidade institucional, o TCU assume, permanentemente, um papel decisivo: não apenas o de auditar contas, mas o de auditar compromissos constitucionais. E, com isso, fazer valer a Constituição onde ela mais importa: na vida concreta de quem dela mais precisa.
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Referências
BARCELLOS, A. P. D. Políticas públicas e o dever de monitoramento: “levando os direitos a sério”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, p. 251–265, 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Tribunal de Contas como instância dinamizadora do princípio republicano. Revista do Tribunal de Contas de Santa Catarina, set. 2008.
CARVALHO, F. L. de L.; RODRIGUES, R. S. O Tribunal de Contas no Brasil e seus congêneres europeus: um estudo comparativo. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, v. 18, n. 71, p. 225–248, jan./mar. 2018.
CUNDA, D. Z. G. Controle de políticas públicas pelos tribunais de contas: tutela da efetividade dos direitos e deveres fundamentais. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 1, n. 2, p. 111–147, jul./dez. 2011.
GARCIA, V.; LEONETTI, C. A. O controle e a avaliação pelo Tribunal de Contas da União das políticas públicas implementadas por desonerações tributárias no Brasil. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1, p. 242–265, 2021.
VALLE, V. R. L. do. Direito fundamental à boa administração e governança: democratizando a função administrativa. Tese (Pós-doutorado) – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Rio de Janeiro, 2010.
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