Precatórios, déficit e instabilidade: Brasil rumo a outra crise fiscal
3 de maio de 2025, 7h04
O cenário fiscal brasileiro projeta, para os próximos cinco anos, um desafio de grandes proporções, com potencial para desencadear uma nova crise de confiança nas instituições públicas. Um dos principais focos de tensão é o retorno da obrigatoriedade do pagamento integral dos precatórios, que voltam a ser contabilizados dentro do limite de gastos públicos a partir de 2027. Essa reintrodução ocorre em um ambiente de restrição fiscal crescente, o que tende a aprofundar os já conhecidos gargalos do orçamento federal.

A compressão orçamentária prevista é de magnitude sem precedentes. Estimativas oficiais apontam que o impacto dos precatórios poderá consumir parcela significativa da verba discricionária, reduzindo drasticamente a capacidade do governo de investir em áreas essenciais como saúde, educação, infraestrutura e programas sociais. Essa limitação compromete diretamente a execução de políticas públicas fundamentais para a estabilidade econômica e social do país.
Além do montante já conhecido, o estoque de dívidas judiciais potenciais — formado por ações ainda em tramitação — adiciona um fator extra de insegurança. Segundo dados da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2026, os riscos fiscais associados a essas demandas podem alcançar R$ 2,6 trilhões. A ausência de soluções estruturais para lidar com essa pressão crescente sobre as contas públicas reforça a percepção de que o Brasil poderá enfrentar uma nova ‘bomba fiscal’, que, se não desarmada a tempo, resultará não apenas em instabilidade econômica, mas também em abalos profundos na segurança jurídica [1].
Este artigo propõe uma análise dos principais fatores que configuram esse cenário de risco, além de resgatar o precedente histórico da PEC dos Precatórios, cuja lógica de postergação e flexibilização de compromissos pode voltar à pauta diante da deterioração fiscal iminente.
Impacto dos precatórios no arcabouço fiscal
A decisão de reintegrar os precatórios ao teto de gastos a partir de 2027, conforme as novas regras do arcabouço fiscal, lança uma sombra sobre a já limitada capacidade de gestão do orçamento público. De acordo com projeções oficiais, o governo federal terá de desembolsar R$ 124,3 bilhões em 2027, R$ 132 bilhões em 2028 e R$ 144 bilhões em 2029 apenas para quitação dessas dívidas judiciais já reconhecidas pela Justiça [2].
Esses valores representam um aumento substancial em relação aos patamares anteriores e pressionam diretamente a verba discricionária do orçamento. Para 2027, estima-se que, após o pagamento dos precatórios, o governo terá disponível apenas R$ 122,2 bilhões em despesas não obrigatórias — e, desse montante, R$ 56,5 bilhões já estarão comprometidos com emendas parlamentares impositivas.
Essa situação configura uma espécie de ‘asfixia orçamentária programada’. A rigidez das despesas obrigatórias associada à elevação das obrigações judiciais restringe drasticamente a capacidade do governo de agir em momentos de crise ou de implementar políticas públicas voltadas para o crescimento econômico e a redução da desigualdade. Além disso, a dificuldade em cumprir as metas fiscais estabelecidas pelo novo arcabouço pode agravar a percepção de risco do Brasil no mercado internacional, encarecendo o custo do financiamento da dívida pública e reduzindo o apetite de investidores por ativos brasileiros.
Precedente da PEC do Calote: institucionalização do risco
Para compreender plenamente os riscos do atual cenário, é fundamental relembrar o que ocorreu em 2021 com a aprovação da Emenda Constitucional nº 113/2021, popularmente conhecida como PEC dos Precatórios.
Naquele momento, pressionado pela necessidade de abrir espaço fiscal em meio a gastos extraordinários e demandas sociais crescentes, o governo federal alterou a Constituição para estabelecer um limite para o pagamento anual de precatórios. A medida, embora vendida como solução transitória, representou, na prática, um calote institucionalizado: credores com decisões judiciais definitivas viram o pagamento de seus direitos ser adiado sem previsão segura de quitação.

Embora tenha proporcionado alívio imediato — cerca de R$ 90 bilhões em 2022 —, a PEC inaugurou um precedente preocupante: o de que o Estado poderia, em momentos de dificuldade fiscal, modificar unilateralmente as condições de pagamento de seus débitos judiciais, afetando a segurança jurídica, minando a confiança dos credores e prejudicando o ambiente de negócios.
Além dos impactos econômicos, a PEC dos Precatórios acendeu alertas sobre a fragilidade das garantias institucionais no Brasil. O desrespeito às decisões judiciais definitivas comprometeu a credibilidade do país perante a comunidade internacional, elevando o prêmio de risco dos ativos brasileiros e afastando investidores em busca de ambientes jurídicos mais previsíveis.
Risco de repetição em 2027: agravantes em comparação a 2021
O contexto que se desenha para 2027 é, em muitos aspectos, ainda mais desafiador do que aquele que motivou a aprovação da PEC dos Precatórios em 2021. À época, o estoque de precatórios girava em torno de R$ 89 bilhões; agora, as projeções apontam valores superiores a R$ 124 bilhões apenas para o primeiro ano de reintegração dessas despesas ao orçamento [3].
Além disso, o quadro de rigidez orçamentária se agravou. A composição das despesas federais está hoje ainda mais dominada por gastos obrigatórios, como benefícios previdenciários, assistência social e folha de pagamentos. Segundo projeções do Tesouro Nacional, cerca de 94% das despesas primárias em 2027 estarão vinculadas a obrigações legais ou constitucionais [4].
O problema se torna ainda mais grave quando se considera o passivo oculto representado pelas demandas judiciais em curso. A LDO de 2026 estima que há cerca de R$ 2,6 trilhões em riscos fiscais decorrentes de processos contra a União, valor que representa mais de um quarto do PIB nacional. Em um ambiente de baixo crescimento econômico, elevado déficit primário e pressão política por aumento de gastos sociais, a tentação de reeditar mecanismos semelhantes à PEC do Calote torna-se ainda mais forte. Sem alternativas estruturais para a solução do problema dos precatórios, cresce o risco de medidas excepcionais que fragilizem novamente a segurança jurídica.
Conclusão
Diante do volume crescente dos precatórios e da fragilidade da gestão fiscal, o Brasil caminha para um ponto de inflexão. A partir de 2027, a falta de espaço orçamentário poderá comprometer não apenas a prestação de serviços públicos essenciais, mas também a própria credibilidade do Estado perante credores e investidores.
O precedente da PEC do Calote demonstra que, em momentos de pressão, soluções que fragilizam a segurança jurídica podem ser politicamente viabilizadas. Prevenir um novo calote e restaurar a confiança exige a adoção urgente de medidas estruturais, como a reforma do modelo de pagamento de precatórios, a criação de fundos garantidores e a melhoria da gestão de passivos judiciais. Mais do que uma questão técnica, trata-se de uma escolha política fundamental para a sustentabilidade das finanças públicas e para a preservação da segurança jurídica no país.
[1] https://www.cartacapital.com.br/economia/ldo-de-2026-estima-risco-de-r-26-trilhoes-em-demandas-judiciais-contra-a-uniao/
[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/04/governo-tera-r-86-bi-a-menos-para-custeio-e-investimentos-em-2027-com-precatorios-no-arcabouco.shtml
[3] https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-de-restos-a-pagar-rap
[4] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/governo-adia-resolucao-de-precatorios-e-foca-em-eleicoes-dizem-economistas/
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