'Pejotização' do trabalho: o que está em jogo no Supremo
1 de maio de 2025, 7h02
Não é mais novidade que o Supremo Tribunal Federal tem tentado nos últimos anos fazer a reforma trabalhista que não foi feita pelo Estado-Legislador em 2017. As reclamações constitucionais vinham atuando como meio para se alcançar a expansão do que não foi dito no acórdão da ADPF nº 324 ou no Tema nº 725 de Repercussão Geral, sendo certo que mesmo na ausência de aderência estrita às teses firmadas, ainda assim as reclamações vêm servindo como meio para revolver fatos e provas, analisar se há ou não relação de emprego e se a Justiça do Trabalho possui competência material para analisar as lides que sempre analisou.

Por meio de diversas decisões monocráticas ou das duas Turmas, em reclamações constitucionais ou agravos, o Supremo Tribunal Federal passou a decidir que as teses que liberaram a terceirização em atividade-fim igualmente liberaram o trabalhador para ser autônomo e poder decidir se desejaria ser empregado ou “pejotizado”. É como se o trabalhador, pessoa física, prestadora de serviços em favor de outrem, de forma dependente, passasse, de uma hora para a outra, a ter plenos poderes de negociação, com total autonomia, podendo optar por ser celetista ou PJ.
Some-se a essa diretriz decisiva a conclusão segundo a qual a Justiça do Trabalho sequer detém competência material para processar e julgar as lides que debatem sobre se há fraude ou não na contratação, sendo, segundo diversas decisões da corte, necessária tão somente a confecção de um instrumento formal, em que o trabalhador declara a sua autonomia e concorda em não ser considerado empregado. O detalhe mais chocante desse direcionamento hermenêutico é que o artigo 114, I da CRFB permanece o mesmo, declarando expressamente que a Justiça do Trabalho é materialmente competente para processar e julgar todos os casos que tratam de relação de trabalho.
Estaria a nossa Corte Suprema tentando operar mutação constitucional, já que o texto constitucional permanece o mesmo, mas o seu sentido vem sendo desfigurado? Parece que sim, pois concluir que a Justiça especializada não é competente para processar e julgar relação de trabalho, quando literalmente o dispositivo prevê justamente isso, é, de fato, modificar o sentido da Constituição, sem, no entanto, modificar o seu texto.
É bem verdade que isso não seria sequer mutação constitucional, pois esta somente é possível quando a norma do Texto Maior permite mais de um sentido, sendo certo que todas as possibilidades hermenêuticas e capazes de atualizar o texto normativo à realidade, devem estar contidas na moldura do dispositivo, vez que é vedado ao Estado-Juiz modificar o texto mesmo da Constituição.
Acho que, a essa altura do estado de coisas, ninguém mais acredita que ministros da corte que interpreta a Constituição não saibam o que está na Carta Política, ou não entendam o que é relação de emprego e como ela se diferencia da relação de trabalho. Não é erro de interpretação, é projeto, é método e é, sobretudo, vontade de que as relações de trabalho tenham um novo rumo no país.
Como a Justiça do Trabalho, segundo resumiu o ministro Mendes, tem descumprido as decisões vinculantes do Supremo Tribunal Federal, fazendo aumentar o número das reclamações constitucionais, melhor mesmo afetar logo um recurso para servir de modelo para resolver, com força vinculante, se os trabalhadores, autônomos que são, podem decidir se serão ou não empregados segundo o contrato, mesmo que o sejam no mundo dos fatos.

O sorteado para esse projeto de reforma trabalhista total foi o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1.532.603-PR, tendo o ministro Gilmar Mendes determinado a suspensão de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre: a competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas em que se discute a fraude no contrato civil de prestação de serviços — a chamada “pejotização”; a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado no julgamento da ADPF nº 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva do cidadão; e a questão referente ao ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil, averiguando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante.
Nunca é demais recordar que nas razões de decidir da ADPF nº 324 não se tratou sobre a chamada “pejotização”, até porque não se poderia fazê-lo, pois o que se discutia na referida ação era o possível descumprimento de preceito fundamental pelo Tribunal Superior do Trabalho e TRTs, que, valendo-se da Súmula nº 331, proibiam terceirização em atividade-fim, invadindo, dessa forma, a liberdade de contratação e o princípio da legalidade.
Ao revés disso, no voto do ministro Alexandre de Moraes, Sua Excelência afirmou que o Estado — seja legislativamente, seja judicialmente — não poderá impor regras rígidas e específicas de organização interna das empresas, cabendo tal decisão aos próprios empreendedores, que, por sua conta e risco, devem realizar sua opção de modelo organizacional dentro das lícitas e legítimas possibilidades consagradas pelos Princípios Gerais da Atividade Econômica e estabelecidos no artigo 170 da Constituição. Ressaltou o ministro que essa opção será lícita e legítima desde que não proibida ou colidente com o ordenamento constitucional; bem como, desde que, durante a execução dessa opção — na hipótese de terceirização —, as empresas “tomadoras” e “prestadoras” não violem direitos sociais e previdenciários do trabalhador e a primazia dos valores sociais do trabalho, que, juntamente com a livre iniciativa, tem assento constitucional como um dos fundamentos do Estado Democrático brasileiro.
Em outras palavras, nas razões de decidir da ADPF nº 324 ressalvou-se a possibilidade de distinção, quando houver fraude na contratação de pessoa física, cuja mão de obra intermediada por empresa prestadora de serviços em favor de empresa tomadora de serviços é guiada pela ilicitude, pois a contratação viola normas celetistas e constitucionais. Nunca, naquela decisão, houve a chancela para contratação de pessoas físicas via pessoa jurídica, até porque essa relação seria linear, não triangular, não havendo, portanto, terceirização.
A “pejotização” não é terceirização, materializando-se aquela na fraude e na ilicitude, quando uma pessoa física não tem alternativa para a contratação, senão concordar em ser contratada por meio de pessoa jurídica. Em linguagem bem simples, é como se uma pessoa física não fosse considerada como tal para prestar serviços, embora o respectivo trabalho seja feito justamente pelo ser humano, que trabalha de forma pessoal e sob dependência.
Não existe “pejotização” lícita, o que há é um legítimo contrato de prestação de serviços, que sempre foi assegurado pela Lei Civil e pela própria CLT. A fraude e a manipulação da realidade para contratação de pessoa física por meio de pessoa jurídica sempre foram combatidas no campo da Justiça do Trabalho, estamento do Poder Judiciário que detém competência material para dizer se há ou não relação de emprego, o tipo de trabalho que é prestado e a possível existência de fraude na contratação trabalhista.
O que se tenta discutir, por meio do Tema nº 1.389, de Repercussão Geral, é acrescer texto ao que já fora decidido na ADPF nº 324 e no Tema nº 725 de Repercussão Geral. Ou melhor, possivelmente fazer o que não foi feito anteriormente e, ao submeter a temática novamente ao Plenário, resolver sobre a liberação total da fraude trabalhista, desde que haja a formalização da “vontade”.
Como se disse acima, também será debatido se a Justiça Trabalhista tem competência material para processar e julgar casos envolvendo trabalhadores autônomos, quando a alegação é de fraude na contratação. É dizer, a Corte Constitucional dirá se a literalidade do artigo 114 da CRFB/88 deve ser observada, ou se a Justiça Comum, que não tem competência constitucional trabalhista, deve ser o ramo do Poder Judiciário apto a resolver sobre a existência ou não de relação de emprego e trabalho.
Difícil de entender, já que o Estado-Juiz, ainda que tenha poderes para proferir decisões com força vinculante, não pode acrescer sentido à regra constitucional que trata sobre competência.
Acresça-se, ainda, que não cabe à Corte Constitucional tratar sobre matéria infraconstitucional e ônus da prova é claramente matéria afeta às instâncias inferiores ao STF, mas isso parece não importar à corte, que recentemente julgou o Tema nº 1.118, que trata justamente sobre ônus da prova para responsabilização do ente estatal em caso de terceirização lícita.
Impacto econômico e saúde do ‘pejotizado’
Ainda não se sabe quando haverá audiência pública, quantos serão os amici curiae e quando o recurso afetado será julgado, mas a decisão que ordena a suspensão dos processos trabalhistas já tem impacto enorme nas Varas do Trabalho de todo o Brasil, pois há unidades em que as demandas tratando sobre trabalho autônomo são muitas. Some-se a isso, o impacto econômico negativo para a opção em se contratar trabalhador de forma celetista ou “pejotizada”, já que o recolhimento de tributos é alterado diante de um sentido ou outro.
Outra questão que merece ser levada à corte em possível audiência pública, é a proteção à saúde do trabalhador “pejotizado” em comparação aos colegas de trabalho regidos pela CLT e que trabalham no mesmo ambiente laboral, sendo certo que o “autônomo” não se submeterá aos treinamentos obrigatórios aos empregados, não usufruirá dos mesmos EPIs e não receberá adicionais de insalubridade ou periculosidade.
O Supremo Tribunal Federal avançou bastante no que toca à temática de proteção ao meio ambiente, mas igualmente precisa avançar, para pensar no impacto que uma decisão liberalizante para o não cumprimento de normas laborais protetivas poderá ter impacto extremamente negativo à proteção ao meio ambiente laboral sadio e seguro.
Com a palavra, a corte!
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