Crítica ao artigo 'Atualização do Código Civil e Propostas de Segurança Jurídica', de Rosa Maria Nery
1 de maio de 2025, 15h24
“A concentração de todos os poderes — legislativo, executivo e judiciário — nas mesmas mãos, seja de um único indivíduo, de poucos ou de muitos, e seja de forma hereditária, autoproclamada ou eletiva, pode ser justamente considerada a própria definição de tirania.”
James Madison, Federalista nº 47

A tramitação do Projeto de Lei 4/2025, que propõe a reforma do Código Civil, tem suscitado críticas sérias quanto aos riscos que representa para a legalidade, a segurança jurídica e a democracia republicana. Em resposta, a professora Rosa Maria Nery publicou um artigo buscando defender o projeto sob o argumento de que ele promoveria “adaptação” e “segurança jurídica”. É preciso, contudo, desmontar essa retórica e expor o que ela realmente encobre: um caso clássico de novilíngua aplicada ao Direito, que mascara a entrega de um poder desmedido ao juiz, compromete a previsibilidade normativa e viola os princípios fundamentais da Constituição brasileira.
Nery sustenta que a proposta busca conferir “maior clareza” e “segurança jurídica” ao distinguir regimes contratuais — civil, empresarial, de consumo e de trabalho. Essa distinção, porém, é uma cortina de fumaça: no sistema jurídico brasileiro, as relações de consumo e trabalhistas já são reguladas por legislações específicas e consolidadas, como o Código de Defesa do Consumidor (CDC, Lei nº 8.078/1990) e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, Decreto-Lei nº 5.452/1943), que possuem lógicas próprias e proteções especializadas.
A tentativa de transplantar conceitos dessas áreas ao Código Civil, sem considerar o arcabouço normativo existente, não traz clareza, mas sim o risco de conflitos normativos e insegurança jurídica, comprometendo direitos de empresas, consumidores e trabalhadores, minimamente assentados pela jurisprudência. Sob a ótica econômica, aliás, é bom lembrar que todos os três pagarão a conta da incerteza resultante desse projeto de lei, caso ele seja aprovado.
Além disso, o PL 4/2025 não apenas introduz novos conceitos vagos, mas também distorce os já existentes, como a “função social do contrato”, presente no artigo 421 do Código Civil atual. Ao tratar a função social como um requisito de validade do contrato, o PL mistura conceitos distintos, gerando uma confusão técnica que agrava a insegurança jurídica, pois a função social não pertence ao plano da validade, mas sim ao da interpretação e aplicação contratual.
O verdadeiro problema, entretanto, está na introdução generalizada de conceitos vagos e fluidos, como “função social” e “ordem pública”, em espaços normativos antes rigidamente delimitados, especialmente no âmbito contratual.
O PL 4/2025, por exemplo, no artigo 11, §2º, limita os direitos da personalidade “respeitando a boa-fé objetiva e não baseada em abuso de direito” — conceitos abertos que, na prática, delegam ao juiz a tarefa de definir seus contornos, transformando-o em um soberano interpretativo em seara extremamente complicada que é a dos direitos personalíssimos, ou seja, inerentes à pessoa (vida, liberdade, honra, privacidade, intimidade etc.). Essa fluidez normativa, longe de promover segurança jurídica, amplia a insegurança, a litigiosidade e o arbítrio judicial permeia todo o PL 4/2025, em especial, no campo dos contratos, multiplicando os danos ao custo Brasil.
A clareza que a segurança jurídica exige não se compadece com essa fluidez semântica que o PL 4/2025 institucionaliza no Código Civil. Como Randy E. Barnett argumenta em Restoring the Lost Constitution, a Constituição deve ser interpretada segundo seu significado original para proteger a “presunção de liberdade” [1], que presume qualquer restrição à liberdade individual como inconstitucional, a menos que o governo prove sua necessidade e adequação.
No Brasil, essa presunção de liberdade é extraída do preâmbulo da Constituição de 1988, que estabelece como objetivo “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, e do caput do artigo 5º, que garante “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Esses dispositivos refletem o princípio de Barnett de que “primeiro vêm os direitos, depois o governo”[2], colocando a liberdade individual como o núcleo da ordem constitucional que orienta todas as relações jurídicas, incluindo — sob a perspectiva brasileira — aquelas reguladas pelo Código Civil.
O Código Civil, como norma infraconstitucional, deve ser um instrumento que concretize esses direitos fundamentais, garantindo previsibilidade e segurança às relações privadas, como contratos e direitos de personalidade. No entanto, ao introduzir conceitos vagos como “função social” e “ordem pública” sem critérios objetivos, o PL 4/2025 compromete a segurança jurídica (art. 5º, inciso XXXVI) e a liberdade contratual (artigo 5º, inciso II), permitindo que juízes acabem, na prática, restringindo direitos nos casos imediatos sob sua análise, violando a presunção de liberdade que a Constituição exige.
Ressalte-se, por oportuno, que a tramitação do PL 4/2025, sob a relatoria do senador Rodrigo Pacheco, foi aprovada sem que a sociedade ou o próprio Judiciário fossem devidamente ouvidos, em um processo descrito pelo Estadão, no editorial do dia 28 de abril de 2025, como “desprovido de critérios democráticos”. Essa ausência de debate público é agravada pela falta de clareza normativa no texto do PL, que, ao delegar aos juízes a interpretação de conceitos elásticos, transforma o Código Civil em um instrumento de poder judicial, e não de proteção ao cidadão.
Como adverti em “O Código Fluido e o Juiz Soberano”, a expansão de conceitos abertos no Código Civil transforma o juiz em legislador de fato, cuja interpretação subjetiva passa a ditar o Direito, em detrimento da soberania do legislador e da previsibilidade para o cidadão.
Violação da presunção de liberdade e da separação de Poderes
A fluidez normativa do PL 4/2025, ao introduzir conceitos vagos como “função social” e “ordem pública” no âmbito contratual, não apenas compromete a segurança jurídica, mas também viola diretamente a presunção de liberdade implícita na Constituição de 1988. Barnett, tratando do sistema americano, em Restoring the Lost Constitution, argumenta que a presunção de liberdade exige que qualquer restrição aos direitos individuais seja justificada pelo governo como necessária e apropriada [3].
No Brasil, essa presunção está ancorada no artigo 5º, inciso II, que assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e no inciso XXII, que garante o direito de propriedade, essencial para a liberdade contratual. Esses dispositivos exigem que as normas sejam claras e objetivas, para que os cidadãos possam exercer suas liberdades sem o risco de restrições arbitrárias. Contudo, ao delegar aos juízes a tarefa de dar concretude a conceitos elásticos, o PL 4/2025 permite que eles restrinjam a liberdade contratual e o direito de propriedade sem a devida justificação, invertendo o ônus constitucional: o cidadão, e não o Estado, passa a ter que provar a legitimidade de seus direitos, o que é incompatível com a ordem constitucional brasileira.
Essa delegação de poder ao Judiciário também constitui um ataque frontal à separação de poderes (artigo 2º, CF/88). Barnett, em Restoring the Lost Constitution, alerta que a Constituição deve ser interpretada segundo seu significado original para evitar que aqueles que governam por leis tenham a capacidade de criar as leis pelas quais governam [4], minando a legitimidade do processo legislativo.
No Brasil, a função de legislar cabe ao Congresso (artigo 44, CF/88), que representa a soberania popular (artigo 1º, parágrafo único, CF/88). Ao transferir aos juízes a competência para criar normas por meio da interpretação de conceitos vagos, o PL 4/2025 transforma o Judiciário em legislador, permitindo que decisões judiciais substituam o debate democrático. Isso é uma violação direta do equilíbrio de poderes, pois, como Barnett argumenta, “a Constituição deve limitar o poder dos governantes, não expandi-lo” [5], assegurando que a liberdade individual não seja subordinada ao arbítrio judicial.
Desequilíbrio republicano e problema das facções
Além disso, a expansão do poder judicial proposta por Nery é incompatível com o republicanismo que fundamenta a CF/88. Barnett, em Our Republican Constitution, define o republicanismo como um sistema que protege a soberania individual contra o arbítrio majoritário [6], uma ideia que ressoa com o preâmbulo da CF/88, que busca garantir a liberdade e a igualdade como valores supremos.
No entanto, ao transferir aos juízes a tarefa de complementar normas vagas, o PL 4/2025 aumenta desmedidamente o poder do Judiciário, rompendo o equilíbrio entre os poderes que é essencial ao republicanismo. Como Madison adverte no Federalista nº 47, “A concentração de todos os poderes — legislativo, executivo e judiciário — nas mesmas mãos, seja de um único indivíduo, de poucos ou de muitos, e seja de forma hereditária, autoproclamada ou eletiva, pode ser justamente considerada a própria definição de tirania” [7]. No Brasil, o desequilíbrio causado pelo PL fere o princípio republicano (artigo 1º, CF/88), pois concentra no Judiciário um poder que deveria ser compartilhado democraticamente.
Esse desequilíbrio também é capaz de gerar o problema das facções descrito por Madison no Federalista 10 [8]. Lá ele alerta que “facções” — grupos que agem em prol de interesses particulares em detrimento do bem comum — são uma ameaça à estabilidade republicana. Ao dar aos juízes o poder de interpretar conceitos vagos, o PL 4/2025 cria um ambiente onde facções judiciais podem surgir: juízes, influenciados por suas próprias convicções pessoais ou pressões políticas, podem formar grupos que interpretam essas normas de maneira divergente, gerando decisões inconsistentes e imprevisíveis.
Isso é evidente nos dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que mostram que, em 2023, o Brasil tinha mais de 80 milhões de processos judiciais em tramitação, muitos deles decorrentes de interpretações divergentes sobre normas abertas, como a “função social do contrato” (artigo 421 do Código Civil de 2002).
Novilíngua e impactos na legitimidade constitucional
Além das consequências práticas e institucionais, é preciso atentar também para o modo como a linguagem foi deformada para encobrir esses riscos. Ao tentar minimizar os riscos apontados, Nery recorre a um expediente clássico: desloca a discussão para as intenções dos juristas, acusando os críticos de “leituras ultrapassadas ou distorcidas”.
Trata-se de uma erística conhecida, que evita o mérito do argumento para atacar a disposição do interlocutor. Em vez de enfrentar o fato — a abertura normativa desproporcional, o risco de arbítrio judicial e a tramitação antidemocrática —, a resposta oferecida é um apelo à boa intenção dos reformadores. Mas intenções não substituem normas claras. O Estadão, em seu editorial já citado, reforça essa crítica ao destacar que o PL 4/2025 não é apenas falho tecnicamente, mas prejudicial ao país, pois, ao ampliar a insegurança jurídica, compromete setores vulneráveis da população e combate elites e empresas que o próprio texto pretende proteger, prevenir, educar e socializar.
A maior falha de Nery, contudo, é de natureza conceitual: ao defender a abertura normativa como “adaptabilidade” ou “modernização”, ela incorre em verdadeira novilíngua. Não se trata apenas dos conceitos já conhecidos, embora vagos, de “função social” e “ordem pública”. O PL 4/2025 vai além, introduzindo termos inventados e de vaguidade extrema, como “risco especial e diferenciado”, “animais do entorno doméstico que compõem a esfera da personalidade humana” e a substituição de “alimentos” por “dependente econômico”.
O que é “risco especial e diferenciado”? O que define o “entorno doméstico”? E “dependente econômico”, que pode abarcar qualquer pessoa que receba ajuda financeira, rompe com a precisão do conceito de “alimentos” no direito de família, abrindo espaço para interpretações arbitrárias. Tais expressões, além de carecerem de definição jurídica precisa, soam mais apropriadas a um romance distópico do que a um Código Civil.
Esses conceitos, desprovidos de critérios objetivos, intensificam a fluidez normativa e entregam aos juízes um poder ilimitado para moldar direitos e deveres, subvertendo os princípios jurídicos em favor de interpretações arbitrárias.
O mais grave, contudo, é perceber nas palavras da professora Nery, uma das integrantes do comitê responsável pela reforma, que o aumento na utilização de conceitos vagos ou abertos é intencional. E isso nada tem a ver com o sistema processual de precedentes judiciais. Primeiro, porque os tribunais podem fixar precedentes judiciais sobre quaisquer questões de aplicação e interpretação da lei, independentemente de o dispositivo analisado conter ou não conceitos abertos.
Segundo, a ideia de que a “adaptabilidade” ou “modernização” do direito deve se sobrepor ao respeito à literalidade da lei é equivocada e não se sustenta nem mesmo em países de tradição jurídica do common law. Conforme defendido por Barnett [9], a “construction” (ato do aplicador do direito de dar eficácia normativa ao texto legal, construindo uma regra ou princípio suplementar para aplicar o direito de maneira consistente e legítima, mas, ainda preso ao espírito da norma e aos seus limites textuais) só tem espaço quando o texto legal não é claro o suficiente para resolver o litígio.
Fracasso do coletivismo e traição aos direitos naturais
Essa manipulação da linguagem, que mascara o aumento da fluidez normativa, não é apenas um problema técnico: ela reflete uma visão que trai os direitos naturais que a Constituição brasileira, em seu núcleo, busca assegurar. Os dispositivos do novo código, tal como formulados, enraízam-se em uma filosofia coletivista que, sempre que implementada, fracassou desgraçadamente, causando sofrimento sobretudo aos mais vulneráveis. A preservação da liberdade individual exige mais do que boas intenções.
Exige a observância rigorosa da lógica dos direitos naturais, como elucidada por Randy Barnett em Our Republican Constitution: “Given the nature of human beings and the world in which they live, if we want to achieve Y, then we ought to do Z” [10]. Em termos concretos: Given: O ser humano é livre, racional, vulnerável e vive em escassez de recursos; If: Queremos construir uma sociedade em que cada indivíduo possa buscar sua própria felicidade, segurança e florescimento; Then: Devemos proteger de forma objetiva e estável a vida, a liberdade e a propriedade de cada pessoa.
Essa lógica não é apenas filosófica: ela é prática e histórica (inclusive na história brasileira). A experiência humana demonstra que, quando essas condições não são respeitadas, o resultado é a decadência social, o arbítrio estatal e o sofrimento dos mais pobres. O Projeto de Lei 4/2025, ao instituir cláusulas abertas e entregar a definição de direitos ao arbítrio judicial, rompe essa arquitetura fundamental.
Substitui a moldura protetora da liberdade por uma moldura móvel, flexível e mutante, onde o intérprete — e não o cidadão — torna-se o verdadeiro soberano. A história ensina: sociedades que abandonam a estrutura objetiva dos direitos naturais, em favor de princípios morais vagos, não promovem justiça; promovem opressão.
Conclusão
É verdade que o PL traz algumas medidas que poderiam, em tese, aumentar a previsibilidade, como a desjudicialização de inventários (artigo 267) e a regulamentação da sucessão de bens digitais (art. 267). Mas esses avanços são ofuscados pelo risco sistêmico de um Código que, ao abraçar a fluidez, transforma o juiz em soberano e o Direito em um campo de incertezas. O Estadão, já citado, é incisivo ao afirmar que a reforma do Código Civil é desastrosa porque, ao ser aprovada sem critérios democráticos e sem clareza normativa, amplia a insegurança jurídica e compromete o próprio regime democrático.
No Judiciário, o cenário não será diferente: juízes, munidos de conceitos como “função social”, “ordem pública” e “risco especial e diferenciado”, terão ainda mais liberdade para decidir com base em suas convicções pessoais, e não na lei, possibilitando a criação de facções judiciais capazes de ameaçar a estabilidade republicana, como alertado por Madison no Federalist nº 10.
A clareza da lei é condição da liberdade. A previsibilidade das normas é fundamento do Estado de Direito. E a responsabilidade parlamentar é garantia da soberania popular. O PL 4/2025, longe de modernizar o sistema, compromete esses pilares ao substituir a vontade da lei pela vontade do intérprete, violando o núcleo da Constituição brasileira — os direitos fundamentais, a separação de poderes e a soberania popular.
A novilíngua de Nery, tal como o Ministério da Verdade de George Orwell em 1984, pode até disfarçar o problema, reescrevendo a realidade para justificar o arbítrio, mas não o elimina: um Código fluido gera um juiz soberano — e um juiz soberano é a antítese do Direito. Sem clareza, não há liberdade. Sem liberdade, não há República. O arbítrio nasce quando o Direito se dissolve na linguagem.
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[1] Barnett, Randy E. Restoring the Lost Constitution: The Presumption of Liberty. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2ª ed., 2014, p. 235-271.
[2] Ob. Cit. p. 4
[3] Ob. Cit., p. 235-271.
[4] Barnett, Randy E. Our Republican Constitution: Securing the Liberty and Sovereignty of We the People. Nova York: Broadside Books, 2016, p.4.
[5] Ob. Cit., p.1.
[6] Ob. Cit., p. 18-26.
[7] Madison, James. The Federalist Papers, No. 47, in Hamilton, Alexander; Madison, James; Jay, John. The Federalist Papers. Edição da Liberty Fund de 2001.
[8] Madison, James. The Federalist Papers, No. 10, in Hamilton, Alexander; Madison, James; Jay, John. The Federalist Papers. Edição da Liberty Fund de 2001.
[9] Randy E. Barnett, Interpretation and Construction, 34 Harv. J.L. & Pub. Pol’y 65 (2011), disponível em https://scholarship.law.georgetown.edu/facpub/820.
[10] Ob. Cit., p. 8-9.
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