Relativização da impenhorabilidade salarial e a proteção do mínimo existencial
2 de junho de 2025, 16h19
O ordenamento jurídico brasileiro parte da premissa de que o patrimônio do devedor responde pelo cumprimento de suas obrigações (artigo 789, CPC/2015). Essa regra, porém, não é absoluta: há bens e valores que, por expressa disposição legal, são protegidos contra atos de constrição. Essa proteção tem fundamento constitucional, especialmente na dignidade da pessoa humana e na preservação do mínimo existencial. Diante da necessidade de conferir efetividade à atividade executiva, essas garantias têm sido relativizadas. É nesse cenário que o Tema 1.230 do Superior Tribunal de Justiça ganha especial relevo: equilibrar efetividade da execução e tutela dos direitos fundamentais do executado.
O artigo 833 do CPC/2015 apresenta um rol de bens que — muito embora a regra em nosso ordenamento seja a responsabilização patrimonial do devedor e a penhorabilidade de seus bens – não podem ser alcançados pela penhora executiva. Isso porque o legislador se preocupou em equilibrar a garantia à tutela executiva efetiva e o resguardo da dignidade humana do devedor, de modo que direitos não patrimoniais não fossem atingidos pela execução [1]. A lei busca “a preservação do mínimo patrimonial indispensável à existência condigna do obrigado, sem privá-lo de bens sem os quais sua vida se degradaria a níveis insuportáveis” [2].
Dentre as hipóteses trazidas pelo artigo 833, no inciso IV estabelece-se serem impenhoráveis “os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal”. Trata-se de “verdadeira vala comum”, contendo doze figuras de impenhorabilidade distintas entre si, mas que possuem em comum o caráter remuneratório destinado ao sustento familiar do devedor e, portanto, de natureza alimentar [3].
É justamente em razão desse aspecto remuneratório comum a todas essas figuras, e por ser o salário a mais comum delas, que iremos nos referir às prestações pecuniárias do artigo 833, inciso IV, como verbas salariais lato sensu.
O § 2º do artigo 833 traz a ressalva de que não serão abrangidas pela impenhorabilidade aquelas importâncias que excedam cinquenta salários-mínimos mensais e os casos de dívida alimentícia. Segundo lá consta: “o disposto nos incisos IV e X [4] do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º”.
Já havia, no CPC/1973 [5], exceção semelhante no dispositivo correspondente ao artigo 833, mas limitada, exclusivamente, às prestações alimentícias. O CPC/2015, por sua vez, trouxe novos contornos a essa situação. Agora, além de ser garantida a penhorabilidade salarial para obrigações alimentícias independentemente de sua origem, a penhora também poderá alcançar as verbas remuneratórias do executado em casos de dívida não alimentícia, desde que se concentre nos valores excedentes a cinquenta salários-mínimos.
Ao que nos parece, a ressalva do §2º foi decisão acertada do legislador. Isso porque impede que o executado que possua fonte de renda tão vultuosa, bastante superior ao necessário para a satisfação da maioria dos lares brasileiros, se escuse do cumprimento da obrigação [6]. Todavia, o novo dispositivo não ficou livre de críticas. Muito embora a mera positivação da possibilidade de penhora salarial em casos de dívidas não alimentares tenha sido celebrada por considerável parcela da doutrina, o patamar de cinquenta salários-mínimos foi tido como desproporcional por muitos [7].

De fato, o valor estabelecido pelo §2º é elevado se comparado à realidade econômica do brasileiro médio. Enquanto a legislação estabelece cinquenta salários-mínimos (R$ 75.900 [8]) como valor mínimo garantidor da dignidade humana do devedor, a média salarial dos brasileiros no ano de 2024 não ultrapassou R$ 3.225 [9].
Registraram-se, ainda, entendimentos contrários à fixação de um teto para a impenhorabilidade salarial, por considerarem a medida desvantajosa. Nessa perspectiva, seria mais adequado que o juiz definisse o valor mínimo para a garantia da dignidade e bem-estar do executado conforme a análise do caso concreto, atentando-se às condições particulares do devedor e à proporcionalidade [10].
E não demorou para que essas discussões chegassem ao Superior Tribunal de Justiça.
Entendimento da corte
Já em 2018, no REsp 1.747.645/DF [11], de relatoria da ministra Nancy Andrighi, decidiu-se pela aplicação literal do disposto na legislação, apesar do pleito da parte pela relativização da regra. No ano seguinte, nos Embargos de Declaração nos EREsp 1.518.169/DF [12], também de relatoria da ministra Nancy Andrighi, falou-se na possibilidade de flexibilização da impenhorabilidade de salários inferiores a cinquenta salários-mínimos, não exclusivamente em razão do disposto no artigo 833, IV, § 2º, mas em decorrência da evolução jurisprudencial. Essa postura de flexibilização veio a ser novamente adotada pela Corte Superior em outras ocasiões [13].
É de se notar que o inciso correspondente no CPC/1973, embora não possuísse limitação quanto ao valor de cinquenta salários-mínimos, também foi objeto de relativização pelo STJ [14].
Em 2023, a questão veio a ser discutida em Embargos de Divergência no REsp 1.874.222/DF [15], de relatoria do ministro João Otávio de Noronha. Conforme o entendimento firmado pela maioria, a supressão do vocábulo “absolutamente” do caput do artigo 833 do CPC/2015, quando em comparação ao CPC/1973, demonstra que as hipóteses ali dispostas são de impenhorabilidade relativa. Portanto, cabível sua flexibilização excepcional mediante o sopesamento dos princípios da menor onerosidade e da efetividade, quando não houver qualquer outro meio executório que garanta a satisfação do credor.
Por outro lado, essa postura relativista quanto ao §2º do artigo 833, parece simplesmente ignorar a disposição da lei sem, sequer, promover o questionamento mediante controle de constitucionalidade. Pode-se dizer que é essencial o respeito à decisão do legislador – quando de acordo com a ordem constitucional –, mesmo que se trate de uma má decisão, especialmente porque tal conduta traz previsibilidade. O Judiciário, a princípio, não seria o ambiente apropriado para que se altere o texto, mas, sim, o Legislativo [16].
A decisão do EREsp não foi suficiente para consolidar um entendimento na corte, o que motivou a recente afetação do Tema 1.230 [17], no STJ. Conforme apontou o ministro Raul Araújo, a previsão legal expressa quanto à limitação da penhora de remuneração abaixo de cinquenta salários-mínimos, frente à relativização firmada no EREsp 1.874.222/DF em quórum apertadíssimo, demanda “uma solução uniformizadora, concentrada e vinculante” [18]. Nos parece ter razão o ministro, pois, diante da relevância e sensibilidade do tema, impõe-se a primazia da segurança jurídica.
O desafio do STJ será justamente encontrar um ponto de equilíbrio que respeite a legalidade sem ignorar as exigências concretas para a efetividade da justiça. Relativizar, em certos contextos, pode até ser necessário — mas deve ser feito com critério, parcimônia e fundamento jurídico sólido. A proteção do mínimo existencial não pode ser transformada em retórica vazia. É preciso assegurar que ela continue sendo, de fato, uma garantia real e eficaz dentro do nosso sistema de justiça.
Seja como for, é certo que a aplicação dos regimes de impenhorabilidade deve ser pautada, conforme aponta Cândido Rangel Dinamarco, por uma interpretação ética e teleológica da norma processual, de maneira que sejam evitados tanto os sacrifícios desmedidos do devedor e de seu patrimônio, como o excesso de liberalização, equilibrando, assim, os direitos da personalidade do executado e o direito à tutela jurisdicional do exequente [19].
[1] ARAÚJO Nilsiton Araujo. Execução Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 268.
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paul: Malheiros, 2019. v. IV. p. 357.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paul: Malheiros, 2019. v. IV. p. 371.
[4] Sobre o disposto no inciso X, confira-se o Tema 1285 do STJ, em julgamento.
[5] Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
[…]
IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3 o deste artigo
[…]
§2º O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia.
[6] ZANETI JR., Hermes. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 824 ao 925. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Dir.); ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIEIRO, Daniel (Coords.). Coleção Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. v. XIV. p. 196.
[7] NEVES, Daniel Amorim AssumpçãO. Manual de Direito Processual Civil. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1143). No mesmo sentido, GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLVIEIRA JR., Zulmar Duarte de. Execução e Recursos: Comentários ao CPC 2015. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 240.
[8] Valor levando em conta o salário-mínimo de 2025, que conforme o decreto nº 12.342/2024 corresponde a R$ 1.518,00.
[9] NUNES, Júlia. Quanto ganham os trabalhadores no Brasil? Média de SP é quase o dobro do que no Maranhão, diz IBGE. g1. Disponível aqui
[10] VICTOR, Alexandre Gois de. Art. 833. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. E-book. Veja-se, ainda, ASSIS, Araken. Manual da Execução. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024. E-book.
[11] Discutiu-se a aplicação ou não do limite de 50 salários-mínimos, disposto pelo §2º do art. 833, em caso de honorários recebidos de uma só vez, e não mensalmente.
[12] “Por fim, não há que se falar na flexibilização da impenhorabilidade com base, unicamente, no disposto no art. 833, IV, § 2º, do CPC/2015, porque a própria evolução jurisprudencial não impede que tal mitigação ocorra nas hipóteses em que os vencimentos, subsídios, soldos, etc. sejam inferiores a 50 (cinquenta) salários mínimos. O que a nova regra processual dispõe é que, em regra, haverá a mitigação da impenhorabilidade na hipótese de as importâncias excederem o patamar de 50 (cinquenta) salários mínimos, o que não significa dizer que, na hipótese de não excederem, não poderá ser ponderada a regra da impenhorabilidade.” (EDcl nos EREsp n. 1.518.169/DF, relatora ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 21/5/2019, DJe de 24/5/2019).
[13] V. AgInt no AREsp n. 2.562.085/SC, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024; AgInt no AREsp n. 2.177.791/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/4/2023, DJe de 26/4/2023.
[14] Cf. REsp n. 1.356.404/DF, relator ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 4/6/2013, DJe de 23/8/2013; REsp n. 1.264.358/SC, relator ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 25/11/2014, DJe de 5/12/2014; AgRg no REsp n. 1.473.848/MS, relator ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, julgado em 22/9/2015, DJe de 25/9/2015; REsp n. 1.658.069/GO, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 14/11/2017, DJe de 20/11/2017.
[15] EREsp n. 1.874.222/DF, relator ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 19/4/2023, DJe de 24/5/2023
[16] “O Superior Tribunal de Justiça, é certo, firmou entendimento no sentido de que, não tendo o crédito exequendo natureza alimentar, seria possível a penhora de salário (ou outra verba mencionada no inciso IV do art. 833) do executado, desde que se deixe liberado percentual suficiente para garantir a subsistência do executado. Assim é que, por exemplo, ao julgar o AgInt no AgInt no AREsp 1.645.585/DF, rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva, o STJ admitiu a penhora de 20% da remuneração da executada, sem fazer qualquer consideração acerca do limite de cinquenta salários mínimos estabelecido por lei. E, ao julgar o REsp 1.806.438/DF, rel. Min. Nancy Andrighi, o STJ expressamente afirmou que, “embora não se possa admitir, em abstrato, a penhora de salário com base no § 2º do art. 833 do CPC/2015, é possível determinar a constrição, à luz da interpretação dada ao art. 833, IV, do CPC/2015, quando, concretamente, ficar demonstrado nos autos que tal medida não compromete a subsistência digna do devedor e sua família”. Esse entendimento jurisprudencial, porém, é criticável, pois simplesmente ignora o texto legal (sem fazer qualquer exercício de controle de constitucionalidade sobre o que a lei dispõe). Ora, o fato de a lei conter uma determinação com a qual não se concorda, ruim mesmo (e, no caso concreto, não se pode ter dúvida de que a opção legislativa foi ruim, já que, ao tornar impenhoráveis os valores que não excedem de cinquenta salários mínimos, a lei acabou por tornar impenhoráveis quase todas as remunerações de quase todas as pessoas que vivem no Brasil), não pode ser justificativa para ignorar o texto legal. O lugar adequado para lutar pela modificação do texto normativo ruim, repita-se à exaustão, é o Poder Legislativo. Opções ruins do legislador, desde que não sejam inconstitucionais, devem ser respeitadas. Esse é o preço que se paga quando se quer viver em um Estado de Direito.” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de Direito Processual Civil 4. ed. Barueri: Atlas, 2025. E-book.). Cf. também: FERRAZ, Renato Otávio da Gama. Maldade jurídica: STJ vai contra a lei ao permitir penhora de salário. ConJur. Disponível aqui.
[17] Tema Repetitivo 1230: Alcance da exceção prevista no § 2º do art. 833 do CPC, em relação à regra da impenhorabilidade da verba de natureza salarial tratada no inciso IV do mesmo dispositivo, para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a cinquenta (50) salários-mínimos.
[18] ProAfR no REsp n. 2.071.259/SP, relator ministro Raul Araújo, Corte Especial, julgado em 12/12/2023, DJe de 20/12/2023.
[19] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paul: Malheiros, 2019. v. IV. p. 359-360.
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