Improbidade e proteção de aposentados, pensionistas e consumidores contra corrupção e superendividamento
9 de maio de 2025, 6h05
Ganha repercussão [1] reportagens que relatam fraudes no âmbito de atividades públicas e previdenciárias desenvolvidas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) considerando a prática de descontos não autorizados ou autorizados mediante consentimentos burlados dos segurados. Esses últimos, qualificados como aposentados, pensionistas e beneficiários de políticas públicas, enfim vulneráveis [2]. Grande assalto ao tão propalado postulado da “segurança jurídica“, que na prática só serve aos que dominam o mercado, porque aos mais carentes de direitos fundamentais esse preceito não se faz presente e nem mesmo efetivado [3].

Evidente que como são matérias jornalísticas que se referem a investigações desencadeadas pela Polícia Federal sob o comando da Controladoria-Geral da União descabe imputações diretas, sendo prudente aguardar os desdobramentos das apurações dos órgãos de controle, com a advertência, óbvia e necessária, que as medidas antecipatórias de urgência devem ser desde logo levadas a efeito, até porque o trâmite processual é lento e modorrento, diferente da fome e da miserabilidade que afronta a dignidade de milhões de brasileiros vítimas desse imbróglio.
Caso as investigações sejam mais robustas e aprofundadas, pode-se chegar ao enigma dos “créditos consignados para aposentados e pensionistas“, em que algumas instituições financeiras lucram à custa de estômagos vazios e abuso da vulnerabilidade de inúmeros brasileiros. Acinte que se tornou corriqueiro no país, especialmente no dia a dia dos Procons e demais órgãos (agora também os Núcleos de Apoio aos Superendividados) que denunciam tais “violências financeiras” há tempos.
Relembrando um excelente jurista [4], ao lado do “Poder” Executivo, “Poder” Legislativo e “Poder” Judiciário” – esses extremamente regulados e impactados na legalidade constitucional – há um poder “paralelo”, com pouca regulação e que domina os outros. Ei-lo, CF, artigo 173, § 4º: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Enfim, a própria Constituição assume a conclusão de que o ‘poder econômico’ é “Poder“, podendo ser abusivo. Contudo, remete para lei infraconstitucional eventual limitação, ao contrário dos demais poderes em que os “freios” estão escancarados no próprio Texto Constitucional.
A Constituição ao definir a seguridade social como conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade firma como escopo central a garantia dos “direitos relativos à saúde, à previdência e assistência social“, anotando como principal objetivo a irredutibilidade do valor dos benefícios (CF, 194, inciso IV). A Lei 8.213/91, além de estabelecer como princípio ‘a irredutibilidade do valor dos benefícios de forma a preservar-lhes o poder aquisitivo’, veda sobre os benefícios a penhora, arresto ou sequestro, estabelecendo como nula eventual cessão ou alienação (artigo 114). Permitindo, porém, descontos em hipóteses fechadas, contemplando-se nesse rol as (1) mensalidades para associações e demais entidades de aposentados, desde que reconhecidas legalmente, mediante autorização do filiado, (2) bem como pagamentos de empréstimos e financiamentos concedidos por instituições financeiras, expressamente autorizadas pelo beneficiário até o limite de 45% do benefício (artigo 115, incisos V e VI, respectivamente).
Já o Decreto 3.048/99, com as atualizações sobrevindas pelo Decreto 10.410/20, ao permitir descontos nos estipêndios dos beneficiários a favor de associações e entidades de representação (artigo 154, inciso V), condicionou, além da autorização do filiado, o funcionamento e constituição da agremiação, a conveniência administrativa, a segurança das operações, o interesse dos beneficiados e o interesse público (§ 1º). Ainda estabeleceu no §1º – A o modo da autorização do segurado: prévia – pessoal – específica, com reavaliação desta autorização a cada três anos (§1º-B). E não fosse isso, trouxe como atribuição do INSS avaliar periodicamente a quantidade de reclamações de beneficiários, ações judiciais, processos de órgãos de controle e impacto em sua rede de atendimento para dar continuidade às entabulações com referidas entidades.
Descumprimento reiterado de deveres
Enfim, mencionado decreto embute ao INSS diversos deveres a serem cumpridos, com destaque: 1 – dever de segurança; 2 – dever de fiscalização; 3 – dever de proteção do beneficiário; 4 – dever de cuidado; 5 – dever de avaliação de riscos. E com maior destaque o dever de probidade (já que reconhece em sua redação a possibilidade de irregularidades), assim como o dever de prevenção ao superendividamento que compõe o “interesse público” na evitabilidade da exclusão social e manutenção do mínimo existencial (Lei 14.181/21) [5].
É evidente que mesmo não havendo relação de consumo direta entre beneficiários e INSS e beneficiários e associações ou entidades, há sempre o ‘reflexo indireto’ desses vínculos, com externalidades negativas para aqueles que dependem de benefícios previdenciários para sobreviver, especialmente quando tais estipêndios se inserem na renda familiar. E não fosse isso, a legitimidade procedimental exige o respeito ao princípio matriz da boa-fé [6].
Como os benefícios previdenciários, conforme a legalidade constitucional, atendem direitos fundamentais, o Estado (por meio do INSS) está total e integralmente obrigado à promoção dos aposentados e pensionistas que são, notadamente, consumidores, já que se trata de relação jurídica fundamental [7]. Mas as notícias de fraudes existentes, não apenas em descontos para associações, como em contratos de crédito consignado (número de ações civis públicas já ajuizadas, especialmente pelo Ministério Público), escancaram o reiterado descumprimento desses deveres pelo órgão previdenciário.

Se o Estado não pode ser o “garante universal” [8], ao menos ele não pode propiciar aviltamentos a interesses jurídicos tuteláveis ao descumprir os deveres lhe tocados pela legislação ou mesmo ser co-partícipe de agentes privados que causem lesão, valendo como exemplo o ‘dano de superendividamento’ aos vulneráveis e hipervulneráveis, que fere os “malum prohibitum constitucional“: exclusão social (1) e ofensa ao mínimo existencial do consumidor (2).
Terreno fértil para o ‘capitalismo de quadrilhas’
Confirmadas as fraudes, além das providências penais que o caso encerra, as sanções à improbidade administrativa tornam-se remédio essencial para a promoção dos vulneráveis e hipervulneráveis atacados nesta circunstância. A improbidade administrativa representa “ilícito constitucionalmente qualificado” [9], assim como fator de desequilíbrio crucial na relação entre o poder público e os administrados, especialmente no que diz respeito à proteção dos aposentados, consumidores (como dito).
Em contexto em que as transações governamentais e a gestão de recursos públicos estão na “mira” de ações que visam o enriquecimento ilícito, o combate à improbidade administrativa torna-se não só retrospectivo, mas necessariamente preventivo e pedagógico. Essa percepção abrange a gama de condutas que, ao serem praticadas por agentes públicos, comprometem a integridade do serviço público e, consequentemente, os direitos de diversas camadas da sociedade. Em outras palavras: a eficácia das ações governamentais e a confiança do público na administração pública dependem em grande medida do combate à improbidade.
Ambientes assim são férteis para os chamados “capitalismo companheiro” e “capitalismo de quadrilhas” e, via de consequência, a prática ímproba (e ainda corrupta) [10] contribui fatalmente para o enfraquecimento do poder da lei. Nestas condições o Estado é servil a grupos reduzidos, a setores de interesses ‘parceiros’, beneficiados que são com o dirigismo estatal. Enquanto os grupos sociais desorganizados (grande massa que são os pagadores de impostos) cumprem deveres tributários, os grupos sociais organizados (grandes empresas, apadrinhados, lobbies) recebem parte da arrecadação [11].
Quando agentes públicos se desviam das funções, provocam não apenas perdas financeiras, mas também tumultos nos direitos que garantem a dignidade e a segurança social de milhões. Por meio da fiscalização e do controle social, a prevenção à improbidade administrativa fortalece a democracia, legitima as instituições e assegura que os recursos destinados ao bem-estar da população sejam utilizados de forma ética e transparente. Essa noção subsiste mesmo se considerarmos o advento da reforma da lei de improbidade administrativa, que não aceita ações e omissões derivadas da vontade livre e consciente de lesar o patrimônio público ou enriquecer-se ilicitamente, especialmente às custas dos vulneráveis [12].
Portanto, a conexão entre a improbidade administrativa e a proteção dos direitos de consumidores e aposentados não é meramente teórica; ela se manifesta nas realidades cotidianas, onde práticas desonestas e corruptas podem resultar em margens de lucro ilícitas que atentam contra a qualidade de serviços essenciais. Trata-se do abuso do poder delegado para atendimento a interesse próprio, em detrimento ao patrimônio e confiança de quem vive em condições de quase exclusão.
Tudo isso frente à condição humana do beneficiário da previdência.
A fraqueza dos aposentados e pensionistas resulta não só do status econômico, por vezes precarizado pela limitada renda gerada pelos baixos estipêndios, mas também da falta de acesso à informação e às estruturas de apoio que poderiam resguardá-los contra ilícitos e perdas. Essas condições os tornam alvos preferenciais para fraudes e explorações, pois a inerente vulnerabilidade (cognitiva, digital, psíquica e social) claramente é forte obstáculo que dificulta a contestação de injustiças, impondo o empobrecimento desmesurado e a passividade.
Aposentados e pensionistas representam elo frágil na cadeia da proteção social, frequentemente relegados a posições de desamparo e abandono quando as instituições responsáveis pela “administração de seus direitos” falham. Verdadeiro “abus faiblesse” [13]. A improbidade administrativa assume forma particularmente nociva nesta situação, pois, quando agentes públicos se envolvem em atos qualificadamente ilícitos, a realidade dos invisibilizados é severamente afetada. Programas sociais essenciais, pensões e benefícios à saúde são diretamente comprometidos, o que, em última análise, desequilibra a segurança financeira e existencial das gerações mais velhas. Portanto, a vigilância em relação à improbidade administrativa deve se intensificar para garantir que aqueles que dedicaram suas vidas ao serviço da sociedade não sejam mais um capítulo triste na narrativa da desconfiança pública.
A luta contra a improbidade é imperativo fundamental e legal, visando a restauração da fé pública, o fortalecimento das instituições e a construção de ambiente onde os cidadãos possam desfrutar plenamente de seus direitos, sem o temor de injustiças e danos perpetrados por aqueles que deveriam servir ao interesse público.
[1] aqui
[3] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, n. 57, out.-dez, 2006.
[4] Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. Poder econômico: direito, pobreza, violência e corrupção. Barueri-SP: Manole, 2006.
[5] MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Deveres e responsabilidade no tratamento e na promoção do consumidor superendividado. Revista do Ministério Público Brasileiro. Ano 1, número 01.
[6] Ver por todos: NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro: Porto Alegre, S. A. Fabris, 2002. SILVA, Clovis V. do Couto e. A obrigação como processo: Rio de Janeiro, FGV, 2012.
[7] SILVA, Jorge Pereira. Deveres do Estado de protecção de direitos fundamentais: fundamentação e estrutura das relações jusfundamentais triangulares. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, p. 105.
[8] STJ – AgRg no AgIn no REsp 1.657.514 – 1ª Turma – j. 27/2/2018.
[9] MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do patrimônio público. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025.
[10] Tácito, Caio. Improbidade administrativa como forma de corrupção. Revista de Direito Administrativo, v. 226, 2001.
[11] Rose-Ackerman, Susan. Corrupção e governo: causas, consequências e reforma. Trad. Eduardo Lessa. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020, p. 50
[12] JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
[13] GUÉRIN-SEYSEN. Dorothée. Protegendo os idosos de comportamentos abusivos no direito contratual e no direito do consumidor. Idade e abuso no direito contratual e no direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. v. 154. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, pág. 73 – 90
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