Opinião

Dano existencial na seara trabalhista: é possível indenização em decorrência de acidente de trabalho?

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  • é servidora no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Autònoma de Lisboa (UAL) mestra em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão e graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) professora pesquisadora e palestrante.

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2 de junho de 2025, 13h21

Elevada à condição de fundamento da República, nos termos do artigo 1º, inciso III, da Constituição, a dignidade da pessoa humana constitui o alicerce axiológico sobre o qual se assenta todo o edifício normativo nacional. Sua força normativa irradia por todos os ramos do direito, sendo no campo juslaboral que encontra terreno fértil para sua concretização material, especialmente na tutela dos direitos fundamentais do trabalhador enquanto sujeito de direitos e não mero fator de produção.

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No direito do trabalho, tal princípio transcende a mera retórica constitucional e se consubstancia na proteção integral da personalidade do empregado, abrangendo não apenas aspectos patrimoniais da relação empregatícia, mas também e, sobretudo, suas dimensões existenciais, relacionais e projetivas. Nesse contexto, o reconhecimento do dano existencial emerge como categoria autônoma de responsabilização civil, apta a resguardar o direito do trabalhador à construção livre e digna de seu projeto de vida.

Este artigo tem por finalidade investigar a possibilidade jurídica de se reconhecer a reparabilidade do dano existencial decorrente de acidente do trabalho, distinguindo-o de outras modalidades de dano extrapatrimonial, como o dano moral, com as quais não se confunde. Para tanto, empreende-se abordagem crítica e fundamentada sob os prismas doutrinário, jurisprudencial e normativo, com o escopo de afirmar a legitimidade e a necessidade de se ampliar a tutela da personalidade no âmbito das relações laborais, à luz dos princípios da justiça social, da função social da empresa e da responsabilização civil do empregador.

Conceito de dano existencial na perspectiva trabalhista

O dano existencial, ainda que inicialmente vinculado ao direito civil, passou a ser reconhecido no âmbito laboral como uma forma específica de violação aos direitos da personalidade do trabalhador. Trata-se do prejuízo causado não à esfera emocional propriamente dita, mas à estrutura de vida do sujeito, comprometendo seu projeto existencial e sua liberdade de conduzir a própria existência com autonomia.

De acordo com as preciosas lições de Carlos Fernández Sessarego, o dano existencial (compreendido como lesão ao projeto de vida), consubstancia uma ofensa de altíssima gravidade, por afetar diretamente o núcleo essencial da existência humana: a liberdade de autodeterminação e a possibilidade de realização pessoal, segundo os próprios desígnios.

Trata-se de uma forma de dano que, ao frustrar os planos de vida legitimamente traçados pelo sujeito, compromete o sentido de sua trajetória, esvaziando sua capacidade de projetar o futuro conforme escolhas livremente assumidas. Por sua natureza contínua e irreversível, as repercussões desse dano não se atenuam com o tempo, revelando-se como um agravo de efeitos duradouros, muitas vezes irreparáveis. Portanto, o dano existencial revela-se um verdadeiro “roubador de sonhos e de futuros”, já que afeta diretamente a existência humana.

A liberdade de escolha, nesse sentido, é o instrumento por meio do qual o indivíduo busca conferir concretude aos seus planos abstratos, empenhando-se, em dimensão temporal, para alcançar a plenitude de sua existência. Assim, a ocorrência de um evento danoso injusto, que rompe ou inviabiliza essa construção, impõe ao sujeito a resignação forçada com uma realidade não escolhida, usurpando-lhe o direito de traçar o rumo da própria existência. Tal ruptura caracteriza, com nitidez, o dano existencial: um atentado à autonomia individual e ao próprio direito de ser.

Ao contrário do dano moral, que se refere ao “sentir”, ao sofrimento psíquico e emocional, o dano existencial está relacionado ao “impedimento”, à frustração de expectativas de vida e de realizações pessoais. A partir da reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), a Consolidação das Leis do Trabalho passou a prever expressamente o dano extrapatrimonial nos artigos 223-A a 223-G, abrindo espaço para que o dano existencial ganhasse contornos normativos mais definidos no cenário juslaboral.

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De acordo com Sebastião Geraldo de Oliveira o dano existencial é aquele que atinge diretamente o projeto de vida da vítima, comprometendo sua realização pessoal e social. Do mesmo modo, Flaviana Rampazzo, em diversos trabalhos publicados, contribui para a distinção conceitual e prática entre dano moral e existencial, defendendo sua cumulatividade quando identificadas violações autônomas. Oliveira ainda leciona que determinadas práticas patronais, ao extrapolarem os limites da legalidade e da dignidade da relação de emprego, revelam-se aptas a atingir frontalmente os bens jurídicos extrapatrimoniais do trabalhador, culminando na configuração do dano existencial.

Dentre essas condutas gravemente lesivas, destacam-se: a violência no ambiente laboral, o assédio moral ou sexual, a submissão a condições degradantes ou análogas à escravidão, a ocorrência de acidente de trabalho ou doenças ocupacionais, a imposição de jornadas excessivas e o cerceamento injustificado do usufruto de direitos fundamentais, tais como o descanso semanal, os intervalos intrajornada e as férias. Tais práticas não apenas afrontam a ordem jurídica, mas também subvertem a finalidade social do trabalho, ao comprometerem o livre desenvolvimento do projeto de vida do trabalhador.

Acidente de trabalho como fator gerador de dano existencial

O acidente de trabalho, sobretudo aquele que resulta em sequelas físicas, funcionais ou psicológicas duradouras, pode comprometer substancialmente a possibilidade de realização de um projeto de vida autônomo. Em tais casos, não se trata apenas de indenizar a dor subjetiva, mas de reconhecer que houve uma ruptura abrupta na trajetória existencial do trabalhador.

A jurisprudência tem apontado a possibilidade de reparabilidade do dano existencial em paralelo à indenização por dano moral e material, desde que caracterizada a perda ou limitação substancial de aptidões que impactem diretamente na forma como o trabalhador conduzia sua vida antes do acidente.

Em notável precedente do TRT da 1ª Região (Processo nº 0100358-28.2017.5.01.0035), envolvendo trabalhador da “Comlurb”, houve o reconhecimento do dano existencial a um coletor de lixo que, após sofrer grave traumatismo craniano em acidente laboral, ficou com sequelas neurológicas que comprometeram sua cognição e autonomia social. O tribunal entendeu que, além da dor e do sofrimento psíquico, houve prejuízo à sua capacidade de retomar vínculos sociais e planos de vida, ensejando, pois, a indenização específica.

Aspectos doutrinários e jurisprudenciais

Consoante lecionam Flaviana Rampazzo e Sebastião Geraldo de Oliveira, a compreensão do dano existencial deve se operar à luz da função social do trabalho, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana e vetor axiológico de toda a ordem juslaboral. Trata-se de espécie de dano cuja identificação repousa na constatação de rupturas significativas e forçadas na rotina existencial do trabalhador, perceptíveis quando este se vê privado de atividades que antes exercia com autonomia; compelido à dependência de terceiros para a execução de tarefas ordinárias; ou impossibilitado de concretizar projetos pessoais legítimos (sejam eles de ordem familiar, educacional, profissional ou comunitária).

A possibilidade de cumulação do dano existencial com o dano moral é plenamente admitida pela doutrina majoritária e vem sendo acolhida pela jurisprudência pátria. Trata-se de categorias autônomas de lesão à personalidade, que incidem sobre esferas distintas do ser humano: uma, relacionada ao sofrimento psíquico, à dor e ao abalo interior (dano moral); outra, à frustração concreta de um modo de vida digno e autodeterminado (dano existencial). Desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a reparação concomitante revela-se não apenas admissível, mas indispensável à eficácia da tutela jurisdicional.

Exemplar, nesse sentido, é o julgado do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Processo nº 0021069-45.2015.5.04.0014), em que se reconheceu o dano existencial experimentado pela companheira gestante e pelo filho póstumo de um jovem atleta falecido em decorrência de mal súbito durante atividade esportiva. Na decisão, destacou-se que não apenas houve a perda afetiva — configuradora do dano moral —, mas também o aniquilamento do projeto familiar e o esvaziamento das expectativas existenciais de uma vida em comum, ensejando, por conseguinte, indenização por lesão autônoma.

Em harmonia com a construção doutrinária contemporânea, a jurisprudência, ainda que tímida, vem consolidando, de maneira cada vez mais precisa e sensível, os contornos do dano existencial enquanto categoria autônoma de lesão extrapatrimonial, digna de tutela jurídica específica. Tal reconhecimento se acentua especialmente nos casos em que o infortúnio laboral (notadamente o acidente de trabalho) compromete, de forma prolongada ou permanente, a capacidade do trabalhador de conduzir livremente seu projeto de vida.

Destaca-se, nesse sentido, que a desestruturação do cotidiano existencial, a frustração de expectativas legítimas e a limitação concreta da autonomia individual ensejam reparação diferenciada, para além da compensação por danos morais ou materiais. Trata-se de uma evolução hermenêutica que projeta o direito do trabalho como instrumento de efetivação da dignidade da pessoa humana em sua dimensão existencial, reconhecendo que o labor, quando causa sofrimento existencial, deve ensejar resposta jurisdicional proporcional, reparadora e humanizadora.

Requisitos para configuração e prova do dano existencial

A configuração do dano existencial demanda a demonstração inequívoca e objetiva de que o obreiro suportou prejuízos substanciais em sua esfera pessoal, como consequência direta e imediata da relação de emprego ou de infortúnio laboral. Tal comprovação pode ser efetivada mediante a produção de documentos, laudos periciais, testemunhos e, sobretudo, pela análise comparativa entre o status de vida anterior e posterior ao evento lesivo, evidenciando a ruptura de sua trajetória existencial.

A doutrina especializada assinala, como indicativos da presença desse tipo de lesão, situações tais como:

  1. o impedimento definitivo ou de longa duração para o exercício de atividades corriqueiras da vida civil;
  2. a inviabilidade de concretização de projetos educacionais, profissionais ou afetivos;
  3. a imposição de dependência funcional perante terceiros para a realização de atos da vida diária; e
  4. a exclusão compulsória de espaços de convivência social, cultural ou comunitária, cerceando a plenitude do viver em sociedade.

Assim, a análise do dano existencial deve ser empreendida à luz da contínua ressignificação do conceito de trabalho digno. O tempo livre, longe de ser mero adorno existencial, é concebido como dimensão essencial da personalidade do trabalhador, indispensável à concretização de sua autodeterminação, ao cultivo de vínculos afetivos e ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades. A realização pessoal, nesse contexto, deixa de ser um privilégio para se afirmar como prerrogativa intrínseca à dignidade no labor.

Conclusão

Diante do exposto, pode-se afirmar que a indenização por dano existencial no direito do trabalho não apenas é juridicamente possível, como é necessária para a efetiva concretização da tutela da dignidade do trabalhador. Acidentes de trabalho que comprometem a existência digna impõem ao Judiciário a missão de reconhecer e reparar, com sensibilidade e profundidade, as diversas dimensões da vida humana afetadas pela violação.

A constituição de um projeto de vida é um direito fundamental implícito, inerente à condição humana. Quando o ambiente de trabalho, por conduta negligente ou abusiva, inviabiliza a realização desse projeto, não resta alternativa senão reconhecer o dano existencial como categoria indenizatória legítima, digna de reparo específico.

Portanto, a reparação por dano existencial decorrente de acidente de trabalho não apenas encontra respaldo normativo no ordenamento jurídico pátrio, como também se revela expressão paradigmática de um direito do trabalho comprometido com a tutela integral da dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma afirmação contundente de que o labor não pode subverter o projeto de vida do indivíduo, devendo antes ser instrumento de realização pessoal, inclusão social e efetivação dos valores fundantes do Estado democrático de direito. Reconhecer e indenizar o dano existencial é, pois, conferir concretude a uma ordem jurídica que almeja a promoção de uma existência livre, plena e verdadeiramente humanizada.

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Referências Bibliográficas

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. 7. ed. São Paulo: LTr, 2015.

RAMPAZZO, Flaviana. A Configuração do Dano Existencial no Direito do Trabalho. Revista LTr, São Paulo, v. 76, n. 1, jan. 2012.

RODRIGUES, Elaine Barbosa. Futuro Roubado: o dano existencial coletivo na hipótese de “acidente de trabalho ampliado”. Revista Eletrônica. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Belo Horizonte, MG, v. 65, n. 100, t.1, p. 393-444, jul./dez. 2019.

FERNÁNDEZ SESSAREGO, Carlos. ¿Existe un daño al proyecto de vida? In: VÁRIOS AUTORES. “Scritti in onore di Guido Gerin”. Padova: Cedan, 1996.

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Autores

  • é servidora no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Autònoma de Lisboa (UAL), mestra em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão e graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora, pesquisadora e palestrante.

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