Como as regras de criptoativos podem mudar o mercado no Brasil e UE
13 de fevereiro de 2025, 9h19
Com a expansão do mercado de criptoativos nos últimos anos, o tema dos ativos digitais tem despertado inúmeras discussões na comunidade jurídica nacional e internacional. É natural, portanto, o interesse estatal na regulamentação legal da matéria, a qual tem capacidade de afetar todos os envolvidos em tais operações, sejam os investidores, corretoras ou Estados, especialmente diante da natureza transfronteiriça dessa espécie de ativos.

Como consequência da globalização e da sociedade cada vez mais digitalizada, é natural o avanço dos meios digitais sobre os serviços financeiros, a exigir também a regulamentação por parte do Estados como forma de tutelar os envolvidos na negociação, inibir práticas delitivas ou mesmo monitorar e rastrear possíveis ilícitos tributários e penais perpetrados nesse contexto.
Os criptoativos geram desafios na apuração e eventual configuração da lavagem de dinheiro, evasão de divisas, sonegação fiscal, entre outros, enquanto no campo processual penal surgem dificuldades no cumprimento de medidas cautelares reais, cooperação internacional, ou mesmo na execução de buscas e apreensões.
É sempre um desafio normatizar uma matéria inovadora e que ainda é bastante desconhecida no seu funcionamento, o que denota a relevância de um conhecimento interdisciplinar para que não se corra o risco de criar regras inúteis, ou sem qualquer correspondência com a realidade que se pretende regulamentar. Da mesma forma, não passa despercebido o risco de que uma regulamentação excessiva possa inviabilizar a evolução do mercado de ativos digitais [1].
O Brasil figura na sexta posição no mercado de criptoativos no mundo, tendo movimentado o expressivo montante de aproximadamente US$ 26 bilhões no ano de 2023, com cerca de 4,1 milhões de investidores [2]. No país, a primeira regulamentação a respeito do tema se deu no âmbito tributário, com a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1888 de 3 de maio de 2019, que instituiu a obrigatoriedade de prestação de informações relativas à operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil. Tal norma inaugurou em nosso ordenamento a conceituação de criptoativos e “exchanges” (prestadoras de serviços com criptoativos) e trouxe significativo avanço quanto à transparência das operações, permitindo ao ente tributante a identificação dos titulares da operação, modalidade e quantidade de criptoativo transacionado, valores líquidos da operação e das taxas cobradas, dentre outras informações essenciais à prevenção à lavagem de dinheiro e ao controle quanto à incidência tributária adequada [3].
Ato contínuo, foi sancionada a Lei 14.478/2022, que constitui marco normativo relevante na fixação de diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais no Brasil. A própria legislação, no entanto, delegou a órgão ou entidade da administração pública federal a responsabilidade de editar a regulamentação destinada a estabelecer as hipóteses e parâmetros para concessão de autorização de funcionamentos às prestadoras de serviços de ativos digitais (artigo 2º); delimitar os ativos financeiros regulados para as finalidades da lei (artigo 3º, parágrafo único); autorizar a realização de outros serviços relacionados à atividade prestadora de serviços de ativos digitais, (artigo 5º, parágrafo único), bem como, exercer as competências regulatórias declinadas no artigo 7º.
Assim, desde sua sanção, a lei possui, na maior parte de suas matérias, eficácia contida diante da ausência de regulamentação. Tanto que, inicialmente, a lei não definiu sequer qual seria o órgão ou entidade da administração pública federal que seria delegada a regulamentar os dispositivos da legislação. Somente pelo Decreto nº 11.563, de 13 de junho de 2023, atribuiu-se ao Banco Central a competência de regular a prestação de serviços de ativos digitais, autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais e deliberar sobre as demais competências declinadas na Lei 14.778/2022.
Prioridade e propostas do Bacen
No exercício da competência que lhe foi atribuída, o Banco Central incluiu a regulamentação do mercado de ativos virtuais na lista de prioridades para o ano de 2024 [4] e editou três propostas de resoluções destinadas à regulação do mercado de ativos virtuais, submetidas às consultas públicas que se encontram ativas até fevereiro de 2025 (Consulta Pública 109/2024, 110/2024 e 111/2024).

A primeira (nº 109/2024), objetiva regulamentar: (1) os serviços de ativos virtuais previstos no artigo 3º da Lei nº 14.478/2022, sendo expressamente excluídos da regulamentação tokens não fungíveis, instrumentos financeiros objeto de tokenização e bens móveis ou imóveis objeto de tokenização; (2) as modalidades de prestadoras de serviços de ativos virtuais (intermediárias de ativos virtuais; custodiantes de ativos virtuais e corretoras de ativos virtuais) e suas respectivas atividades; (3) os requisitos de constituição das prestadoras de serviços de ativos digitais, o que abrange desde requisitos dos documentos constitutivos (tipo societário; denominação; objeto social e administração), até a definição de capitais sociais mínimos por atividade desenvolvida, a serem integralizados, necessariamente, em moeda corrente; (4) regras de separação patrimonial de recursos e ativos virtuais da empresa prestadora de serviços e dos clientes; (5) divulgação obrigatória de informações pelas prestadoras de serviços de ativos virtuais, bem como (6) regras de compliance, a exemplo de governança, elegibilidade de ativos virtuais a serem ofertados e análise de perfil de risco de clientes.
A segunda resolução proposta (Consulta nº 110/2024) visa disciplinar os processos de autorizações de funcionamento e de transformações societárias das sociedades prestadores de serviços de ativos virtuais, definindo tratamento distinto para aquelas entidades que operam no mercado até a entrada em vigor dos atos normativos e para novas sociedades [5]. A resolução propõe requisitos análogos àqueles aplicáveis às instituições financeiras e de pagamento para fins de autorização de funcionamento de empresas do mercado de ativos digitais, tais quais capacidade econômico-financeira e reputação ilibada dos controladores, origem lícita dos recursos, compatibilidade da infraestrutura tecnológica. Quanto às transformações societárias, a resolução submete à autorização do Banco Central atos que impactem significativamente no controle ou na situação patrimonial das empresas (a exemplo de transferência de controle societário; fusão, cisão ou incorporação; exercício de outras atividades, etc).
Ambas as resoluções propostas visam reforçar o processo de autorização das prestadoras de serviços de ativos virtuais e garantir que essas atendam a requisitos mínimos de capacidade financeiras, técnica e operacional e se mantenham com quadro societário estável, com controladores devidamente comunicados ao Bacen. Diante dos firmes requisitos quanto à prova de capacidade financeira e estrutura corporativa organizada, assim como custos de implementação das medidas de compliance e separação patrimonial, a tendência é que, com a aprovação das resoluções, haja restrição de mercado, favorecendo a permanência a longo prazo de empresas já consolidadas no mercado (a exemplo de Binance, Onil, Coibase) e desfavorecendo a manutenção de empresas menores, sem capital suficiente para atendimento às condições para autorização e permanência de funcionamento.
Por fim, a terceira resolução proposta pelo Banco Central (Consulta nº 111/2024) disciplina hipóteses em que as atividades das prestadoras de ativos virtuais serão incluídas no mercado de câmbio e dispõe as situações nas quais tais serviços deverão submeter-se à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no país [6]. Segundo a normativa, são consideradas atividades incluídas no mercado de câmbio quaisquer atividades ou operações que envolvam pagamento ou transferência internacional mediante transmissão de ativos virtuais; compra, venda, troca ou custódia de ativos virtuais denominados em moeda estrangeira [7] e compra, venda, troca, transferência, ou custódia de ativos virtuais denominados em reais de propriedade de não residentes. As prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão operar no mercado de câmbio com autorização própria e se sujeitarão às normas do Bacen e do Conselho Monetário nacional que regulamentam o mercado (favorecendo a atuação de instituições financeiras e de pagamento já reguladas e que passaram a oferecer negociação em criptomoedas, como BTG, Itaú e Nubank).
Quanto à aplicabilidade da Lei 14.778/2022 e das Regulamentações em consulta, ambas ressalvam a sua inaplicabilidade quanto aos ativos representativos de valores mobiliários e preserva as competências da Comissão de Valores Mobiliários (artigo 1º, parágrafo único), o que é reforçado pelo artigo 3º, incisos I e II, do decreto. A atuação da Comissão de Valores Mobiliários nesse ambiente já era perceptível mesmo antes do marco legal supramencionado. Na deliberação 830, de 1 de outubro de 2019, a autarquia reconheceu que o oferecimento de oportunidade de investimento com remuneração atrelada à negociação de criptoativos por equipe de profissionais, valendo-se de apelo ao público para celebração de contratos, enquadra-se no conceito de valor mobiliário e sua oferta pública demanda prévio registro ou dispensa de registro na CVM [8].
União Europeia
O Brasil segue na mesma linha da União Europeia, que regulamentou os criptoativos através do Regulamento de Mercado de Criptoativos (MiCA) [9]. O MiCa passou a ser discutido em meados de 2020 e foi aprovado também em 2023, após procedimento legislativo similar, que contou igualmente com consultas públicas (neste caso, divididas em três “pacotes de consulta”). O MiCA estabele disciplina sobre todos os criptoativos ainda não regulados pela legislação de serviços financeiros, excluindo de sua abrangência os tokens não fungíveis (non fungible tokens – NFTs), os security tokens e as moedas digitais dos bancos centrais [10]. Prevê, ainda, os responsáveis por cada competência regulatória, atribuindo funções à Autoridade Europeia de Valores Mobiliários e dos Mercados (Esma), que foi indicada como responsável por editar regulamentações complementares e às respectivas autoridades locais dos Estados membros da União Europeia.
O MiCA foi implementado com o escopo de possibilitar adequação dos atos legislativos de serviços financeiros com a era digital, conferir maior segurança aos consumidores e utilizadores dos ativos, estabelecer um regime harmonizado para os criptoativos na União Europeia. Há uma especial função regulamentária de separar as atividades lícitas e organizadas daquelas meramente aventureiras e amadoras, visando evitar lesão a adquirentes, e sobretudo, combater a lavagem de capitas e o financiamento do terrorismo.
Há, portanto, uma tentativa de implementar uma regulamentação centralizada e coordenada, com um sistema claro e integrado entre a Autoridade Europeia de Valores Mobiliários e dos Mercados e as autoridades de cada Estado-membro, sendo abrangente nas matérias reguladas, contando com 149 artigos, com inúmeras subdivisões. Como se trata de um mercado novo, por óbvio ainda subsistem lacunas, como a necessidade definir a autoridade competente para autorização e supervisão de serviços de criptoativos; limitação clara dos criptoativos abrangidos pelo MiCA e os instrumentos financeiros que decorrerão das operações virtuais, de câmbio, dentre outras, mas o MiCA já representa um significativo avanço em um mercado já pujante.
Tanto o Brasil, quanto a União Europeia, comungam de posições claras no que tange ao controle, fiscalização e autorização de comercialização dos ativos digitais. Em ambos se impõe a obrigatoriedade de autorização de funcionamento para prestadoras de serviço de criptoativos e de um regime de transição para aqueles players que já atuam no mercado.
As normas que sobressaem mais comuns em ambos os regulamentos (ainda que no Brasil tenhamos um início de proposição, já se revela uma inclinação na mesma linha), são: a) a exclusão da aplicabilidade das normas a tokens não fungíveis; NFTs e outras modalidades de representação de ativos cuja emissão, negociação ou liquidação esteja prevista em normas financeiras; b) imposição de regras de autorização de funcionamento e supervisão de prestadoras de serviços de ativos virtuais; c) definição dos tipos de serviços com criptoativos passíveis de oferta pelas prestadoras de serviços de ativos digitais; d) obrigatoriedade de segregação de ativos das prestadoras de serviços e dos clientes; e) seleção de ativos a serem ofertados; f) exigibilidade de capacidade financeira e estrutura de governança robusta para empresas prestadoras de serviços de ativos digitais, mas sobretudo como de implementação de políticas de prevenção à lavagem de dinheiro; g) regras de comunicação de informações e transparência; h) obrigação de submissão de autorização para aquisição de controle em prestadora de serviços de criptoativos; i) normas coibidoras de abuso de mercado.
Há que reconhecer, contudo, que mesmo comparado com as Resoluções propostas pelo Banco Central, a regulamentação do MiCA é mais detalhista e se atém à melhor decomposição dos temas, como, por exemplo, ao dedicar artigos bastante decompostos quanto aos requisitos de comunicação entre a prestadora de serviços e o público (requisitos do whitepaper; comunicações de marketing; modificações, notificações e publicação do whitepaper, responsabilidade penas informações fornecidas, dentre outros).
O MiCa, à frente do Brasil, já passou a prever artigos próprios de cunho consumerista, a exemplo do direito de rescisão de acordos de compra de criptoativos pelos clientes; decomposição do procedimento e dos requisitos de autorização para provedores de serviços de criptoativos, assim como procedimentos específicos de autorização para oferecimento de diferentes modalidades de ativos ao público; normas que obrigam a constituição e gestão de reserva de ativos pelas prestadoras de serviços de ativos digitais, assim como estipulação de outras obrigações (financeiras e operacionais) para que tais empresas possam manter-se em operação; decomposição clara dos poderes e atribuições das autoridades competentes nomeadas pelo Regulamento para regular/fiscalizar o mercado. São matérias, que embora necessárias em um contexto amplo de gestão e fiscalização das criptomoedas, ainda não são profundamente tratadas nas proposições brasileiras.
A regulamentação no Brasil, embora ainda em estágio inicial, se espelha em muitas proposições do MiCa, e têm caminhado na definição dos players que podem atuar no mercado, produtos que podem ser ofertados e âmbito de atuação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, buscando regular um pouco mais esse mercado naturalmente disruptivo. As proposições realizadas ajudam a evitar que a instabilidade normativa implique a criminalização ou autuação indevida daqueles que já atuam no mercado (que nem sempre é bem visto pelos entes fiscalizatórios), mas sobretudo, ajudam a incentivar, criar previsibilidade e atrair investimentos para esse importante segmento do futuro da economia.
[1] Exemplo disso é a proposta do Banco Central do Brasil de alterar a Resolução 277, 31 de dezembro de 2022, que pode criminalizar algumas operações envolvendo stablecoins (criptoativos com valor atrelado a uma moeda fiduciária), sobre o tema cf. LOPES, Fernando. Operações com stablecoins via protocolos DeFi ou P2P podem ser criminalizados. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-08/operacoes-com-stablecoins-via-protocolos-defi-ou-p2p-podem-ser-criminalizadas-no-brasil/. Acesso em 09.01.2025
[2] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; FERNANDES, Marina Brecht; CARVALHO, Felipe; LAGO, Natascha do. Os desafios dos ativos virtuais. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-16/os-desafios-dos-ativos-virtuais/. Acesso em 09.01.2025.
[3] A instrução normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.888/2019 tornou obrigatória a prestação de informações atinentes às operações realizadas com criptoativos ao fisco brasileiro. Em 07 de novembro de 2024 a Receita Federal abriu consulta pública sobre a instrução normativa que irá instituir a Declaração de Criptoativos (DeCripto), almejando atualizar a regulamentação de 2019 e possibilitar a adesão do Brasil ao modelo de intercâmbio de informações sobre criptoativos da OCDE (Crypto Asset Reporting Framework – CARF). (https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2024/novembro/receita-federal-abre-consulta-publica-sobre-instrucao-normativa-que-ira-instituir-a-decripto-declaracao-de-criptoativos. Acesso em 09.01.2025)
[4] https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/811/noticia
[5] BC apresenta para consulta pública proposta de regulamentação da prestação de serviços de ativos virtuais e do respectivo processo de autorização. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/20395/nota. Acesso em 09.01.2025.
[6] Disponível em: https://www3.bcb.gov.br/audpub/DetalharAudienciaPage?12&audienciaId=721. Acesso em 10.01.2025.
[7] Ativos digitais “denominados em real” são ativos estáveis criados com o propósito de manter seu valor estável em relação ao real e ativos digitais “denominados em moeda estrangeira” são ativos estáveis criados com o propósito de manter seu valor estável em relação à moeda estrangeira.
[8] https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/deliberacoes/deli0800/deli830.html. Acesso em 09.01.2025.
[9] REGULAMENTO (UE) 2023/1114 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 31 de maio de 2023. relativo aos mercados de criptoativos e que altera os Regulamentos (UE) n. o 1093/2010 e (UE) n. o 1095/2010 e as Diretivas 2013/36/UE e (UE) 2019/1937. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32023R1114&qid=1735516575295. Aceso em 10.01.2025
[10] REINALDO FILHO, Demócrito. MiCA: a proposta europeia para regular o mercado de criptoativos. Conjur. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mai-23/democrito-filho-proposta-europeia-regulacao-criptoativos/. Acesso em 09.01.2025.
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