Interesses em conflito na insolvência empresarial
30 de abril de 2025, 9h09
O objetivo do texto é discorrer brevemente sobre bens e interesses jurídicos em conflito, no campo do direito da insolvência, com referência a determinado caso concreto, julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça.

O operador do direito muitas vezes se vê diante de conflitos entre normas, princípios, bens jurídicos e valores resguardados pela Constituição, de maneira que a solução do caso concreto exige que um deles seja afastado naquela hipótese, sem que a norma, princípio ou bem jurídico deixado, naquele caso específico, em segundo plano, ainda que momentaneamente (para depois ser atendido), deixe de ter validade ou vigência.
As demandas judiciais por medicamentos de alto custo são exemplo disso: de um lado, está o direito fundamental de todos à saúde, resguardado pela Constituição [1], e que tende a prevalecer, posto que intrinsecamente relacionado ao próprio direito à vida; de outro lado, estão o interesse econômico, o equilíbrio atuarial e a própria viabilidade econômica das empresas que atuam de forma suplementar ao SUS (Sistema Único de Saúde).
Essa mesma lógica, como é natural, se verifica na insolvência empresarial. De um lado, temos o interesse do devedor, que busca se reestruturar no exercício da sua atividade empresarial (na recuperação extrajudicial ou judicial) ou mesmo do falido, que apesar de todas as consequências decorrentes da declaração da quebra, busca se reinserir no mercado, com a rápida liquidação, realocação dos ativos e pagamento aos credores, para que possa retomar sua atividade econômica (artigo 75, da Lei nº 11.101/2005). De outro lado, há o interesse dos credores de todas as classes (artigos 83 a 85, da LFRE).
Robert Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, pela ótica do direito alemão, traduzida entre nós por Virgílio Afonso da Silva, bem situa essa problemática, ao discorrer sobre a “lei de colisão” e citar como exemplo o caso que ficou conhecido como “o assassinato de soldados em Lebach”.
Um programa de televisão pretendia contar a história de um crime em que quatro soldados da guarda de sentinela de um depósito de munições do Exército Alemão, perto da cidade de Lebach, foram mortos enquanto dormiam e as armas foram subtraídas para a prática de crimes. Um dos condenados como cúmplice desse crime estava prestes a ser libertado. Ele se insurgiu contra a pretensão de publicação do documentário, que em sua compreensão traria prejuízo à sua ressocialização e à sua intimidade e vida privada.
De início, sem êxito, porque o Tribunal Estadual e o Tribunal Superior Estadual, entenderam que deveria prevalecer o direito à liberdade de informar. Ele então ajuizou contra as decisões reclamação constitucional perante o Tribunal Constitucional Federal, que decidiu que, no caso concreto, não se tratava de informação atual e nem havia interesse público que justificasse sua divulgação àquela altura [2], de modo que prevaleceu a esfera da privacidade do indivíduo, em seu propósito de reinserção social, uma vez cumprida a pena criminal.
Caso concreto
Em São Paulo, no âmbito do direito da insolvência, houve caso concreto bastante interessante, que envolve a recuperação judicial da Coesa, empresa derivada do Grupo OAS. Em dado momento, o TJ-SP, por uso indevido da recuperação judicial, entre outros motivos, convolou em falência a recuperação judicial da empresa, em acórdão da lavra do eminente desembargador na 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP, Grava Brazil [3].
Menos de dois meses depois, o STJ, em decisão proferida pelo eminente Ministro Humberto Martins [4], em sede de pedido de tutela antecipada antecedente, acolheu pedido de reconsideração para suspender a decisão de convolação da RJ em falência e com isso restabeleceu o plano de recuperação judicial da empresa.
Evidentemente, temos no caso concreto vários bens e interesses em conflito: dos credores, da devedora, a segurança jurídica, o princípio da preservação da empresa e o direito de recorrer à instância superior.
O direito ao recurso à instância superior e o princípio da preservação da empresa (artigo 47 [5], da Lei nº 11.101/2005) prevaleceram sobre as regras invocadas pelo TJ-SP ao convolar em falência a recuperação judicial. Pela perspectiva daqueles que entendiam necessária a decretação da falência, acertou o tribunal paulista. Por outro lado, pela ótica daqueles que entendem que o princípio da preservação da empresa deve ser sempre aplicado, como mandamento de otimização [6] do sistema jurídico (Alexy, ob. cit., p. 90 [7]), acertou o STJ.
Esse permanente embate de teses e ideias, que faz parte do cotidiano dos profissionais do direito não deve, contudo, jamais autorizar elucubrações no sentido de que as súmulas vinculantes do STF, as súmulas não vinculantes dos Tribunais Regionais Federais e Estaduais não devam ser observadas. A mesma lógica se aplica aos precedentes qualificados produzidos pelo STJ ao julgar recursos repetitivos e às decisões do STF, ao decidir Temas de Repercussão Geral e em sede de Controle Concentrado de Constitucionalidade. Nessas situações, os precedentes judiciais são sempre obrigatórios, devem ser observados e vinculam os Juízes e Tribunais, conforme previsto no artigo 925 do CPC de 2015.
Os precedentes judiciais ganharam muita relevância com o CPC de 2015 e são extremamente importantes à aplicação do direito, pois dão concretude ao princípio da segurança jurídica e à previsibilidade das decisões judiciais, vetores de suma importância para a coletividade e para a própria credibilidade e eficiência (CF, artigo 37) das instituições que compõem o Sistema de Justiça.
Sem a previsibilidade das decisões do Poder Judiciário, a economia e o ambiente de negócios são prejudicados e se tornam menos atrativos aos investimentos e ao capital estrangeiro, que certamente irão procurar cenários em que corram menos riscos e haja mais previsibilidade e segurança jurídica.
___________________________________
[1] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[2] “Aqui interessam apenas as partes da decisão que se referem à solução da colisão entre princípios (…) na primeira etapa, constatou-se uma ‘situação de tensão entre a proteção da personalidade, garantida pelo art. 2º, § 1º, c.c. art. 1º, § 1º, da Constituição alemã, e a liberdade de informar por meio de radiodifusão, nos termos do art. 5º, § 1º(…) depois da constatação de uma colisão entre princípios cujos valores abstratos estão no mesmo nível, o Tribunal Constitucional Federal, em um segundo passo, sustenta uma precedência geral da liberdade de informar, no caso de uma ‘informação atual sobre atos criminosos’ (…) a decisão ocorre na terceira etapa. Nela, o Tribunal constata que, no caso da ‘repetição do noticiário televisivo sobre um grave crime, não mais revestido de um interesse atual pela informação’, que coloca em risco a ressocialização do autor, a proteção da personalidade tem precedência sobre a liberdade de informar, o que, no caso em questão, significa a proibição da veiculação da notícia…” (Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 99-102).
[3] Ementa: Agravo de Instrumento. Recuperação Judicial. Decisão que homologou, com ressalvas, o plano recuperatório do Grupo Coesa. Inconformismo do credor. Acolhimento. Consideração, neste voto paradigma, dos argumentos e pedidos lançados nos diversos recursos interpostos contra a mesma decisão. Embora na época do deferimento do processamento da recuperação só fosse possível vislumbrar indícios de fraude (o que não permitiu o indeferimento da inicial, cf. art. 51-A, § 6º, da Lei n. 11.101/2005) e apesar da precoce extinção do incidente de investigação de fatos, já é possível concluir, com a certeza necessária, que a presente recuperação judicial serviu, apenas, para concentrar as dívidas no Grupo Coesa, que absorveu créditos concursais e extraconcursais da “primeira recuperação” (do Grupo OAS), inclusive os honorários da administradora judicial que serviu naquele processo, sendo preservados ou direcionados, em favor do Grupo OAS, atualmente denominado Grupo Metha, nos meses que antecederam a “segunda recuperação” (do Grupo Coesa), os ativos relevantes do Grupo Coesa.
(…)
Ora, se se busca a preservação da atividade empresarial, dedicada à construção pesada, não tem sentido “abrir mão” de obras em execução, que teriam o condão de gerar caixa entre R$ 30 e R$ 40 milhões, muito menos receber, em permuta, ações de empresa em dificuldade, que também pleiteia recuperação. Observa-se que, mesmo que se considerasse que o acervo técnico não teria valor, o Grupo Coesa entregou, ao Grupo Metha, contratos em execução e créditos “intercompany”, de inegável conteúdo patrimonial. A cessão da participação societária do Grupo Coesa, na sadia KPE, também implicou em esvaziamento patrimonial. A separação do Grupo OAS em Grupo Metha e Grupo Coesa, portanto, foi apenas formal e serviu para fim de segregação do passivo, em prejuízo dos credores. O FIP Zegama, que adquiriu o controle do Grupo Coesa e optou pela nova recuperação, foi criado na véspera da operação, por ex-diretores da OAS, o que faz concluir que tudo foi premeditado. Persistência, ainda, de garantias cruzadas entre um e outro “grupos”, créditos “intercompany” e, ainda, obrigação solidária, de integrantes do Grupo Coesa, submetidas ao novo processo recuperatório, cumprir o plano recuperatório do Grupo OAS (Apel. n. 1010098-62.2021.8.26.0011, Rel. Des. Maurício Pessoa, C. 2º CRDE, j. em 25.04.2023). Inafastável interligação entre as sociedades. Diante do uso indevido do instituto da recuperação judicial, da promiscuidade societária e do inegável esvaziamento patrimonial das recuperandas (Grupo Coesa), em favor do Grupo OAS, atual Grupo Metha, antecedente ao presente pedido recuperatório, é caso de convolação em falência, nos termos dos arts. 73, VI, e 94, III, “b” e “d”, da Lei n. 11.101/2005. Em que pese o cumprimento, no caso, do requisito objetivo do art. 48, II, da LRJF, deve-se ter cuidado com a concessão de recuperações judiciais sucessivas, sobretudo quando, como se verifica, não se trata de crise nova, mas “novação da novação”. As providências do art. 99, da lei de regência, deverão ser tomadas pelo i. Juízo de primeira instância. Recurso provido, com determinação. (TJSP; Agravo de Instrumento 2054049-54.2023.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 27/06/2023; Data de Registro: 28/06/2023) (g.n.).
[4] Trecho da r. decisão do C. STJ:
“…Embora o procedimento de recuperação judicial, sempre instável, conviva com o risco presente de convolação em falência, é de se priorizar sempre a preservação da empresa, possibilitando a superação da crise e incentivando a negociação, porque o objetivo da lei é que se propiciem medidas que viabilizem a reestruturação e soerguimento da empresa.
(…)
Diante das dúvidas fáticas sobre a viabilidade do soerguimento e superação da crise econômico-financeira da empresa, já que o plano recuperatório foi devidamente aprovado pelos credores e homologado pelo juízo (fl. 1981 e 1982), e não houve ampla instrução para verificação da alegação, realizada por um credor, de fraude, justificada a concessão de tutela provisória, no presente caso, para obstar a decretação da falência diante da necessidade de priorizar a preservação da empresa, no caso em tela.
Veja-se, nesse sentido, que os documentos que instruem a petição de agravo interno ( fls. 2281 e seguintes) demonstram a adoção de providências para a efetivação da falência, e, por conseguinte, o encerramento das atividades das empresas recuperandas, o que, neste juízo preliminar, afirma o perigo do dano e, no caso de não atribuição do efeito suspensivo, a possível irreversibilidade da decisão questionada.
(…)
Ante o exposto, reconsidero a decisão de fls. 2.175-2.195 e, sem prejuízo do exame mais aprofundado da questão ou que esta decisão represente convencimento a respeito do mérito do recurso, defiro a tutela antecipada antecedente para concessão de efeito suspensivo ao recurso especial interposto, de modo a suspender os efeitos do acórdão proferido pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, registro 2023.0000529001 (fls. 330-408).
(…)
(AgInt na TutAntAnt n. 38, Ministro Humberto Martins, DJe de 10/08/2023.)
[5] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica (g.n.).
[7] “O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes” (g.n.).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!