Opinião

Imposto Seletivo sobre veículos: violações à Constituição pela LC 214

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  • é advogado sócio do escritório Lodi & Lobo Advogados professor adjunto de Direito Financeiro da UERJ coordenador da Pós-Graduação em Direito Tributário da FGV coordenador-geral do CEJ 11 de Agosto doutor em Direito e Economia pela UGF e mestre em Direito Tributário pela UCAM.

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30 de abril de 2025, 19h37

A reforma tributária, aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, criou o Imposto Seletivo incidente sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais ao meio ambiente e à saúde, o chamado imposto do pecado.

A expressão Impostos do Pecado tem sido amplamente utilizada pela doutrina em língua portuguesa, aqui [1] e alhures [2], para designar a tributação de bens e serviços que revelam uma determinada externalidade negativa.  Em inglês, é consagrada a expressão sin taxes [3]. Sua origem histórica consiste, ainda na Idade Média, na tributação dos bens moralmente reprováveis, de acordo com a moral cristã [4]. Daí a expressão relacionada ao pecado. Nesse sentido, adveio a maior oneração de itens como álcool, tabaco e jogos de azar.

Atualmente, a tributação do pecado, embora tenha se libertado das questões de ordem moral de fundo religioso, manteve a denominação em razão de sua origem histórica, evoluindo da mera tributação do tabaco e do álcool, produtos com grande potencial de vício, para buscar fundamento na maior oneração de outros bens e serviços que provocam externalidades negativas.

E nesse novo cenário, a tributação do pecado se associa à extrafiscalidade negativa, resultando em uma maior oneração dos bens que causam maior prejuízo à saúde e ao meio ambiente. Nesse sentido, são técnicas que são, há muito tempo, utilizadas no IPI e no ICMS, a partir do princípio da seletividade, mensurada com base na essencialidade dos bens e serviços. No entanto, é preciso destacar que a essencialidade dos bens e serviços, embora guarde traços de extrafiscalidade, presta maior aderência ao princípio da capacidade contributiva, a partir da graduação da manifestação de riqueza do consumidor final, o verdadeiro contribuinte de fato.

Deste modo, a seletividade do IPI e do ICMS, mais do que relacionada à extrafiscalidade, atende melhor ao princípio da capacidade contributiva, e, consequentemente, aos interesses arrecadatórios, em detrimento do estímulo ou desestímulo ao consumo de determinado bem, por meio da extrafiscalidade.

Com a Emenda Constitucional nº 132/2024, que tem como um dos seus pilares a neutralidade fiscal, houve a extinção do ICMS, do ISS, do PIS, da Cofins e, em grande medida, do IPI, que poderá sobreviver apenas na Zona Franca de Manaus. A substituição desses tributos pelo IBS e pela CBS, que deverão ter alíquotas uniformes para todos os bens e serviços, ressalvados os regimes diferenciados e os regimes específicos de tributação, resultou em uma redução do espaço do princípio da seletividade, que ficou restrito à redução de base de cálculo verificada nesses regimes.

Nesse novo contexto normativo, a introdução do Imposto Seletivo não se prende a finalidades arrecadatórias, ainda que sejam para fundamentar o custeio dos serviços públicos de saúde ou de proteção ao meio ambiente. O que o constituinte derivado criou não foi uma autorização para instituir tributos que legitimam pela destinação legal do produto da arrecadação, como as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios.

Ao contrário, o imposto, cuja competência é definida no artigo 153, VIII, não é constitucionalmente afetado, uma vez que o produto da sua arrecadação não tem finalidade jurídica específica. É na extrafiscalidade negativa, ao desestimular o consumo desses bens onerados pelo novo imposto, que vai se fundamentar constitucionalmente a nova incidência. E o que deve ser explicitado, fora de qualquer dúvida, é a nocividade dos bens e serviços tributados para a saúde e o meio ambiente, afastando-se qualquer possibilidade do novo tributo ser utilizado com objetivos arrecadatórios [5].

Spacca

Em regulamentação à regra de competência do artigo 153, VIII, CF, o artigo 409 da LC nº 214/2025 instituiu o Imposto Seletivo, que terá suas alíquotas definidas em lei ordinária, de forma monofásica e sem direito a qualquer creditamento. De acordo com o §1º do referido dispositivo legal, o imposto incidirá sobre veículos, embarcações e aeronaves, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas, bens minerais e concursos de prognósticos e fantasy sport. Com exceção ao carvão mineral, os demais bens e serviços sofrerão incidência de acordo com listagem taxativa prevista no Anexo XVII que se reporta aos códigos previstos na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM).

Em primeiro lugar, é preciso pontuar que a LC nº 214/2025, ao utilizar a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) para a definição dos itens que estariam sujeitos ao imposto, estabeleceu critérios fiscais, baseados na capacidade contributiva, ou ainda a outros interesses extrafiscais estranhos à proteção ao meio ambiente.

É que a NCM não constitui instrumento idôneo para a identificação do grau de nocividade ambiental dos produtos, uma vez que se traduz em uma listagem de mercadorias organizada segundo critérios técnicos que as agrupam de acordo com sua natureza, e adotada pelos países do Mercosul, a partir do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (SH), definido pela Organização Mundial das Alfândegas.

A função da NCM é servir de referência não só à aplicação da alíquota definida pela Tarifa Externa Comum (TEC), adotada pelos países do Mercosul no imposto de importação, mas também daquela definida na Tabela de Incidência do IPI (Tipi), em relação a esse imposto, e ainda na classificação das mercadorias em relação ao ICMS.

Assim, não é difícil perceber que os critérios utilizados para a distinção dentre as diversas mercadorias pela NCM não se prende às razões ambientais, mas de interesses aduaneiros ligados à tributação da importação, e à seletividade do IPI e do ICMS, baseada na essencialidade do bem, que, como vimos, está muito mais ligada à capacidade contributiva do que à extrafiscalidade. Em consequência, os elementos de distinção que a NCM se vale podem colocar em um mesmo código itens que se assemelham no que se refere à essencialidade, mas que possuem graus bem diversos de lesão ao meio ambiente, como é o caso dos veículos a gasolina e diesel e os movidos a biocombustível ou energia elétrica.

Tal conclusão é facilmente extraída do exame da comparação entre os códigos utilizados pela lei para estabelecer a incidência do imposto seletivo, aos demais itens não sujeitos à tributação ambiental. Senão vejamos. Dos bens e serviços previstos no §1º do artigo 409 da LC nº 214/2025 como sujeitos ao imposto seletivo, podem ser associados a uma preocupação ambiental os veículos, as embarcações e aeronaves e os bens minerais, sendo os demais relacionados à extrafiscalidade destinada à preservação da saúde, como os produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e concursos de prognósticos e fantasy sports.

Desonerações que não fazem sentido

A previsão pela LC nº 214/2025 dos veículos a serem tributados pelo Imposto Seletivo estabelece diversas diferenciações que em nada se relacionam com a extrafiscalidade ambiental e que, por vezes, ao contrário, subvertem essa preocupação.

Em primeiro lugar, chama a atenção a exclusão dos caminhões da incidência do imposto, considerando que normas de preocupação ambiental não deveriam estimular o transporte rodoviário de carga, máxime considerando que os caminhões geralmente utilizam-se do diesel, altamente poluente [6]. Também não se justifica a exclusão dos tratores que também, geralmente, são alimentados por diesel.

Por outro lado, não fazer distinção quanto ao combustível utilizado pelo veículo, estabelecendo a incidência sobre veículos elétricos e os que consumem biocombustíveis é medida que viola não só o princípio da defesa do meio ambiente (artigo 145, §3º, CF), como desatende o disposto no artigo 225, §3º, CF, que determina a manutenção de regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes. No plano externo a medida contraria frontalmente os compromissos assumidos pelo Brasil em decorrência do Acordo de Paris.

Não faz qualquer sentido, à luz da extrafiscalidade ambiental necessária à instituição do imposto seletivo, a desoneração dos veículos destinados às forças armadas ou aos órgãos de segurança pública, que poluem tanto quanto qualquer outro veículo, inclusive os que se dedicam ao serviço público de alta envergadura na pauta constitucional, como a educação, a saúde e a própria preservação do meio ambiente.

Vale destacar que a extrafiscalidade que autoriza a criação do imposto seletivo não se contenta com a mera alegação de que determinado produto é prejudicial ao meio ambiente. É necessário que essa nocividade seja notória ou incontroversa.

Tendo sido demonstrado que a regra de competência do artigo 153, VIII, CF, que autoriza a União a instituir o imposto seletivo, é eminentemente extrafiscal e está condicionada à identificação, para além de  qualquer sombra de dúvida, do alto grau de nocividade à saúde ou ao meio ambiente dos itens tributados, e, ainda sido revelado que a eleição dos bens tributados não guarda especial vinculação com a proteção ao meio ambiente, a oneração desses bens não é medida idônea a combater os danos ao meio ambiente,  não resta margem para compatibilizar a referida regra constitucional que delimita  a competência tributária do imposto seletivo com a tributação imposta pelo legislador complementar.

É o que o ocorre quando a tributação dos veículos automotores não leva em consideração o tipo de combustível utilizado, não fazendo distinção, no plano da incidência, entre os veículos movidos por gasolina e diesel, altamente poluidores, em relação aos que utilizam o biocombustível ou a energia elétrica, e que representam graus bem diversos ao meio ambiente, pelo simples fato de essas mercadorias estarem submetidas a mesma classificação pela NCM. Também é grave ignorar que a oneração dos veículos automotores novos inibirá a renovação da frota nacional, com a consequente substituição de carros antigos, mais poluentes, pelos mais novos dotados de tecnologia ambientalmente orientada.

Desvio de finalidade

Logo, ao dar tratamento baseado no critério da essencialidade, ao invés de se utilizar de parâmetros hábeis baseados na extrafiscalidade para servir como elemento de discrímen na definição dos itens submetidos ao imposto seletivo, a LC nº 214/2025 se afastou da regra constitucional que delimita a competência tributária, além de violar o princípio da isonomia.

É forçoso reconhecer que há um desvio de finalidade na utilização do instrumento extrafiscal criado pela EC nº 132/23, pois o tributo acaba por ter escopo meramente arrecadatório, não adentrando na dita prejudicialidade ao meio ambiente e saúde, o que foge de seu propósito constitucionalmente estabelecido no artigo 153, inciso VIII, CF.

Deste modo, identificado o real propósito arrecadatório, e a inidoneidade da medida como medida de defesa do meio ambiente, resta evidenciada que as regras de incidência do Imposto Seletivo violam a norma de competência do artigo 153, VIII, CF, no que se refere à extrafiscalidade ambiental.

Por outro lado, o artigo 150, II da Constituição veda ao legislador tributário estabelecer distinções entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibindo distinções baseadas na ocupação profissional ou função por eles exercida, na denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos por eles percebidos.

Demonstrada a inidoneidade da tributação de isolada de alguns bens como medida de prevenção ao meio ambiente, é inevitável a conclusão de que uma exigência majorada desses bens aos demais produtos, enseja uma crise axiológica que fere os princípios da isonomia e da capacidade contributiva.

Assim sendo, o artigo 409, §1º, I da LC nº 214/2025, ao estabelecer a incidência seletiva isoladamente sobre alguns veículos, sem considerar o seu grau de violação ao meio ambiente, além de desrespeitar a regra de competência constitucional do artigo 153, VIII, CF, viola os princípios da isonomia e da capacidade contributiva por conferir discriminação odiosa em relação a esses produtos, em discrímen que não está relacionado diretamente e inequivocamente com os objetivos constitucionais da norma.

Diante de todo o exposto, conclui-se que os critérios estabelecidos pela LC nº 214/2025, por meio do inciso I, §1º do artigo 409, por adotar distinções herdadas do IPI e do ICMS, cenário em que a preocupação não era ambiental, acabou por subverter a proteção ambiental constitucionalmente almejada, violando a Constituição.

 


[1] No Brasil: PRATES, Pamela Varaschin. Tributação do Pecado no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2024; FIORILLO. Celso Antonio Pacheco; FIORILLO, João Antônio Ferreira Pacheco. Os Impostos do Pecado.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.

[2] Em Portugal: VASQUES, Sérgio. Os Impostos do Pecado: o Álcool, o Jogo e o Fisco. Coimbra: Almedina,1999.

[3] LIU, Franklin. Sin taxes: Have governments gone too far in their efforts to monetize morality?, 59 B.C.L. Rev. 763. Boston College Law Review: Newton, Massachusetts, 2018, p. 763-790. Disponível em: < https://bclawreview.bc.edu/articles/367.

[4]VASQUES, Sérgio. Os Impostos do Pecado: o Álcool, o Jogo e o Fisco, p. 17.

[5] FOLLONI, André. “Competência Tributária do Imposto Seletivo: o Texto e seus Contextos”. Revista Direito Tributário Atual nº 57, 2024, p. 623–624 e 626-628.

[6] MELLO, Letícia de; BUFFON, Marciano. Reforma Tributária e lei complementar: da (des)conformidade com o texto constitucional. São Paulo: Consultor Jurídico, de 28/01/2025. In: https://www.conjur.com.br/2025-jan-28/reforma-tributaria-e-lei-complementar-critica-a-partir-da-desconformidade-com-o-texto-constitucional/ Acesso em 21/03/2025.

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