Opinião

Pontos da regulamentação da reforma tributária após passar pela Câmara

Autor

  • José Luis Ribeiro Brazuna

    é advogado em São Paulo e Brasília sócio fundador do Bratax (Brazuna Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados) professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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3 de agosto de 2024, 13h24

Escrevo este artigo depois da aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 (PLP 68), proposto pelo governo federal para regulamentar parte da reforma tributária instituída pela Emenda Constitucional nº 132/2023.

Mário Agra/Câmara dos Deputados
deputados em votação da reforma tributária

O texto seguiu para o Senado, onde se decidirá sobre a sua votação em regime de urgência. É o que deverá ocorrer, notadamente em razão do desejo político dos atuais presidentes das duas Casas Legislativas de colarem os seus nomes à regulamentação dessa importante reforma.

Em paralelo, aguarda-se a análise do Projeto nº 108/2024 (PLP 108), apresentado pelo Poder Executivo para regulamentar o Comitê Gestor do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), órgão que terá competências relacionadas à distribuição do produto da arrecadação do imposto; à retenção de saldos acumulados de créditos não recuperados pelo contribuinte; à edição de regulamento único para o imposto; à uniformização e à aplicação da legislação do IBS; e à resolução de conflitos no contencioso administrativo.

Sem prejuízo das alterações que vierem a ocorrer no Senado, apresento, em algumas poucas linhas, alguns pontos que chamaram a atenção no projeto aprovado pela Câmara:

– Fornecimentos ao poder público: definiu-se que o fato gerador do IBS e da contribuição sobre bens e serviços (CBS) ocorrerá, nessas hipóteses, apenas quando houver o respectivo pagamento dos bens ou serviços fornecidos.

– Não incidência do IBS e da CBS: sobre transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte; sobre transmissão de participação societária, incluindo alienação, baixa e liquidação; sobre transmissão de bens em decorrência de fusão, cisão, incorporação e integralização de capital; sobre rendimentos financeiros e operações com títulos ou valores mobiliários que não estejam alcançadas pelo regime específico de incidência do IBS e da CBS; sobre dividendos, juros sobre capital próprio e resultados de avaliação de participações societárias; sobre doações sem contraprestação em benefício do doador; sobre transferências de recursos públicos a ONGs; e sobre destinação de recursos por sociedade cooperativa a fundos e a distribuição de suas sobras de resultado.

– Não-contribuintes: foram assim definidos o condomínio edilício, o consórcio, a sociedade em conta de participação, o nanoempreendedor (pessoa física com receita bruta anual de até R$ 40,5 mil e que não tenha aderido ao regime do MEI) e o fundos de investimento (inclusive os Fundos de Investimento Imobiliário (FII) e os Fundos de Investimentos nas Cadeias Produtivas do Agronegócio (Fiagro), observadas certas condições), exceto quando liquidarem recebíveis antecipadamente.

– Plataformas digitais: serão responsáveis pelo recolhimento do IBS e da CBS, quando o fornecedor for residente ou domiciliado no exterior ou quando, estabelecido no país, não estiver inscrito como contribuinte e não emitir documento fiscal para a operação.  Com relação a esta matéria, há pontos sensíveis a serem aprimorados, dentre os quais:

– Qual será o papel da plataforma digital quando atuar em nome de um fornecedor estrangeiro que esteja registrado como contribuinte do IBS e da CBS, no moldes previstos no artigo 21?  De acordo com o artigo 23, inciso I, a responsabilidade da plataforma seria exclusiva, mas isso entraria em conflito com a submissão do fornecedor estrangeiro às obrigações (principal e acessórias) relativas aos dois tributos.

– Segundo o artigo 23, § 5º, o Comitê Gestor e a Receita Federal informarão à plataforma digital a condição de contribuinte do fornecedor, ainda que não esteja ele inscrito no respectivo cadastro. Sendo isso verdadeiro, quer dizer que a plataforma será responsável pelo IBS e pela CBS somente quanto às operações realizadas pelos fornecedores indicados pelo Comitê Gestor e pela Receita?

Spacca

– Com relação às obrigações acessórias às quais as plataformas poderão estar sujeitas, o artigo 23, § 4º, poderia ser visto como um limitador, no sentido de que as plataformas deverão prestar somente informações sobre as transações intermediadas, identificando o fornecedor, mesmo quando não for ele contribuinte do IBS e da CBS? Ou, na verdade, as plataformas poderão sujeitar-se a outras obrigações que vierem a ser instituídas, inclusive de maior complexidade, tal como a emissão de nota fiscal para cada uma das operações intermediadas? A meu ver, esse tipo de imposição deve encarado com cautela, notadamente à luz das orientações da OCDE que inspiram [1] o PLP 68 e, segundo as quais, as plataformas digitais (em especial as domiciliadas fora do país) devem ser submetidas a regimes simplificados e amistosos de compliance fiscal [2].

– Essa questão deve ser pensada, ainda, à luz dos mecanismos de split payment que, como veremos logo adiante, partem da premissa de vinculação dos documentos fiscais eletrônicos relativos à operação com a transação de pagamento respectiva, conforme artigo 51, incisos I e II, do PLP 68.

– Não-cumulatividade e operações desoneradas: será mantida a regra atual de que operações imunes, isentas ou sujeitas a alíquota zero não geram créditos, enquanto a imunidade ou isenção da operação realizada pelo contribuinte demandará a anulação dos créditos das operações anteriores correspondentes.  Isso não se aplicará, em princípio, aos casos de operações sujeitas a alíquotas reduzidas.

– Não-cumulatividade condicionada ao pagamento: contrariando a literalidade do artigo 156-A, § 1º, inc. VIII, da Constituição, o PLP 68 pretende vincular o crédito de IBS e CBS ao pagamento desses tributos pelo fornecedor.

– Não-cumulatividade, split payment e reserve charge: como forma de operacionalizar essa vinculação, o projeto estabelece como regras: (1) o recolhimento dos tributos na liquidação financeira da operação (split payment), quando realizada por instrumento de pagamento eletrônico; ou (2) o recolhimento pelo próprio adquirente (reverse charge), quando utilizado outro mecanismo de pagamento.

– Conceito e modalidades de split payment: os prestadores de serviços de pagamento eletrônico deverão segregar e recolher ao Comitê Gestor do IBS e à Receita Federal, no momento da liquidação financeira da transação, os valores do IBS e da CBS devidos após a compensação com créditos de titularidade do contribuinte (modalidade automática).  Caso a verificação dos créditos não possa ser feita automaticamente, o prestador do serviço de pagamento eletrônico recolherá o IBS e a CBS incidentes sobre a operação, ficando a cargo do Comitê Gestor e da Receita Federal verificar os créditos que poderiam ser deduzidos em razão da não-cumulatividade, transferindo ao contribuinte, em até três dias, os valores de IBS e CBS eventualmente segregados e recolhidos a maior (modalidade manual).  Por fim, o contribuinte poderá optar por uma modalidade simplificada, para operações destinadas a não contribuintes dos dois tributos, no qual os valores de IBS e CBS a serem segregados e recolhidos serão calculados com base em um montantes pré-estabelecidos.

– Bens e serviços de uso e consumo pessoal: segundo aprovado na Emenda Constitucional nº 132, bens e serviços de uso e consumo pessoal do contribuinte não permitirão a apropriação de créditos do IBS e da CBS.  O PLP 68, todavia, lançou mão de um mecanismo dúbio – e, a meu ver, inapropriado – para lidar com o tema: (1) definiu, mediante uma lista exaustiva, quais seriam os bens e serviços de uso e consumo pessoal que não dariam direito a crédito (artigo 30); mas (2) estabeleceu uma lista exemplificativa, no seu artigo 39, do que será considerado fornecimento não oneroso de bens para uso e consumo, situação em que o crédito da operação anterior acabará sendo anulado pelo pagamento do IBS e da CBS no fornecimento não oneroso. Esse mecanismo atinte em cheio os chamados fringe benefits ofertados pelas empresas aos seus colaboradores, tais como auxílio para habitação, , celulares, serviços de saúde, bolsas de educação e alimentação. Planos de saúde, vale-refeição e vale-alimentação, quando previstos em convenção coletiva de trabalho, não deverão ser tributados. Uniformes, fardamentos e EPIs também foram excluídos desse tratamento.

– Ressarcimento: o contribuinte que apurar saldo credor de IBS e CBS ao final do período de poderá solicitar o seu ressarcimento, o que deverá ocorrer: (1) no prazo de 30 dias, para os contribuintes que aderirem a programas de conformidade; (2) em 60 dias, no caso de créditos relativos à aquisição de bens e serviços incorporados ao ativo imobilizado e desde que o valor a ressarcir seja igual ou inferior a 150% do valor médio mensal da diferença entre créditos e débitos apurados nas operações do contribuinte; ou (3) em 180 dias, nas demais situações.

– Alíquotas do IBS e da CBS – possibilidade de limitação: incluiu-se regra no artigo 465, do PLP 68, prevendo a possibilidade de limitação da alíquota total dos dois tributos a 26,5%, a partir de 2032, a depender da primeira avaliação quinquenal da sua arrecadação de 2026 a 2032.  Os critérios para tal avaliação, todavia, são extremamente abrangentes e muito pouco objetivos, podendo incluir até mesmo o “impacto da legislação do IBS e da CBS na promoção da igualdade entre homens e mulheres e étnico-racial”.  A efetividade desse limite, portanto, é bastante duvidosa.

– Alíquotas para fornecimentos à administração pública direta, autarquias e fundações públicas: tais operações poderão ser objeto de fatores de redução calculados, de 2027 a 2033, conforme as variáveis do artigo 369 do PLP 68. O fator estabelecido para 2033 deverá ser observado de 2034 em diante.

– Foram regulados os regimes específicos de apuração do IBS e da CBS, como tais entendidos aqueles que envolvem regras especiais quanto a alíquotas, não-cumulatividade e base de cálculo.

– Foram também esmiuçados os regimes diferenciados, que compreendem reduções do IBS e da CBS nos percentuais de 30%, 60%, 100% e isenção. Dentre os itens sujeitos à redução de 60%, foram abarcados: (1) os produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; e (2) os insumos agropecuários e aquícolas descritos no anexo X do PLP 68, incluindo-se aí bens e serviços relacionados ao melhoramento genético de plantas e biotecnologia, além de biofertilizante, bioestimulantes e diversos serviços agrícolas.

– Foram ainda regulados os regimes favorecidos aplicáveis para microempresas e empresa de pequeno porte (Simples Nacional), bem como para biocombustíveis e hidrogênio verde, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à dos combustíveis fósseis.

– Cashback: mirando a população de mais baixa renda, além de veicular listas de produtos da cesta básica nacional de alimentos (sujeitos a alíquota zero), de produtos alimentícios e de higiene com redução de 60% do IBS e da CBS, o PLP 68 regulamentou o mecanismo de devolução total ou parcial desses tributos cobrados em determinadas compras, quando realizadas por consumidor responsável por unidade familiar inscrita no CadÚnico.

– Regimes aduaneiros especiais: foram resguardados os regimes aduaneiros de trânsito, depósito, permanência temporária, aperfeiçoamento, Repetro, zonas de processamento de exportação, Reporto e Reidi, inserindo-se, ainda, a possibilidade genérica de serem definidas hipóteses de suspensão do IBS e da CBS para as importações e aquisições no mercado interno de bens de capital.

– Zona Franca de Manaus: substituiu-se a complexa metodologia da versão original do projeto, para cálculo do crédito presumido de IBS a ser concedido aos fabricantes da ZFM, pela fração fixa de 2/3 do valor calculado segundo os seguintes percentuais: 55%, para bens de consumo final; 75%, para bens de capital; 90,25%, para bens intermediários; e 100% para bens de informática. Como contrapartida aos incentivos fiscais do IBS e da CBS, o estado do Amazonas poderá instituir contribuição destinada ao financiamento do ensino superior, fomento às micro, pequenas e médias empresas e à interiorização do desenvolvimento, inicialmente no percentual de 1,5% do faturamento das indústrias incentivadas.

Lembre-se, finalmente, que o PLP 68 também regulamentou o chamado “imposto do pecado”.  O Imposto Seletivo (IS) deverá incidir sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, tendo sido como tais considerados: embarcações e aeronaves, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e bens minerais extraídos da natureza, concursos de prognósticos, fantasy sports e veículos automotores (incluindo-se os elétricos e híbridos, mas se excluindo os caminhões).

Chama a atenção que, no que se refere à pretensão de se exigir o IS sobre concursos de prognósticos e fantasy sports, não existe autorização para a responsabilização de plataformas digitais, domiciliadas no Brasil ou no exterior, a exemplo do que se dá no caso do IBS e da CBS.

A ver, nos próximos meses, que novidades surgirão na tramitação do PLP 68.

 


[1] Vide itens 59, 60 e 90 da exposição de motivos nº 00038/2024 do PLP 68, apresentada em 24 de abril de 2024, pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

[2] Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy (OECD/G20 BEPS Project, 2015 Final Report); International VAT/GST Guidelines (OECD, 2017); Simplified registration and collection mechanisms for taxpayers that are not located in the jurisdiction of taxation: A review and assessment (OECD, 2018); The Role of Digital Platform in the Collection of VAT/GST on Online Sales (OECD, 2019); The Impact of the Growth of the Sharing and Gig Economy on VAT/GST Policy and Administration (OECD, 2021); Consumption Tax Trends 2022 (OECD, 2022); e Tax Policy Reforms 2023: OECD and Selected Partner Economies (OECD, 2023).

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