Caminhamos para a CLT facultativa e para o fim da Justiça do Trabalho?
30 de abril de 2025, 7h06
Faz algum tempo que se percebe um maior interesse do Supremo Tribunal Federal sobre as questões trabalhistas em nosso país. Muito embora exista uma Justiça Especializada para julgar os conflitos oriundos do trabalho, com a existência de uma Corte Superior Especializada, inclusive, o STF insiste em adentrar em questões muito particulares da Justiça do Trabalho, sob o pretexto, talvez, de que há previsão constitucional de direitos sociais trabalhistas.

A Emenda Constitucional nº 45 de 2004 teve como escopo a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, sendo possível tal conclusão pela simples leitura do dispositivo antes de sua reforma e após sua reforma. Originariamente, assim previa o artigo 114 da Constituição de 1988:
“Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”.
Já na redação atual, prevê o artigo 114, I, da CF/88:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;”
Percebe-se, portanto, a nítida diferença entre as redações. Enquanto o constituinte originário falava em “dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”, o constituinte derivado ampliou a competência para abarcar as relações de trabalho em geral, deixando claro que não se trata apenas das relações empregatícias, mas qualquer relação de trabalho – o que deveria incluir o trabalho autônomo, eventual, voluntário, entre outros.
Apesar disso, desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, o STF vem, paulatinamente, reduzindo o conceito dado pelo Poder Constituinte para restringir a competência da Justiça do Trabalho às questões empregatícias, próprias dos artigos 2º e 3º da Consolidação das leis do Trabalho, ao arrepio da vontade do poder constituinte derivado. Basta lembrar da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.395 em que se afastou a competência da Justiça do Trabalho para julgamento de ações entre servidores e a administração pública, quando regidos pelo regime estatutário.
Desde então, foram muitas decisões restritivas da competência trabalhista. Mas, nos últimos tempos, o STF passou a julgar vários temas relativos ao mundo do trabalho, sempre a partir de uma ótica neoliberal, com redução dos direitos trabalhistas, em nome da livre iniciativa, e com descarte do valor social do trabalho.

Foi justamente o que se observou no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 324, em que isto foi dito nas razões de decidir e, justamente em nome da livre iniciativa, declarou-se a licitude da terceirização, ainda que referente à atividade-fim da empresa, sendo firmada a seguinte tese: “1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993”.
A partir deste precedente, que a princípio se referia à terceirização e, ainda, ressalvados os casos de fraude, conforme se observa da fundamentação do decisum, o STF passou a validar qualquer forma de contratação, inclusive sob a prática denominada há muito no Direito do Trabalho de pejotização, por meio de reclamações constitucionais que cassaram inúmeras decisões da Justiça do Trabalho em que reconhecida a fraude na contratação e os elementos caracterizadores da relação de emprego, fazendo da reclamação constitucional um verdadeiro sucedâneo recursal.
O cenário já era devastador, uma vez que abandonados, pela Corte Suprema, princípios basilares do Direito do Trabalho, notadamente o princípio da primazia da realidade, positivado no artigo 9º da CLT. Também se via, nessas inúmeras decisões proferidas em reclamações constitucionais, um afastamento da competência da Justiça do Trabalho para a análise dos contratos firmados por trabalhadores fraudulentamente autônomos ou contratados, também, fraudulentamente, por meio de pessoa jurídica. Essa situação também era um tanto curiosa, uma vez que a análise dos requisitos da relação de emprego envolve análise de matéria fática, que não deve ser enfrentada por cortes superiores, deixando claro o viés ideológico do Supremo Tribunal Federal.
Apesar disso, como as decisões das reclamações constitucionais são proferidas por Turmas do STF não são vinculantes ao restante do poder Judiciário, a Justiça do Trabalho continuou, em geral, julgando as ações que envolviam alegação de fraude à relação de emprego, ainda que a relação se revestisse de um contrato civil ou comercial, já que esta competência lhe é conferida pela Constituição Federal (artigo 114, I) e a CLT continua sendo uma lei de observância obrigatória.
CLT como letra morta
Na visão prevalecente da Justiça do Trabalho, a contratação da prestação de serviços autônomos, eventuais ou “pejotizados” pode ser feita desde que esta relação seja verdadeiramente autônoma e não subordinada.
A situação parecia não poder ficar pior, até que em 14 de abril de 2025, no julgamento do ARE 1.532.603, o STF reconheceu a repercussão geral do Tema 1.389, para análise dos seguintes temas, que após julgados vincularão todo o Poder Judiciário: :“1) a competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas em que se discute a fraude no contrato civil de prestação de serviços; 2) a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos; e 3) a questão referente ao ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil, averiguando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante”.
Na mesma decisão, foi determinada a suspensão de todos os processos que tratassem do tema acima, remanescendo a dúvida se a suspensão abrangeria casos em que inexistentes a existência de um contrato escrito. A dúvida, porém, parece ser dissipada a partir de recentes decisões do STF, mais uma vez em sede de reclamação constitucional, em que determinada a suspensão de processo que envolvia contratação de trabalhador autônomo por contrato meramente verbal.
Como se percebe, o STF parece mesmo estar contra os trabalhadores e contra a Justiça do Trabalho. Se concretizado o cenário que vem se desenhando e o STF reconhecer genericamente a validade de contratação de trabalhadores autônomos ou por meio de pessoa jurídica, na prática, a Suprema Corte tornará a legislação trabalhista facultativa, opcional, letra morta. Qual empresa, dentro de um sistema capitalista, optará por contratar um empregado, nos moldes do artigo 3º da CLT, se pode contratar um profissional autônomo?
Basta fazer a conta matemática e relembrar um princípio básico de microeconomia, segundo o qual as pessoas são agentes racionais que respondem a incentivos e desejam maximizar sua utilidade. Sairá muito mais barato contratar de forma autônoma, quando o trabalhador não terá nenhum direito, o que acarretaria, na prática, o fim da CLT.
E já vivemos situação parecida na história. Basta pensar que a estabilidade decenal, a qual era prevista no artigo 492 da CLT, foi paulatinamente extinta na prática, quando instituído o regime opcional do FGTS pela Lei 5.107, de 13 de setembro de 1966. Se empregador poderia escolher por um regime que lhe favorecesse, ou seja, o regime do FGTS, por que escolheria pela estabilidade decenal? E que escolha restava aos trabalhadores que precisam de seu emprego para sobreviver? Do mesmo jeito, que escolha restará ao trabalhador se o empregador lhe impuser um contrato de autonomia, quando o trabalho é a única forma de seu sustento?
Tudo fica ainda pior se pensarmos que o STF pode, ainda, declarar que a competência para análise de fraude a contratos civis e comerciais não é da Justiça do Trabalho, o que certamente resultaria em uma reforma constitucional perpetrada pela própria Suprema Corte. A intenção parece, mesmo, nesse caso, o sufocamento da Justiça do Trabalho, já que, se a CLT deixa de ser de observância obrigatória, em poucos anos não teríamos mais empregados celetistas e aí, pergunta-se: se a competência da Justiça do Trabalho resumir-se às relações de emprego, para que existir justiça do Trabalho se as relações de emprego deixarem de existir?
Caso tudo isso se concretize, podemos dizer mesmo que caminhamos para um cenário em que a CLT se tornará facultativa e a Justiça do Trabalho perderá a razão de existir. Um verdadeiro assalto aos direitos sociais trabalhistas e à Justiça do trabalho. Um ataque sem precedentes ao Estado do bem-estar social, com a falência da previdência social em nosso país.
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