Opinião

Transação tributária de alto impacto econômico: avanço ou retrocesso?

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  • é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina especialista em Direito Tributário pelo Ibet professor de Direito Tributário na Faculdade Cesusc sócio e coordenador do Núcleo de Educação Corporativa no escritório Marchiori Sachet Barro e Dias Advogados.

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15 de abril de 2025, 6h38

Ao tempo em que se noticiam avanços entre o Senado e a Fazenda para a votação do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 125, de 2022 [1], que qualifica e impõe restrições ao devedor contumaz [2], uma nova iniciativa de transação tributária focada em disputas de alto impacto econômico é regulamentada pela Portaria PGFN/MF nº 721, de 2025 [3].

A proposta de transação na cobrança de créditos judicializados com montantes significativamente elevados [4], baseada no Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado (PRJ), é resultado da instituição do Programa de Transação Integral (PTI), regido pela Portaria Normativa MF nº 1.383, de 2024 [5], composto por um conjunto de medidas destinadas à redução do contencioso tributário de alto impacto econômico, com o objetivo de promover a regularização de passivos e encerrar litígios de forma eficiente e consensual (artigo 1º).

O que precisamente distingue a transação na cobrança de créditos da União objeto de contencioso de alto impacto econômico é a mensuração do Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado (PRJ), empreendida pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a partir da avaliação do custo de oportunidade baseado na prognose das ações judiciais relacionadas aos créditos inscritos ou não em dívida ativa, considerando critérios como o grau de indeterminação do resultado das ações judiciais e a temporalidade da discussão judicial relativa aos créditos [6].

Os temas potencialmente envolvidos no Programa de Transação Integral (PTI) foram pré-definidos pela Portaria Normativa MF nº 1.383, de 2024 (Anexo I), com a descrição de um rol mínimo de controvérsias jurídicas disseminadas e relevantes integrantes da política de negociação, sem prejuízo de outros temas acrescidos posteriormente [7].

Para o atendimento desse fim, coube atribuir à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil o esforço de mutuamente colaborarem, dentre outras tarefas, para o compartilhamento de dados ou fornecimento de informações cadastrais, patrimoniais e econômico fiscais necessárias à mensuração da capacidade de pagamento dos contribuintes e do Potencial Razoável de Recuperação de Créditos Judicializados (PRJ) [8].

Pois bem. Ao regulamentar a proposta de transação tributária baseada no Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado, integrante do aludido Programa de Transação Integral, a recém-publicada Portaria PGFN/MF nº 721, de 2025, tratou (aparentemente) de desprezar a capacidade de pagamento do sujeito passivo, precisamente na negociação de créditos que alcancem valor igual ou superior a R$ 50 milhões.

Spacca

Veja-se que, nos temos da Portaria PGFN/MF nº 721, de 2025, o Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado, medida para concessão de descontos, será mensurado a partir do custo de oportunidade baseado na prognose das ações judiciais relacionado ao crédito negociado e considerará:

1 – o grau de indeterminação do resultado das ações judiciais obstativas dos meios ordinários e convencionais de cobrança;
2 – a temporalidade da discussão judicial relativa aos créditos objeto de negociação;
3 – o tempo de suspensão de exigibilidade por decisão judicial; 4 – a perspectiva de êxito das estratégias judiciais; e
5 – o custo da demanda e da cobrança administrativa e judicial (artigo 5º) [9]. Adicionalmente, os créditos devem estar inscritos em dívida ativa da União, ser objeto de ação judicial antiexacional, além de estar integralmente garantidos ou suspensos por decisão judicial.

Transformações profundas e aprendizado constante

A metodologia chama a atenção porque o compromisso sempre alardeado desde a implementação do marco legal da transação tributária, instituído pela Lei nº 13.988, de 2020, foi de romper com a lógica anti-isonômica dos antigos programas de parcelamento [10], prestigiando a capacidade contributiva (capacidade de pagamento) e celebrando o contribuinte bom pagador [11]. E aqui é importante não olvidar que a Portaria PGFN/MF nº 721, de 2025, tratou de autorizar, a exclusivo critério da administração tributária e observado o Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado, a concessão de descontos muito significativos, de até 65% do valor do crédito (abatimento máximo permitido em lei federal), vedado o desconto sobre o principal (artigo 4º).

Outra questão importante a ser observada é que a Lei nº 13.988, de 2020, obstaculiza a transação tributária que envolva devedor contumaz, sendo que os noticiários já dão conta — conforme iniciamos informando nesse texto — da iminente deliberação pelo Congresso do PLP nº 125, de 2022.

Temos observado e advertido em manifestações pretéritas, a partir do regime legal e das modalidades de transação tributária implementadas, que o instituto negocial, recentemente inaugurado no Direito brasileiro, representa, por si, um avanço muito importante para o fortalecimento de um modelo de jurisdição plural (multiportas) [12], representando uma ruptura com a tradição fiscalista ortodoxa, fortemente arraigada ao princípio da estrita legalidade e à ideia de plena vinculação administrativa do lançamento.

Após cinco anos da implementação da lei federal de transação tributária, que revelou e consolidou um modelo consensual muito significativo em termos de incremento arrecadatório [13], já sucederam transformações normativas bastante profundas. A própria postura institucional da administração tributária vem sinalizando um aprendizado constante, a partir de interlocuções mais francas e abertas com os contribuintes.

Ao mesmo tempo, algumas vertentes da transação tributária somente avançaram a partir de externalidades não confessadas, a exemplo de conquistas na transação tributária no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, impulsionada pela derrubada no voto de qualidade no contencioso administrativo.

É hora de avançar no debate mais profundo a respeito dos mecanismos de prevenção e resolução de conflitos em matéria tributária, a fim de que as iniciativas atuais não resultem ofuscadas como uma política meramente transitória, efêmera e oportunista, apenas com propósitos arrecadatórios, sem maior preocupação com a participação efetiva e democrática dos contribuintes na condução da boa arrecadação.

 


[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/04/senado-e-fazenda-fecham-acordo-para-votar-projeto-do-devedor-contumaz.shtml.

[2] conceito central para a caracterização do crime previsto no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137, de 1990.

[3] Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=140211.

[4] Art. 2º Podem ser negociados na modalidade de que trata o art. 2º, caput, inciso I, da Portaria Normativa MF nº 1.383, de 29 de agosto de 2024, os créditos que alcancem valor igual ou superior a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) e que, na data de publicação desta Portaria, estejam inscritos em dívida ativa da União, sejam objeto de ação judicial antiexacional e estejam: I – integralmente garantidos; ou II – suspensos por decisão judicial

[5] Art. 2º São modalidades do Programa de Transação Integral (PTI): I – transação na cobrança de créditos judicializados de alto impacto econômico, baseada no Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado (PRJ), observado o disposto no Capítulo II da Lei nº 13.988/2020; e II – transação no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica e de alto impacto econômico, baseada no rol de temas indicados no Anexo I desta Portaria e nos seus atos complementares, observado o disposto no Capítulo III da Lei nº 13.988/2020. Parágrafo único. Os contribuintes poderão incluir múltiplos créditos na oferta inicial de transação, optando pelas modalidades previstas nesta Portaria, sendo vedada a cumulação de modalidades para um mesmo crédito ou inscrição judicializados.

[6] Art. 3º Na transação na cobrança de créditos da União objeto de contencioso de alto impacto econômico, o Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado (PRJ) será mensurado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a partir da avaliação do custo de oportunidade baseado na prognose das ações judiciais relacionadas aos créditos inscritos ou não em dívida ativa, considerando: I – o grau de indeterminação do resultado das ações judiciais obstativas dos meios ordinários e convencionais de cobrança; e II – a temporalidade da discussão judicial relativa aos créditos objeto de negociação.

[7] I – Discussões sobre a incidência de contribuições previdenciárias sobre valores pagos a título de participação nos lucros e resultados da empresa; II – Discussões sobre a correta classificação fiscal dos insumos produzidos na Zona Franca de Manaus e utilizados para produção de bebidas não alcoólicas, para fins de aproveitamento de créditos de IPI e para fins de definição da alíquota de PIS/COFINS e reflexo no IRPJ e na CSLL; III – Discussões sobre a irretroatividade do conceito de praça previsto na Lei nº 14.395, de 8 de julho de 2022, para aplicação do Valor Tributável Mínimo – VTM nas operações entre interdependentes, para fins de incidência do IPI; IV – Discussões sobre dedução da base de cálculo do PIS/COFINS, pelas instituições arrendadoras, de estornos de depreciação do bem, ao encerramento do contrato de arrendamento mercantil; V – Discussões sobre requisitos para cálculo e pagamento de Juros sobre o Capital Próprio (JCP); VI – Discussões sobre a incidência de IRPJ e CSLL sobre o ganho de capital no processo de desmutualização da Bovespa; e discussões sobre a incidência de PIS/COFINS na venda de ações recebidas na desmutualização da Bovespa e da BM&F; VII – Discussões sobre amortização fiscal do ágio; VIII – Discussões sobre a incidência de PIS/COFINS nos casos de segregação da empresa para quebra da cadeia monofásica; IX – Discussões sobre as Instruções Normativas RFB nº 243/2002 e nº 1.312/2012 na disciplina dos critérios de apuração do preço de transferência pelo método PRL, conforme o art. 18 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996; X – Discussões sobre a incidência de contribuição previdenciárias do empregador nas hipóteses de contratação de empregados na forma de pessoa jurídica, com dissimulação do vínculo empregatício (“pejotização” da pessoa física); XI – Discussões sobre a incidência de IRPF e de contribuição previdenciária sobre os valores auferidos em virtude de planos de opção de compra de ações, chamados “stock options”, ofertados pelas empresas a seus empregados e/ou diretores; XII – Discussões sobre dedução de multas administrativas e regulatórias da base de cálculo do IRPJ e da CSLL;

XIII – Discussões sobre incidência de IRRF sobre ganho de capital auferido por investidor não residente no País (INR); XIV – Discussões sobre dedutibilidade da base de cálculo do IRPJ e da CSLL das despesas com a emissão ou a remuneração de debêntures; XV – Discussões sobre a incidência de IRRF e CIDE sobre as remessas ao exterior efetuadas por empresas do setor aéreo; XVI – Discussões acerca da aplicação das regras de preços de transferência para fins de apuração do IRPJ e da CSLL com base no arts 18 a 24 da Lei nº 9.430, de 1996, relativamente ao setor aéreo; e XVII – Discussões acerca da tributação de receitas na apuração do Lucro Real e da base de cálculo da CSLL das empresas do setor aéreo.

[8] Art. 5º A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil colaborarão mutuamente para: I – identificação dos créditos tributários judicializados elegíveis ao PTI; II – verificação e validação dos registros administrativos e quaisquer informações relacionadas aos débitos dos contribuintes ou às ações judiciais relacionadas aos créditos objeto de negociação; III – compartilhamento de dados ou fornecimento de informações cadastrais, patrimoniais e econômico fiscais necessárias à mensuração da capacidade de pagamento dos contribuintes e do Potencial Razoável de Recuperação de Créditos Judicializados (PRJ); e IV – elaboração dos editais que, na forma do art. 17 da Lei nº 13.988/2020, consolidarão, de maneira objetiva, as hipóteses fáticas e jurídicas dos acordos relacionados a controvérsias disseminadas e relevantes.

[9] § 1º O grau de indeterminação do resultado das ações judiciais obstativas dos meios ordinários e convencionais de cobrança será aferido com base, exclusivamente, nos seguintes eventos objetivos do processo: I – sentença; II – acórdão em sede de apelação; III – acórdão em sede de recurso especial ou extraordinário; IV – precedente vinculante sobre a matéria objeto de litígio; e V – jurisprudência da Turma ou Tribunal em que tramita a ação. §2º A temporalidade da discussão judicial relativa aos créditos objeto de negociação considerará a expectativa acerca do tempo em que continuará obstando os meios ordinários e convencionais de cobrança. § 3º A aferição do Potencial Razoável de Recuperação do Crédito Judicializado – PRJ é de critério exclusivo da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e constitui elemento de estratégia de atuação na defesa dos interesses da União, ficando resguardado por sigilo nos termos do art. 34, caput, inciso VII, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, do art. 116, caput, inciso VIII, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e do art. 28 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.

[10] Nesse sentido: Qual a diferença da transação para um parcelamento especial? (https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/transacao-tributaria/transacao-tributaria/diferenca); Transação Tributária: negocie com benefícios (https://www.gov.br/pgfn/pt-br/servicos/orientacoes-contribuintes/acordo-de-transacao); Pode-se muito, mas não se pode tudo: transação tributária não é parcelamento (https://www.conjur.com.br/2022-dez-25/processo-tributario-transacao-nao-parcelamento/); Transação tributária como política de Estado (https://www.conjur.com.br/2024-abr-30/a-transacao-tributaria-como-politica-de-estado/).

[11] Art. 1º (…). § 2º Para fins de aplicação e regulamentação desta Lei, serão observados, entre outros, os princípios da isonomia, da capacidade contributiva, da transparência, da moralidade, da razoável duração dos processos e da eficiência e, resguardadas as informações protegidas por sigilo, o princípio da publicidade.

[12] MACHADO, C. H. Modelo multiportas no direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021; MACHADO, C. H.; CATARINO, J. R; SOBRAL, S. Marco Teórico do Modelo Multiportas no Direito Tributário Brasileiro: Arbitragem, Mediação, Conciliação e Transação. In: Revista Jurídica Portucalense, nº 33, p. 33-66, Universidade Portucalense, Porto, 2023.

[13] De acordo com o Relatório PGFN em Números 2024, do valor total da Dívida Ativa da União recuperado somente no ano de 2023 (R$ 48,3 bilhões), a transação tributária foi responsável por R$ 20,7 bilhões. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros/pgfnemnumeros2024.pdf.

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em Direito pela UFSC, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, professor no PPG-Dir da Universidade Católica de Brasília e no Centro Universitário Uncesusc.

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