Ausência de clareza na atribuição de competência sobre segurança pública na Constituição
29 de abril de 2025, 6h03
Um dos mais relevantes temas no debate das relações federativas na atualidade é a segurança pública. Há algum tempo defendo que assuntos como este, junto com outros como a cooperação contra catástrofes climáticas e o aprimoramento de instrumentos de efetividade de políticas públicas por gestão cooperada (como os consórcios públicos), são as principais reflexões para o fomentar as pesquisas sobre o pensamento federativo brasileiro, seja na abordagem da Ciência Política, seja na Dogmática Constitucional.

Em 8 de abril o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, apresentou ao presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, a minuta da alcunhada PEC da Segurança Pública, que modificará substancialmente (ainda que não tanto quanto entendo necessário) a participação da União no fomento e execução nesta essencial área do serviço público.
Com este breve ensaio quero provocar algumas reflexões no âmbito federativo acerca da temática que talvez, pela minha leitura, é aquela que o projeto constitucional de 1988 não conseguiu (ainda) resolver. Em mais de 36 anos de vigência da Constituição, o Brasil avançou em diversas categorias de efetividade de direitos fundamentais: saúde, educação (básica e superior), acesso à cultura, proteção de vulneráveis, assistência social. Porém, a segurança pública parece ser ainda a pedra de Sísifo do Poder Público brasileiro nos três níveis da federação.
Segurança pública é competência dos estados?
O texto constitucional deixa uma incógnita quanto à segurança pública. Como o assunto foi objeto de discussão em algumas subcomissões distintas durante a Constituinte de 1987/1988, a Constituição não o apresenta de modo tão claro quanto outros temas. Há, porém, um ponto de partida na dogmática constitucional: a segurança é um direito fundamental. O termo segurança vem prescrito como direito individual no caput do artigo 5º e como direito social no artigo 6º. Neste caso, o Estado brasileiro tem o dever de prover meios necessários para proteger a vida e a incolumidade física dos cidadãos.
A segurança como direito social, neste sentido, pode ser compreendida como segurança pública. Porém, diversamente de muitos deles, as regras sobre segurança pública não são previstas no título sobre a ordem social e sim, muito genericamente, no título que versa sobre a defesa do Estado e das instituições democráticas, que compreende texto constitucional do artigo 136 ao artigo 144, que trata justamente da segurança pública: uma atividade estatal que pode ser compreendida em duas frentes de atuação na ordem constitucional de 1988: como repressão e como preservação da coesão social [1].
De modo distinto também de muitos direitos sociais ou matérias próprias de políticas públicas, não há no sistema de repartição de competência a atribuição de privatividade administrativa ou legislativa para a União, nem de modo compartilhado do poder federal com Estados. Em momento algum a Constituição, na redação atual dos artigos 21, 22, 23 ou 24, menciona o termo “segurança pública”.
Não é matéria de poder enumerado de forma privativa (como competência administrativa ou legislativa) nem à União, nem de modo comum ou concorrente com entes subnacionais. O artigo 25 enumera as parcas competências privativas dos estados e também o texto normativo não deixa evidente a atribuição da segurança pública como responsabilidade dos estados. O sistema federal brasileiro, tão centralizador, concede aos Estados apenas competência privativa para legislar sobre regiões metropolitanas e competência privativa administrativa sobre a exploração de serviços de gás canalizado, de forma direta ou mediante concessão [2].
Em conformidade com o sistema de repartição de competências brasileiro, os Estados possuem poderes reservados (artigo 25, §1º). Neste ponto, ainda é uma herança da Constituição de 1891, que por sua vez foi amplamente inspirada na Constituição estadunidense. Porém, como desde 1930 o sistema federal brasileiro sofreu uma guinada centralizadora de tal modo que a União não deixou mais de ter ampla supremacia política sobre os entes subnacionais — em momentos mais intensos ou menos intensos —, os poderes residuais dos estados são inócuos.
Veja-se a ampla jurisdição [3] da União na Constituição de 1988: praticamente quase tudo o que pode ser objeto de ações da administração pública ou matéria de lei está previsto ou como competência privativa da União (artigos 21 e 22) ou a União compartilha com outros entes (artigos 23 e 24). Além, a Constituição também enumera competências dos municípios no artigo 30. Nenhum destes dispositivos normativos, como acima dito, menciona a segurança pública. Então, a resposta mais imediata e, portanto, superficial seria atribuir a competência sobre segurança pública aos estados em razão da ausência de enumeração a outros entes federativos. Os estados avocariam para a si a competência em razão da reserva de poderes.
Há outras razões que evidenciariam a competência dos estados para assuntos de segurança pública.
O artigo 42 da Constituição, reformulado pela Emenda Constitucional nº 18/1998, dispõe que as Polícias Militares integram a estrutura dos estados e do Distrito Federal. Seu § 1º confere a esses entes federativos a competência para legislar sobre temas específicos relacionados ao ingresso nas corporações, além de outros aspectos como estabilidade, deveres, direitos, remuneração, entre outros, nos termos do artigo 142, § 3º, X. Também, aplica-se às polícias militares estaduais o disposto no artigo 14, § 8º; artigo 40, § 9º; e artigo 142, §§ 2º e 3º da própria Constituição. A norma também prevê a possibilidade de regulamentação por lei, embora sem especificar expressamente a qual ente federativo compete essa atribuição.

Em adição, conforme a previsão do artigo 144, § 6º, da Constituição, as polícias militares — encarregadas do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública — estão subordinadas aos governadores dos Estados e ao governador do Distrito Federal.
Outro modo de se pensar a competência sobre a segurança pública ser dos estados é distinguir as funções dos órgãos previstos no artigo 144 da Constituição. Em seus incisos, este artigo define os órgãos responsáveis pela segurança pública, distribuindo suas competências entre a União — por meio da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal e Polícia Penal Federal — e os estados e o Distrito Federal — por meio das Polícias Civis, Polícias Militares, Corpos de Bombeiros Militares e polícias penais.
Entre os órgãos federais, apenas a Polícia Federal exerce funções de polícia judiciária (conforme o §1º do artigo 144). Já as Polícias Rodoviária e Ferroviária Federais possuem atribuições ostensivas, mas limitadas às rodovias e ferrovias federais, respectivamente (§§2º e 3º). Assim, observa-se que a União não dispõe, nos termos constitucionais, de um órgão encarregado do policiamento ostensivo urbano — função que não é atribuída, tampouco, às polícias das Forças Armadas, como a Polícia do Exército.
Essa ausência de previsão de competência federal para executar o policiamento ostensivo pode, à primeira vista, parecer coerente, dado que os Estados já dispõem de suas próprias polícias militares. No entanto, há uma exceção relevante: a cidade que abriga a sede da União — o Distrito Federal — não possui uma Polícia Militar subordinada ao Executivo federal, o que gera um ponto de tensão no arranjo federativo da segurança pública.
Essa seria a resposta mais simples e direta, porém o sistema federativo brasileiro é complexo e há alguns pontos no próprio texto constitucional que não deixam a atribuição dessa competência reservada aos Estados tão evidente.
Falta de clareza no texto constitucional sobre segurança pública
A segurança pública também é competência federal. Ainda que o texto constitucional não seja tão organizado para que a leitura possa inferir isso diretamente, há algumas razões que demonstram que a diferença que a Constituição estabelece são os espaços de atuação. Ao se analisar a repartição de competências relativa à polícia ostensiva enquanto instrumento de segurança pública – matéria que não se apresenta de forma explícita como competência administrativa privativa da União, dos estados ou sequer como competência comum –, à luz dos dispositivos esparsos da Constituição que tangenciam o tema (artigo 21, XIV e XXII; artigo 32, § 4º; artigo 42; e artigo 144), tem-se a seguinte disposição:
a) A União possui competência para executar o policiamento ostensivo em rodovias e ferrovias federais. Fora desses espaços, a competência recai sobre os estados, já que as Polícias Militares estão subordinadas aos respectivos governadores e são compostas por militares estaduais.
b) A União realiza os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras, além de exercer policiamento ostensivo em áreas restritas, como no entorno de quartéis (caso da Polícia do Exército) ou nas dependências do Congresso (por meio da Polícia Legislativa). Fora desses espaços específicos, o policiamento ostensivo é de responsabilidade dos estados e do Distrito Federal.
c) A União é ente federativo competente por organizar e manter a Polícia Militar do Distrito Federal, bem como por assistir-lhe financeiramente por meio de fundo próprio. Contudo, a execução direta do policiamento ostensivo não lhe compete, pois, em situação de normalidade constitucional, o comando da Polícia Militar do Distrito Federal está sob a autoridade do governador do Distrito Federal, o qual não se subordina hierarquicamente ao Executivo federal.
O poder federal compartilha funções de segurança pública com estadual, porém a residualidade desta atuação dos estados está nos espaços em que a Constituição não menciona como de atuação da União. Porém, como um dever de todos os entes federativos — o que é a leitura do artigo 144 mais apropriada — não há nada que exclua da União a possibilidade de tutelar o tema nacionalmente e avocar para si o protagonismo também no policiamento ostensivo em espaços não definidos no texto constitucional. O meio mais adequado é por meio de uma emenda à constituição que esclareça melhor a repartição de competências em questões relacionadas à segurança pública, o que o governo federal recentemente fez, ainda que tardiamente.
Como um problema mal resolvido, como em muitos aspectos na promoção de direitos sociais, a atuação forte da União talvez seja o caminho para maior efetividade da segurança pública, tanto em relação à melhoria do serviço público, com planejamento e ações coordenadas entre os níveis federativos, quanto em prestação de direitos fundamentais dos cidadãos. É claro, isso é especulação de política legislativa.
Na continuação deste texto, a ser publicado nos próximos dias nesta ConJur, tratarei especificamente de algumas propostas da PEC apresentada pelo ministro Ricardo Lewandowski.
[1] Conforme o entendimento de Claudio Pereira de Souza Neto. Conferir em SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Art. 144. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo; Coimbra: Saraiva; Almedina, 2018, posição 3013.
[2] Ainda que o art. 18, §4º conceda aos Estados o poder privativo também para legislar sobre criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios, a Constituição exige lei complementar federal e participação da população dos Municípios envolvidos por meio de plebiscitos. Também o art. 25 prescreve aos Estados a competência de elaborar suas próprias Constituições (a manifestação do Poder Constituinte Derivado Decorrente, conforme amplamente divulgado na literatura constitucionalista), porém há enorme limitação devido à adequação ao texto da Constituição Federal. Isso se observa nas inúmeras ADIs em que o Supremo declarou inconstitucional dispositivos das Constituições Estaduais, muitas vezes sob o pretexto de violar ou ferir o “princípio da simetria”.
[3] Uso o termo no sentido difundido pela pesquisa de Marta Arretche. A autora denomina como tese da jurisdição a explicação acerca da centralização do sistema federal de 1988 devido a grande enumeração de competências atribuídas à União.
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