Constitucionalização da ideologia da defesa social: crítica criminológica à PEC da Segurança Pública
14 de abril de 2025, 17h19
A entrega da minuta da Proposta de Emenda à Constituição da Segurança Pública, em 8 de janeiro de 2025, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, insere-se num contexto político marcado por disputas federativas e por uma crescente centralização das diretrizes de segurança pública no plano da União.

A proposta altera de modo significativo os artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Constituição de 1988, expandindo as competências federais sobre segurança e ampliando o escopo institucional das polícias. Embora a iniciativa busque fortalecer a articulação interinstitucional, há uma questão de fundo que atravessa toda a proposta e que merece especial atenção crítica: a reintrodução ostensiva, em nível constitucional, do conceito de “defesa social” — uma expressão com longa e controversa tradição no campo das ciências criminais, cuja carga ideológica já foi extensamente criticada pela criminologia crítica latino-americana.
A expressão “defesa social” aparece 12 vezes ao longo do texto da PEC, em dispositivos centrais. Está presente no artigo 21 (incisos XXVII e XXVIII), no artigo 22 (inciso XXXI), no artigo 23 (XIII), no artigo 24 (XVII), e repetidamente no artigo 144 e seus parágrafos (§7º, §11, §§12-14). A frequência com que o termo é utilizado — associado à formulação de políticas públicas, à coordenação federativa, à atuação das polícias e à governança do sistema — não é meramente retórica. Trata-se de uma incorporação doutrinária no nível máximo do ordenamento jurídico, o que acarreta implicações de ordem simbólica, institucional e normativa. Essa centralidade da “defesa social” como categoria constitucional enseja o retorno de um vocabulário penal que já foi fortemente contestado por importantes tradições críticas, inclusive na própria doutrina penal brasileira.
O primeiro problema dessa constitucionalização do conceito é seu enraizamento histórico em modelos criminológicos positivistas, conforme demonstrado na obra Criminologia (Siena, 2024). A ideologia da defesa social nasceu com o objetivo de justificar a atuação do Estado penal como guardião da ordem pública, moldando-se a partir de noções abstratas e aistóricas de “bem coletivo” e de “desvio” como ameaça.
Conforme ensina Alessandro Baratta (2002), a defesa social sustenta-se em princípios como a legitimidade do poder punitivo estatal, a funcionalidade da pena e a ideia de delito como violação a valores universais. Trata-se de um sistema ideológico que busca naturalizar a repressão como meio de proteção da sociedade, obliterando a análise crítica dos processos de criminalização e da seletividade do sistema penal.
A proposta, ao inserir o conceito de defesa social como eixo da organização da segurança pública, opera uma naturalização normativa do discurso punitivo. O que antes era objeto de disputas doutrinárias, agora passa a ser enunciado como princípio constitucional, dificultando futuras críticas ou alternativas garantistas em matéria de política criminal.
Em termos simbólicos, a defesa social assume o papel de metadiscurso legitimador da repressão estatal, fundando uma lógica de exceção permanente, especialmente nas periferias e sobre os corpos racializados. Como ensinou Zaffaroni (1988), a ideologia da defesa social não apenas autoriza o uso da força, mas constrói epistemologias de legitimação do arbítrio.
Ruptura
A legitimação constitucional da defesa social, em sua forma expandida, reforça o que Foucault denominava de biopolítica e segurança: o controle e a disciplina dos corpos e das populações sob o manto de uma suposta neutralidade técnica do Estado. Mas não se trata de uma neutralidade. Como argumenta Vera Malaguti Batista (2011), a linguagem da criminologia moderna, ao invés de romper com a tradição autoritária do positivismo penal, frequentemente reatualiza seus fundamentos. A PEC da Segurança Pública exemplifica esse processo ao estruturar a segurança pública como função centralizadora da União e ao alocar funções policiais sob a rubrica da defesa social, como se essa fosse uma necessidade natural e incontestável da convivência social.
O retorno da defesa social à Constituição representa, também, uma ruptura com os compromissos assumidos em 1988. A atual Constituição, ao evitar o uso do termo “defesa social”, buscou fundar a segurança pública como um serviço público voltado à cidadania, à proteção dos direitos humanos e à limitação do poder policial. O novo texto proposto caminha em direção oposta, realocando o centro do debate da cidadania para a ordem. A articulação entre segurança pública e defesa social passa a operar como nova doutrina de segurança nacional, com roupagem republicana, mas espírito reativo.

Não se trata de negar a necessidade de coordenação federativa — essa, aliás, já estava prevista desde a Lei nº 13.675/2018, que instituiu o Susp. O problema reside na sofisticação normativa de uma linguagem que naturaliza o conflito como ameaça ontológica à ordem, o crime como evento desviante absoluto, e a função policial como técnica de neutralização de inimigos. A defesa social, nesse modelo, passa a ser invocada como fundamento de toda política pública de segurança, sem mediação democrática, sem participação popular, sem controle civil.
A proposta também aprofunda a dissociação entre política criminal e política social. Enquanto amplia o aparato repressivo, ela não vincula sua efetivação a medidas de inclusão, justiça social ou direitos fundamentais. Essa assimetria revela o verdadeiro caráter da ideologia da defesa social: não é uma proposta de proteção da sociedade como um todo, mas sim uma forma de proteger seletivamente os estratos sociais dominantes daquilo que consideram “ameaças”. Como ensina Baratta (2002), a criminologia crítica precisa denunciar a função ideológica do sistema penal na reprodução das desigualdades.
Legitimação de práticas repressivas
Outro aspecto preocupante é a reconfiguração simbólica da polícia. A PEC transforma as guardas municipais em agentes de policiamento ostensivo e comunitário sob a rubrica da defesa social, mas sem lhes conferir garantias institucionais equiparadas às polícias estaduais. Cria-se, assim, uma nova força policial local, subordinada a um paradigma nacional de repressão, sem contrapesos. A defesa social, nesse contexto, opera como elemento aglutinador de práticas policiais diversas, mas todas sob a lógica da neutralização do “inimigo interno”.
A criação de fundos vinculados à defesa social, com vedação de contingenciamento (artigo 144, §11), sinaliza uma priorização orçamentária do aparato repressivo em detrimento de outras políticas públicas. Embora o financiamento seja uma demanda legítima, sua amarra constitucional a um conceito ideológico problemático reforça o desvio punitivista da função estatal. A experiência latino-americana demonstra que, em contextos de desigualdade, o investimento no controle social tende a recair sobre os grupos historicamente marginalizados.
A ideologia da defesa social opera como linguagem totalizante, que não admite contradições. Ao ser constitucionalizada, ela se impõe como fundamento de legitimidade das práticas repressivas e das reformas institucionais que as acompanham. Nesse sentido, sua reintrodução no texto constitucional não apenas naturaliza o poder punitivo, mas o consagra como linguagem oficial da ordem política. Trata-se de um retrocesso teórico e normativo que recoloca o Estado Penal no centro da arquitetura constitucional, em detrimento do Estado democrático de Direito.
Em um país com histórico de seletividade penal, genocídio da juventude negra e encarceramento em massa, a defesa social não pode ser apresentada como categoria técnica neutra. A criminologia crítica nos ensina que todo discurso sobre segurança é também um discurso sobre poder, controle e exclusão. A proposta de constitucionalizar a defesa social, ainda que sob o pretexto da coordenação federativa, retoma narrativas de controle autoritário sob a aparência de modernização institucional. A linguagem muda, mas a lógica permanece: punir, vigiar, excluir.
Diante disso, o debate sobre a PEC da Segurança Pública precisa ultrapassar a análise técnico-jurídica de suas competências e dispositivos. É necessário expor sua fundamentação ideológica, desvelar os interesses que ela representa e problematizar suas consequências simbólicas e materiais. A reintrodução da defesa social no texto constitucional exige resistência intelectual e política, especialmente de quem defende uma criminologia comprometida com os direitos humanos, a justiça social e a limitação do poder punitivo. Em tempos de barbárie política, o vocabulário que escolhemos constitucionalizar importa — e muito.
Referências:
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
SIENA, David Pimentel Barbosa de. Criminologia. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. (original: En busca de las penas perdidas, 1989).
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