Opinião

Constitucionalização da ideologia da defesa social: crítica criminológica à PEC da Segurança Pública

Autor

  • é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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14 de abril de 2025, 17h19

A entrega da minuta da Proposta de Emenda à Constituição da Segurança Pública, em 8 de janeiro de 2025, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, insere-se num contexto político marcado por disputas federativas e por uma crescente centralização das diretrizes de segurança pública no plano da União.

Tomaz Silva/Agência Brasil

A proposta altera de modo significativo os artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Constituição de 1988, expandindo as competências federais sobre segurança e ampliando o escopo institucional das polícias. Embora a iniciativa busque fortalecer a articulação interinstitucional, há uma questão de fundo que atravessa toda a proposta e que merece especial atenção crítica: a reintrodução ostensiva, em nível constitucional, do conceito de “defesa social” — uma expressão com longa e controversa tradição no campo das ciências criminais, cuja carga ideológica já foi extensamente criticada pela criminologia crítica latino-americana.

A expressão “defesa social” aparece 12 vezes ao longo do texto da PEC, em dispositivos centrais. Está presente no artigo 21 (incisos XXVII e XXVIII), no artigo 22 (inciso XXXI), no artigo 23 (XIII), no artigo 24 (XVII), e repetidamente no artigo 144 e seus parágrafos (§7º, §11, §§12-14). A frequência com que o termo é utilizado — associado à formulação de políticas públicas, à coordenação federativa, à atuação das polícias e à governança do sistema — não é meramente retórica. Trata-se de uma incorporação doutrinária no nível máximo do ordenamento jurídico, o que acarreta implicações de ordem simbólica, institucional e normativa. Essa centralidade da “defesa social” como categoria constitucional enseja o retorno de um vocabulário penal que já foi fortemente contestado por importantes tradições críticas, inclusive na própria doutrina penal brasileira.

O primeiro problema dessa constitucionalização do conceito é seu enraizamento histórico em modelos criminológicos positivistas, conforme demonstrado na obra Criminologia (Siena, 2024). A ideologia da defesa social nasceu com o objetivo de justificar a atuação do Estado penal como guardião da ordem pública, moldando-se a partir de noções abstratas e aistóricas de “bem coletivo” e de “desvio” como ameaça.

Conforme ensina Alessandro Baratta (2002), a defesa social sustenta-se em princípios como a legitimidade do poder punitivo estatal, a funcionalidade da pena e a ideia de delito como violação a valores universais. Trata-se de um sistema ideológico que busca naturalizar a repressão como meio de proteção da sociedade, obliterando a análise crítica dos processos de criminalização e da seletividade do sistema penal.

A proposta, ao inserir o conceito de defesa social como eixo da organização da segurança pública, opera uma naturalização normativa do discurso punitivo. O que antes era objeto de disputas doutrinárias, agora passa a ser enunciado como princípio constitucional, dificultando futuras críticas ou alternativas garantistas em matéria de política criminal.

Em termos simbólicos, a defesa social assume o papel de metadiscurso legitimador da repressão estatal, fundando uma lógica de exceção permanente, especialmente nas periferias e sobre os corpos racializados. Como ensinou Zaffaroni (1988), a ideologia da defesa social não apenas autoriza o uso da força, mas constrói epistemologias de legitimação do arbítrio.

Ruptura

A legitimação constitucional da defesa social, em sua forma expandida, reforça o que Foucault denominava de biopolítica e segurança: o controle e a disciplina dos corpos e das populações sob o manto de uma suposta neutralidade técnica do Estado. Mas não se trata de uma neutralidade. Como argumenta Vera Malaguti Batista (2011), a linguagem da criminologia moderna, ao invés de romper com a tradição autoritária do positivismo penal, frequentemente reatualiza seus fundamentos. A PEC da Segurança Pública exemplifica esse processo ao estruturar a segurança pública como função centralizadora da União e ao alocar funções policiais sob a rubrica da defesa social, como se essa fosse uma necessidade natural e incontestável da convivência social.

O retorno da defesa social à Constituição representa, também, uma ruptura com os compromissos assumidos em 1988. A atual Constituição, ao evitar o uso do termo “defesa social”, buscou fundar a segurança pública como um serviço público voltado à cidadania, à proteção dos direitos humanos e à limitação do poder policial. O novo texto proposto caminha em direção oposta, realocando o centro do debate da cidadania para a ordem. A articulação entre segurança pública e defesa social passa a operar como nova doutrina de segurança nacional, com roupagem republicana, mas espírito reativo.

Spacca

Não se trata de negar a necessidade de coordenação federativa — essa, aliás, já estava prevista desde a Lei nº 13.675/2018, que instituiu o Susp. O problema reside na sofisticação normativa de uma linguagem que naturaliza o conflito como ameaça ontológica à ordem, o crime como evento desviante absoluto, e a função policial como técnica de neutralização de inimigos. A defesa social, nesse modelo, passa a ser invocada como fundamento de toda política pública de segurança, sem mediação democrática, sem participação popular, sem controle civil.

A proposta também aprofunda a dissociação entre política criminal e política social. Enquanto amplia o aparato repressivo, ela não vincula sua efetivação a medidas de inclusão, justiça social ou direitos fundamentais. Essa assimetria revela o verdadeiro caráter da ideologia da defesa social: não é uma proposta de proteção da sociedade como um todo, mas sim uma forma de proteger seletivamente os estratos sociais dominantes daquilo que consideram “ameaças”. Como ensina Baratta (2002), a criminologia crítica precisa denunciar a função ideológica do sistema penal na reprodução das desigualdades.

Legitimação de práticas repressivas

Outro aspecto preocupante é a reconfiguração simbólica da polícia. A PEC transforma as guardas municipais em agentes de policiamento ostensivo e comunitário sob a rubrica da defesa social, mas sem lhes conferir garantias institucionais equiparadas às polícias estaduais. Cria-se, assim, uma nova força policial local, subordinada a um paradigma nacional de repressão, sem contrapesos. A defesa social, nesse contexto, opera como elemento aglutinador de práticas policiais diversas, mas todas sob a lógica da neutralização do “inimigo interno”.

A criação de fundos vinculados à defesa social, com vedação de contingenciamento (artigo 144, §11), sinaliza uma priorização orçamentária do aparato repressivo em detrimento de outras políticas públicas. Embora o financiamento seja uma demanda legítima, sua amarra constitucional a um conceito ideológico problemático reforça o desvio punitivista da função estatal. A experiência latino-americana demonstra que, em contextos de desigualdade, o investimento no controle social tende a recair sobre os grupos historicamente marginalizados.

A ideologia da defesa social opera como linguagem totalizante, que não admite contradições. Ao ser constitucionalizada, ela se impõe como fundamento de legitimidade das práticas repressivas e das reformas institucionais que as acompanham. Nesse sentido, sua reintrodução no texto constitucional não apenas naturaliza o poder punitivo, mas o consagra como linguagem oficial da ordem política. Trata-se de um retrocesso teórico e normativo que recoloca o Estado Penal no centro da arquitetura constitucional, em detrimento do Estado democrático de Direito.

Em um país com histórico de seletividade penal, genocídio da juventude negra e encarceramento em massa, a defesa social não pode ser apresentada como categoria técnica neutra. A criminologia crítica nos ensina que todo discurso sobre segurança é também um discurso sobre poder, controle e exclusão. A proposta de constitucionalizar a defesa social, ainda que sob o pretexto da coordenação federativa, retoma narrativas de controle autoritário sob a aparência de modernização institucional. A linguagem muda, mas a lógica permanece: punir, vigiar, excluir.

Diante disso, o debate sobre a PEC da Segurança Pública precisa ultrapassar a análise técnico-jurídica de suas competências e dispositivos. É necessário expor sua fundamentação ideológica, desvelar os interesses que ela representa e problematizar suas consequências simbólicas e materiais. A reintrodução da defesa social no texto constitucional exige resistência intelectual e política, especialmente de quem defende uma criminologia comprometida com os direitos humanos, a justiça social e a limitação do poder punitivo. Em tempos de barbárie política, o vocabulário que escolhemos constitucionalizar importa — e muito.

 


Referências:

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

SIENA, David Pimentel Barbosa de. Criminologia. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. (original: En busca de las penas perdidas, 1989).

Autores

  • é gradudo em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC, delegado de polícia do estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra, professor de Direito Penal, coordenador pedagógico do Curso Superior de Tecnologia em Segurança Pública e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, tutor da Rede de Ensino à Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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