Opinião

Exigência de balanço patrimonial para microempreendedores individuais nas contratações públicas

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  • é sócio do RLLAW doutor e mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) doutor em Direito Administrativo pela Universitat Rovira i Virgili e presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública.

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28 de abril de 2025, 20h47

A Lei Complementar nº 128/2008 instituiu o microempreendedor individual (MEI) ao modificar e acrescentar dispositivos na Lei Complementar nº 123/2006.

O MEI é um enquadramento jurídico para quem tenha auferido receita bruta, no ano-calendário anterior, de até R$ 81 mil, optante pelo Simples Nacional e que não esteja impedido de escolher a sistemática da alíquota de imposto prevista no artigo 18 da Lei Complementar nº 123/2006.

O empresário individual também deve se enquadrar na definição do artigo 966 do Código Civil ou, caso seja empreendedor, no exercício de alguma das atividades de que trata o § 4º-A do artigo 18 da LC 123; § 4º-B do artigo 18 da LC 123 estabelecidas pelo CGSN; e atividades de industrialização, comercialização e prestação de serviços no âmbito rural.

O objetivo, em síntese, foi formalizar pequenos empreendedores e oferecer uma série de benefícios como simplificação tributária, acesso a linhas de crédito, benefícios previdenciários, diminuição de custos, além da possibilidade de participar de licitações públicas e prestar serviços para órgãos públicos.

Ainda que a legislação brasileira tenha oferecido tratamento diferenciado para os microempreendedores individuais para facilitar sua participação em licitações, é necessário um conjunto de informações e documentos que demonstrem aptidão de um MEI como licitante para obter sucesso no certame.

Entre tais documentos, em especial os chamados de habilitação, destaca-se a qualificação econômico-financeira, que visa a assegurar a aptidão econômica do fornecedor para assumir as obrigações decorrentes do contrato administrativo e com isso diminuir o risco da administração pública ao celebrar um negócio com terceiros.

Ronny Charles afirma que a qualificação econômico-financeira é “composta por um conjunto de dados e informações condizentes com a natureza e as características/especificidades do objeto, capazes de aferir a capacidade financeira da licitante, em relação aos compromissos que terá de assumir, caso lhe seja adjudicado o contrato”. [1]

Habilitação econômico-financeira

Nos termos do caput do artigo 69 da nova Lei de Licitações, a habilitação econômico-financeira visa a demonstrar a aptidão econômica do licitante para cumprir as obrigações decorrentes do futuro contrato, devendo ser comprovada de forma objetiva, por coeficientes e índices econômicos previstos no edital, devidamente justificados no processo licitatório.

São várias as formas para comprová-la, tais como: apresentação do balanço patrimonial, demonstração de resultado de exercício e demais demonstrações contábeis dos 2 últimos exercícios sociais, índices contábeis, exigência de capital social ou patrimônio líquido mínimo equivalente a 10% do valor estimado da licitação, além da certidão negativa de feitos sobre falência expedida pelo distribuidor da sede do licitante.

Spacca

Quanto à estruturação dos documentos contábeis em si, o Código Civil estabelece a obrigatoriedade de todas as empresas manterem um sistema de contabilidade baseado na escrituração uniforme dos seus livros, em correspondência com a documentação respectiva. A escrituração contábil é essencial para uma melhor fiscalização por parte das autoridades competentes. [2]

Contudo, como visto, quando se fala em microempresas e empresas de pequeno porte, a legislação abre exceções, permitindo a comprovação da capacidade econômico-financeira por outros documentos alternativos.

Balanço patrimonial

O próprio Código Civil, no § 2º, do artigo 1.179, prevê a dispensa da exigência de balanço patrimonial para o pequeno empresário.

Com efeito, o balanço patrimonial é um relatório contábil que apresenta a posição financeira de uma empresa em um determinado exercício, retratando as condições e o panorama da referida pessoa.

Ele é composto por três partes principais: ativos, passivos e patrimônio líquido. Este documento é fundamental para transluzir a saúde financeira da empresa e é uma exigência em processos licitatórios para “garantir” a capacidade de execução de contratos.

Já o MEI, por representar um instrumento concreto de política pública para formalizar pequenos empreendimentos, com receita bruta anual limitada a R$ 81 mil, está isento da maioria das obrigações contábeis e tributárias que se aplicam a outros tipos empresariais. Dentro do rol de isenções está a obrigatoriedade de manter escrituração contábil e balanço patrimonial.

Então questiona-se: como equacionar a exigência de apresentação do balanço patrimonial para participar de um processo licitatório e os privilégios concedidos aos microempreendedores e às empresas de pequeno porte?

O Decreto nº 8.538/2015, que regulamenta o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado nas contratações públicas no âmbito federal, estabelece em seu artigo 3º que microempresa ou empresa de pequeno porte poderá ser dispensada da apresentação do balanço patrimonial para as licitações de fornecimento de bens para pronta entrega ou para a locação de materiais.

O referido dispositivo legal não menciona o MEI, tão somente microempresa ou empresa de pequeno porte, todavia pela interpretação sistemática, lógica e finalística não faria sentido que uma ME ou EPP pudesse ser dispensada e o MEI, que é menor e mais frágil do ponto de vista de infraestrutura de pessoal, [3] não tivesse essa benesse normativa.

Convém recordar que o decreto federal é aplicável à administração pública federal direta, autárquica e fundacional, não se estendendo a sua normatividade (e respectiva cogência) para estados, Distrito Federal e municípios.

Os demais entes poderão utilizá-lo a partir da analogia, sob o ponto de vista da hermenêutica e do disposto do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), enquanto não legislarem a respeito.

Tratamento diferenciado às microempresas

A Constituição outorga a competência à União, estados, Distrito Federal e municípios para dispensarem tratamento jurídico diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte, por meio de lei. Desse modo, poderão os entes, dentro de sua autonomia constitucional, legislarem a respeito, inclusive majorando as hipóteses de afastamento de exigência de documentos de habilitação econômico-financeiro ou técnica para MEI, por exemplo.

A mais, até se poderia cogitar que o artigo 47, parágrafo único, da Lei Complementar nº 123/2006 ao prescrever “enquanto não sobrevier legislação estadual, municipal ou regulamento específico de cada órgão mais favorável à microempresa e empresa de pequeno porte, aplica-se a legislação federal”, geraria um comando normativo para aplicabilidade do Decreto Federal nº 8.538 para os demais entes. Contudo, o ponto nodal seria a interpretação da extensão da expressão “legislação federal”: será que alcançaria tão somente leis federais ou quaisquer tipos de normas federais?

Se observar outros textos normativos similares, tal como a nova Lei de Licitações, quando da redação do artigo 187, [4] percebe-se que a interpretação a ser adotada deve ser de natureza restritiva, ou seja, que a norma do parágrafo único do artigo 47 suscitado somente autorizaria o uso de lei federal mais benéfica a ser adotada para estados, Distrito Federal e municípios enquanto estes não legislarem nada mais favorável, não compreendendo assim os regulamentos federais.

De todo modo, a flexibilização busca contrabalançar a competitividade e amplia as oportunidades de negócios para os MEIs, além de garantir que eles possam participar efetivamente das contratações públicas, promovendo inclusão e desenvolvimento econômico.

Estímulo à inovação e competitividade

Ao incluir essas pequenas estruturas empresariais nas licitações, o governo estimula a inovação, a competitividade e a prestação de serviços de qualidade.

Por outro lado, a falta de um balanço patrimonial pode atrapalhar a análise da aptidão econômica, o que pode representar um risco para a administração pública.

Diante desse imbróglio, é importante analisar o que os tribunais estão decidindo sobre o assunto.

O TCU, em acórdão proferido já sob a égide da nova Lei de Licitações, entendeu pela necessidade de apresentação do balanço patrimonial e as demais demonstrações contábeis, inclusive do MEI, nos seguintes termos:

“Para participação em licitação regida pela Lei 14.133/2021, o microempreendedor individual (MEI), ainda que dispensado da elaboração de balanço patrimonial (art. 1.179, § 2º, do Código Civil), deve apresentar, quando exigido para fins de qualificação econômico-financeira, o referido balanço e as demais demonstrações contábeis (art. 69, inciso I, e art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021).” [5]

Para o ministro relator, a nova Lei de Licitações apenas excepciona a apresentação da documentação comprobatória de habilitação econômico-financeira nos casos do artigo 70, inciso III [6]. Segundo o ministro “a exceção prevista na referida regra dirige-se a objetos de baixa materialidade econômica, logo, passíveis de fornecimento por microempreendedores individuais, o que demonstra sua plena compatibilidade com o tratamento favorecido reclamado pela norma constitucional”. [7]

Tal entendimento permanece desde a vigência da Lei 8.666/1993, quando o Tribunal de Contas da União já havia deliberado:

“Para participação em licitação regida pela Lei 8.666/1993, o microempreendedor individual (MEI) deve apresentar, quando exigido para fins de qualificação econômico-financeira, o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis do último exercício social (art. 31, inciso I, da Lei 8.666/1993), ainda que dispensado da elaboração do referido balanço pelo Código Civil (art. 1.179, § 2º, da Lei 10.406/2002).” [8]

O Tribunal de Contas do Paraná também enfrentou este tema e foi no mesmo sentido do TCU:

“Representação da Lei nº 8.666/93. Pregão Eletrônico nº 42/2023. Município de Telêmaco Borba. Dispensa de apresentação de balanço patrimonial por parte de microempreendedor individual. Hipótese que não se enquadra no art. 3º do Decreto Federal nº 8.538/15. Concessão de medida cautelar para determinar a suspensão do certame ou republicação do Edital sem tal previsão. Homologação.

Entendendo o ente público pela necessidade de apresentação de balanço patrimonial a fim de analisar a qualificação econômico-financeira das interessadas no certame, mostra-se indevida a dispensa do cumprimento do requisito exclusivamente aos Microempreendedores Individuais, considerando que não se enquadra o objeto na exceção trazida pelo art. 3º do Decreto Federal nº 8.538/15 (bens para pronta entrega ou locação de materiais) que possibilitaria essa dispensa.”

(Tribunal de Contas do Estado do Paraná, Processo n.º 243570/23, Acórdão n.º 760/2023, Tribunal Pleno, Relator Conselheiro Fabio de Souza Camargo, julgado em 10/04/2023 e veiculado em 19/04/2023)

A partir dos julgados, da legislação indicada neste ensaio e do papel do MEI, deve-se inferir duas conclusões de imediato:

1) caso o edital estabeleça que todos devem apresentar balanço patrimonial, inclusive o MEI, consequentemente o licitante MEI deverá apresentá-lo nos termos da lei, sob pena de inabilitação;

2) a regra de dispensa de apresentação de balanço patrimonial com base no artigo 3º do Decreto Federal nº 8.538/2015 não deve ser interpretada como nacional, mas tão somente para a administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Qualificação técnica

Não obstante, parece-me que a administração pública, ao redigir um ato convocatório por meio dos seus agentes públicos competentes, poderá dispensar parcela dos documentos habilitatórios previstos na Lei nº 14.133/2021, inclusive daqueles relacionados para a qualificação técnica ou econômico-financeiro, por expressa autorização constitucional.

Jamais (e jamais) se pode esquecer que o inciso XXI do artigo 37 da Constituição estipula que “somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.

Ainda, o artigo 18 da Lei de Licitações estatui que a fase preparatória será o momento adequado para existir uma motivação circunstanciada das condições do edital, exemplificando algumas escolhas a serem inseridas no ato convocatório, dentre elas a de qualificação econômico-financeira.

Assim sendo, o rol de documentos habilitatórios não é exaustivo e poderá ser dispensado em partes, sempre alvitrando do binômio “inteligência e sensibilidade” do aplicador para o caso concreto, conforme já defendi em escrito anterior. [9]

Identificar e avaliar os riscos de exigências desarrazoadas ou excessivas a partir da complexidade e tamanho da contratação e o potencial de fornecedores são vetores essenciais para concretizar a discricionariedade na escolha dos documentos elencados taxativamente na lei.

Dispensa em licitações

Por último, impende defender que um edital poderá dispensar alguns documentos para “determinados licitantes” e que o MEI poderia se amoldar nesta situação. Explica-se.

Como nem todos os potenciais ofertantes de uma licitação são iguais, consoante as diferenças existentes entre eles (enquadramento jurídico, tamanho, tipo de capital de formação, infraestrutura, dentre outros vetores), deve-se então avultar a máxima de Aristóteles de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, para legitimar essa diferenciação. Isso acontece também quando se discrimina os documentos de uma cooperativa para fins de regularidade jurídica e econômico-financeira.

Pelo exposto, é de extrema relevância a discussão do tema sobre a flexibilização das exigências documentais para os MEIs, a fim de fomentar a participação deles no mercado público quando a demanda for compatível com as suas características.

Além disso, a capacitação dos MEIs em áreas como gestão financeira e contabilidade pode contribuir para melhorar a qualidade dos documentos apresentados e, consequentemente, aumentar suas chances de sucesso nas licitações públicas.

 


[1] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 12 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2021. pág. 361.

[2] Art. 1.179. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o de resultado econômico.

[3] Usa-se a expressão fragilidade de infraestrutura de pessoal, porque o MEI em determinadas situações poderá ter até um funcionário, nos termos da legislação nacional.

[4] Art. 187. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União para execução desta Lei.

[5] Tribunal de Contas da União, Acórdão 2586/2024 – Plenário, Relator Min. Aroldo Cedraz, Data do Julgamento: 04/12/2024.

[6] Art. 70. A documentação referida neste Capítulo poderá ser:

(…)

III – dispensada, total ou parcialmente, nas contratações para entrega imediata, nas contratações em valores inferiores a 1/4 (um quarto) do limite para dispensa de licitação para compras em geral e nas contratações de produto para pesquisa e desenvolvimento até o valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).

[7] Tribunal de Contas da União, Acórdão 2586/2024 – Plenário, Relator Min. Aroldo Cedraz, Data do Julgamento: 04/12/2024.

[8] Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 133/2022 – Plenário, Relator Min. Walton Alencar Rodrigues, Data do Julgamento: 26/01/2022.

[9] Vide meu artigo “Inteligência e sensibilidade para a exigência dos documentos habilitatórios” veiculado no Consultor Jurídico no dia 28 de julho de 2022, disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jul-28/luciano-reis-exigencia-documentos-habilitatorios/.

Autores

  • é advogado e sócio do RLLAW, doutor em Direito Administrativo pela Universitat Rovira i Virgili, doutor e mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, coordenador da Especialização em Direito Administrativo da Escola Paranaense de Direito, presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública, diretor do Instituto de Direito Administrativo do Paraná e professor de Direito Administrativo.

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