Opinião

Coisa julgada, vícios e consequências dos atos de um possível juiz inexistente

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12 de abril de 2025, 15h28

Nos últimos dias, eclodiu na mídia nacional a denúncia do Ministério Público contra um juiz aposentado paulista que, apesar de já registrado e identificado com seu verdadeiro nome, no início da vida adulta teria falsificado um segundo registro de nascimento e nele feito constar nome e filiação distintas, tudo sob a típica aparência britânica. Com o segundo “registro”, teria conseguido obter nova carteira de identidade retratando aquela novel personalidade que passou a carregar desde então. A circunstância foi descoberta somente agora, mais de 40 anos depois, na singela ocasião de renovação de documentos pessoais, desaguando na imputação de falsidade ideológica e uso de documento falso.

TJ-SP

Tempera a narrativa o fato de que tal pessoa, valendo-se da segunda carteira de identidade (personalidade falsa criada por ele próprio), graduou-se em direito na USP (Universidade de São Paulo) e, posteriormente, logrou aprovação em concurso para ingresso na magistratura paulista, tomando posse em 1995 e aposentando-se como juiz de direito em 2018.

O exame detalhado do caso concreto não é — e nem poderia ser — o mote destas breves reflexões, uma vez que tramita em segredo de justiça e, sobretudo, constitui situação em aberto perante o Poder Judiciário, onde se desatará regularmente. Todas as assertivas deste artigo, portanto, dão-se em caráter de suposição, a partir do divulgado pela imprensa.

A única circunstância oficial, pública e por demais relevante, é a nota divulgada pela Corte Paulista no sentido de que “[e]m relação ao juiz aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, acusado pelo Ministério Público de usar identidade falsa, o TJ-SP informa que o presidente Fernando Antonio Torres Garcia decidiu suspender administrativamente, até nova ordem, pagamentos de quaisquer naturezas que a ele seriam feitos” [1].

Entretanto, a partir da narrativa estampada na mídia, é possível replicar um modelo de situação hipotética e, aos moldes dos enredos com Caio, Tício e Mévio (alguns até mirabolantes), explorar reflexões e consequências jurídicas sobre sua ocorrência.

O que está em discussão

O primeiro ponto de interesse é o fato de, a partir das narrativas, não se põe em xeque a graduação em direito, tampouco a aprovação em concurso público para ingresso na magistratura.

Todavia, o sujeito empossado, no desenho hipotético que fazemos, simplesmente não existe, o que abre a indagação: uma identidade fraudulenta comprometeria a validade do provimento e da investidura, bem como dos atos praticados no exercício do cargo?

É claro que não se quer criar ideias caóticas, até porque o direito não se presta a fomentar o caos — ao contrário, tem função de pacificar e estabilizar relações, por mais caótico que seja o cenário nas quais imersas. Mas, ainda que justificável alguma interpretação elástica para se evitar o caos (e sobretudo, frear eventual oportunismo de interessados no desfazimento de coisa julgada), é preciso alguma honestidade conceitual.

Spacca

A única personalidade civil aplicável a uma pessoa é aquela que surge no seu nascimento com vida (CC, artigo 2º). O registro de nascimento, por sua vez, não tem natureza constitutiva, mas sim declaratória. A propósito, ensina João Pedro Lamana Paiva que “não é ele que constituirá o sujeito de direitos e obrigações, mas o nascimento com vida. Contudo, ele será necessário para permitir que todos conheçam do evento natural ocorrido, a sua data, como dia, mês e ano do nascimento e a hora certa ou aproximada; as características do indivíduo, a exemplo do seu nome (prenome e sobrenome) e sexo; e demais informações pertinentes para o mundo jurídico, quando necessárias, como o fato de ser gêmeo, ou de ter morrido após o parto etc. Logo, o registro tem efeito declarativo e é obrigatório” [2].

Logo, se determinado sujeito utiliza seu registro de nascimento original e verdadeiro, e nele sobrepõe informações ideologicamente falsas (alterando nome, filiação e outros elementos), essa segunda “personalidade”, à evidência, não se constitui sujeito de direitos e obrigações, ainda que, materialmente, sob essa veste tenha praticado diversos fatos jurídicos relevantes.

Em reflexão hipotética, portanto, a inscrição em vestibular, a aprovação, colação de grau; a inscrição em concurso público, respectiva aprovação, provimento e investidura no cargo, estavam atreladas a uma identidade inexistente, viciadas no nascedouro.

É evidente que, no ponto de vista material, corpóreo, todos esses atos foram galgados por um sujeito humano que, ao que consta, fazia jus à respectiva aprovação do ponto de vista intelectual, tendo desempenhado a atividade ao longo da carreira de acordo com o que ordinariamente lhe incumbiria.

Todavia, a ordem jurídica não se pauta apenas por verdades materiais. Aliás, talvez os desafios mais contundentes do direito repousem no continente das simulações e das nulidades. Se toda verdade material prevalecesse, as nulidades por si só não existiriam, pois nulidade é justamente contrapor aquilo que parecia ser regular, mas não foi. O direito administrativo, por sua vez, tem mecanismos de regulação para situações de desvio entre a realidade e a simulação, porém um debate dessa natureza é de complexa inserção dentro de um processo judicial entre particulares.

Falsidade versus coisa julgada

Sob essa perspectiva, a nossa indagação pode derivar com mais especificidade no âmbito do processo civil. Considerando, em nosso desenho hipotético, que um magistrado tenha se aposentado em 2018, parte das sentenças por ele proferidas na estaria revestida de coisa soberanamente julgada (notar as ressalvas do artigo 975, caput, parte final, e §§ 2º e 3º do CPC). Porém, não é novidade que há vícios que autorizam o debate mesmo se extinto o direito à rescisão, isto é, vícios transrescisórios que se suscitam em ação autônoma, a qualquer tempo. A título de efeito prático, basta pensar nas execuções em andamento, ainda sem satisfação ou com debates pendentes sobre penhora de bens, ou na iminência de excussões, tendo por objeto títulos formados pelo referido magistrado.

A hipótese de sentença proferida por juiz sem investidura reflete um dos vícios transrescisórios, e assim o é porque caracterizada como ato inexistente, por lhe faltar algum dos requisitos mínimos do que devesse produzir. Se elaborada e posta por sujeito sem poder jurisdicional, a dita sentença existe, o que é bem diferente das sentenças nulas — que existem e podem, em alguns casos, ser parcialmente aproveitadas (as ultra e extra petita, por exemplo, na parte não extravagante).

A tese da sentença proferida por juiz sem investidura do poder jurisdicional é um caminho que, provavelmente, será trilhado por muitos, mesmo que o intuito, no íntimo, seja o de embaraçar. E, repita-se: pouco importando a efetiva aprovação em concurso e posse, dado que a relação foi estabelecida entre o Estado e pessoa inexistente, o que parece fato com relevante concretude.

Por outro lado, o direito administrativo desenha a figura do funcionário de fato, nela inserindo a do agente putativo. Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “[a]gentes putativos são os que desempenham uma atividade pública na presunção de que há legitimidade, embora não tenha havido investidura dentro do procedimento legalmente exigido. É o caso, por exemplo, do servidor que pratica inúmeros atos de administração, tendo sido investido sem aprovação em concurso público” [3], sendo certo que “[e]m relação aos agentes putativos, podem ser questionados alguns atos praticados internamente na Administração, mas externamente devem ser convalidados, para evitar que terceiros de boa-fé sejam prejudicados pela falta de investidura legítima. Fala-se aqui na aplicação da teoria da aparência, significando que para o terceiro há uma fundada suposição de que o agente é de direito. É o caso, por exemplo, em que um contribuinte de boa-fé, dentro do órgão público, paga tributo a agente sem investidura legítima: a quitação deste constitui ato legítimo”[4].

O referido autor também averba que “se o agente exerceu as funções dentro da Administração, tem ele direito à percepção da remuneração, mesmo se ilegítima a investidura, não estando obrigado a devolver os respectivos valores; a não ser assim, a Administração se beneficiaria de enriquecimento sem causa”[5].

A propósito, o Supremo Tribunal Federal, no RMS 25.104/DF, de relatoria do ministro Eros Grau (j. 21.02.2006), abordou situação atinente ao agente putativo, valendo destacar:

Quanto ao mérito, entendo que restou configurada a má-fé do recorrente, que, além de violar preceito constante dos atos constitutivos do sindicato, declarou falsamente que todas as disposições legais e estatutárias haviam sido observadas, pela entidade sindical, na formação da lista enviada ao TRT da 13ª Região.

Neste sentido, a manifestação do Ministério Público do Trabalho, quando afirma que ‘o reconhecimento da inidoneidade moral exigida pelo artigo 661, alínea b, da CLT, teve como base […] a declaração falsa do Impetrante [ora recorrente] no sentido de que foram observadas todas as formalidades previstas na legislação vigente e no estatuto social da entidade sindical por ele então presidida, quando, na verdade, deixou de ser observado o referido estatuto no que concerne ao prazo mínimo para realização da Assembleia-Geral do Sindicato’.

[…]

Não se trata, pois, de má-fé presumida, mas perfeitamente comprovada pelo próprio candidato, ao firmar declaração falsa, consciente de que um dos requisitos para ascensão ao cargo consistia no reconhecimento de sua idoneidade moral.

Por outro lado, deve-se reconhecer o fato de que o recorrente efetivamente exerceu a função de juiz classista até a data do seu afastamento, conforme bem destacou a Procuradoria Geral da República.

O trabalho consubstancia valor social constitucionalmente protegido, que sobreleva o direito do recorrente a perceber remuneração pelos serviços prestados até o seu afastamento liminar, por força da decisão monocrática proferida pelo relator do recurso administrativo no TST. Este entendimento, ademais, coaduna-se com a recente jurisprudência daquele tribunal superior, que confere à decisão que acolhe a impugnação ao juiz classista efeitos ex nunc. O posicionamento contrário implicaria sufragar abominável enriquecimento ilícito pela Administração.

No paradigma apontado, está intrínseca a convalidação dos atos praticados pelo juiz classista até o seu afastamento. Todavia, tratava-se de investidura viciada, cabendo a distinção das figuras do agente putativo (que possui investidura viciada, apesar de existente), do usurpador de função (o que exerce a função pública sem investidura ou elo jurídico regular e precedente com o Estado). Merece destaque, nesse conceito, a síntese de Cezar Roberto Bitencourt no sentido de que “usurpar é o mesmo que obter mediante fraude” [6].

Na hipótese alvo destas linhas, parece haver uma mistura entre as duas figuras. A pessoa que efetivamente exercia a jurisdição, ao que consta, não era aquela declarada no ato da inscrição no concurso e, muito menos, da posse (por consequência, gerando investidura viciada passível de convalidação dos atos praticados no exercício). Por outro lado, a personalidade verdadeira (José) supostamente exercia a judicatura sem poder fazê-lo, dada a investidura da segunda criação (Edward), sujeito que, por sua vez, seria inexistente.

Cenário prático da discussão

Uma solução a esse respeito, de todo modo, esbarra num fato prático embaraçoso: como os juízes aos quais distribuídas cada uma das eventuais dezenas de ações declaratórias (querela nullitatis) poderão declarar, incidentalmente, a validade ou não da sentença proferida pelo juiz alvo da controvérsia? De que forma, ainda, isso seria uniformizado frente aos diversos processos? A uniformidade de entendimento, mais do que nunca, seria essencial. Em outro enfoque, de que maneira uma eventual decisão administrativa poderia validar os atos praticados pelo sujeito a ponto de impedir a profusão de discussões incidentais? (já que nas ações declaratórias de nulidade o polo passivo é integrado pela parte beneficiada pela coisa julgada).

O cenário, por qualquer prisma, mostra-se tormentoso. Parece intuitivo que os vetores da segurança jurídica, da boa-fé e os corolários da Teoria do Órgão irão temperar a solução que deva ser adotada. Essa solução, contudo, antevê difícil construção, inclusive no que toca ao cotejo com as providências que a administração tomará (a começar pela cessação provisória do pagamento do provento de aposentadoria, já implementada). Essa decisão administrativa, aliás, traz outra inquietação: se os proventos retomarem a marcha de pagamento, haverá a transmissão destes para a pessoa física existente?

Em que pese tudo isso, há uma verdade que acalenta: as dificuldades postas em debate (longo, e já abordado em outros escritos) em nada colocam em dúvida a idoneidade da Administração em resolvê-las. Primeiro, porque a situação é inusitada e com uma amplitude de impacto imensa, merecendo a cautela, e não podendo a administração ser posta em dúvida por algo a que não deu causa, já que os fatos descortinados — se efetivamente ocorreram — são fruto das limitações científicas vigentes quase cinco décadas atrás. Segundo, porque faz parte da democracia a confiança institucional que todos temos, devemos ter e continuaremos a ter: os órgãos competentes, seja na esfera individual/penal, seja no âmbito administrativo, adotar a solução mais consentânea e que melhor atenda ao interesse público, o que não nos impede, todavia, de exercer a apaixonada reflexão jurídica que diariamente nos move.

 


[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2025-abr-05/tj-sp-suspende-aposentadoria-de-juiz-denunciado-por-falsidade-ideologica/>

[2] in NETO, José Manuel de Arruda A.; CLÁPIS, Alexandre L.; CAMBLER, Everaldo A. Lei de Registros Públicos Comentada, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 205).

[3] FILHO, José dos Santos C. Manual de Direito Administrativo – 38ª Edição 2024. 38. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024, p. 496.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] BITENCOURT, Cezar R. Código penal comentado. 10. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2019, p.1510.

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