Democracia como direito humano: novo pedido de opinião consultiva à Cidh
11 de abril de 2025, 16h20
Em dezembro de 2024, a República da Guatemala apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Cidh ou Corte) um pedido de opinião consultiva cuja importância, se admitido pela Corte, pode marcar um ponto de inflexão na trajetória normativa do Sistema Interamericano. Trata-se de um esforço argumentativo ambicioso: a tentativa de obter da Corte um pronunciamento sobre o status jurídico da democracia no âmbito do sistema regional, com o objetivo de reconhecê-la não apenas como um valor ou princípio estruturante do sistema — o que já tem larga tradição na jurisprudência interamericana —, mas como um direito humano autônomo, protegido e exigível sob a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH).

O pedido, fundado no artigo 64 da CADH, estrutura-se a partir de uma preocupação clara: o aumento do número de episódios de retrocesso democrático no continente e a constatação de que as ferramentas normativas e institucionais disponíveis têm se mostrado, na maioria dos casos, insuficientes para evitar a erosão de regimes constitucionais e o desmonte de salvaguardas mínimas de alternância e participação política (o pedido menciona especificamente situações na Nicarágua, Bolívia, Chile e Guatemala, embora outros possam ser adicionados à lista). Assim, a Guatemala propõe uma estratégia jurídica afirmativa: a consolidação da democracia como bem jurídico protegido, cuja violação não seja tratada apenas como um risco político ou uma ameaça difusa, mas como um atentado concreto aos direitos humanos.
O pedido não é uma ocorrência isolada. Ele se insere em uma linha crescente de ativação da jurisdição consultiva da Corte Interamericana[1] para tratar de questões estruturantes do sistema, tal como visto no caso da mudança climática, em que diversos Estados e entidades foram à barra da Corte se manifestar sobre as obrigações ambientais e climáticas derivadas do sistema regional. Mas há algo de distintivo no pedido guatemalteco: ele desloca o centro da pergunta para a própria gramática institucional do sistema interamericano, buscando conferir densidade normativa à democracia como elemento de titularidade subjetiva.
Arquitetura da consulta: entre normativo e institucional
Dividido em dois blocos — “democracia como direito humano” e “democracia como sistema político e social” —, o pedido formula um conjunto de perguntas detalhadas e articuladas entre si. O objetivo é claro: obter da Corte um pronunciamento que permita, simultaneamente, fortalecer o conteúdo normativo da democracia como direito e ampliar as bases para a exigibilidade de condutas estatais voltadas à sua proteção — tanto em relação a direitos já reconhecidos (o pedido menciona os artigos 1, 5, 8, 9, 11, 13, 15, 16, 23, 24, 26, 26, 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos) como em relação a outras obrigações oriundas de diferentes instrumentos adotados no âmbito da OEA.[2]
No primeiro bloco, a Guatemala indaga se a democracia pode ser compreendida como um direito humano em si mesmo, com núcleo próprio de proteção, conteúdo normativo definido e possibilidade de ser exercido de forma individual ou coletiva. Neste ponto, a pergunta se aproxima da evolução jurisprudencial observada no reconhecimento do direito à verdade, formulado a partir de uma interpretação sistemática da CADH para, aos poucos, consolidar-se como um direito autônomo, ainda que não previsto de forma explícita. Exemplo similar é aquele dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais que vem sendo autonomamente reconhecidos pela Corte no âmbito de seu artigo 26. Um reconhecimento da autonomia do direito humano à democracia poderia ir além dos já reconhecidos efeitos dos direitos políticos protegidos no artigo 23 da Convenção.
Nesse sentido, a Carta Democrática Interamericana pode ser um instrumento útil no raciocínio jurídico da Corte. O texto do documento reconhece expressamente que os “povos da América têm direito à democracia” e, embora não seja vinculativa, ela já foi amplamente empregada pela Corte como uma “norma de interpretação autêntica” da Carta da OEA e da CADH.
Já no segundo bloco, o foco é institucional. A Guatemala indaga, por exemplo, se os Estados têm a obrigação de garantir independência dos órgãos eleitorais, assegurar paridade de gênero em cargos políticos, combater campanhas de desinformação e proteger o pluralismo partidário. Mais do que perguntar se tais obrigações derivam da lógica democrática, o que se busca é saber se elas podem ser exigidas com base na CADH, conferindo densidade jurídica a obrigações que hoje são, via de regra, encaradas como “boas práticas”.

Alguns instrumentos desenvolvidos particularmente na jurisprudência recente, como a “garantia coletiva” poderão ser estrategicamente mobilizados. Isto sem desconsiderar a possibilidade da mobilização argumentativa de regras peremptórias (jus cogens), frequentemente empregado pela Corte, e argumentos correlatos, como a questão da relação entre corrupção e direitos humanos, recentemente endereçada pela Comissão Interamericana. Em verdade, vez que a noção de “democracia” é suficientemente ampla para compreender variados institutos jurídicos do Estado de direito, diversos elementos poderão ser explorados — desde aqueles de natureza constitutiva além dos já tradicionais e reconhecidos desenvolvidos no âmbito da OEA.
Construção jurisprudencial da democracia na Corte: entre individual e coletivo
Desde sua criação, a CtIDH vem desenhando, com maior ou menor intensidade, uma trajetória de reforço da democracia como elemento essencial do sistema de proteção regional. Na opinião consultiva OC-8/87, por exemplo, a Corte já havia afirmado que a democracia, o Estado de direito e os direitos humanos formam uma tríade inseparável. Mais adiante, no caso Yatama v. Nicarágua, o Tribunal declarou a violação do artigo 23 da Convenção em razão de restrições indevidas à participação de partidos políticos indígenas, destacando que eleições devem ser não apenas livres, mas inclusivas, pluralistas e representativas. Até o momento, é o artigo 23 o principal instrumento de proteção dos processos democráticos em casos individuais e coletivos.
Casos mais recentes reforçaram esse entendimento. Em Petro Urrego v. Colômbia, a CtIDH estabeleceu que a destituição de um prefeito eleito por autoridade administrativa violava o direito político de ocupar cargo público. Em Gadea Mantilla v. Nicarágua, já analisado nesta Conjur, proferido em 2024, a Corte foi além: identificou, de forma inédita, a manipulação reiterada do sistema eleitoral como forma de fraude estrutural, incompatível com a CADH. A Corte não apenas identificou a violação de direitos políticos individuais, mas contextualizou o caso dentro de um padrão de erosão democrática, reconhecendo o papel ativo do Sistema Interamericano em reagir a tais retrocessos. Reparações específicas foram ordenadas nesse sentido.
O que está em jogo não é, portanto, a criação ex nihilo de um novo direito, mas o reconhecimento, em chave mais explícita, de uma construção que já se desenha há décadas, assim como de suas novas implicações. Por esta razão será interessante verificar como Estados, organizações internacionais e sociedade civil eventualmente reagirão ao pedido, caso a Corte prossiga na análise desse direito e quais serão os elementos enfatizados para delinear o conteúdo da opinião em termos de direitos e obrigações.
Um dos aspectos mais instigantes do pedido é a ênfase na dimensão coletiva da democracia.
Questiona-se não apenas se indivíduos são afetados quando há um colapso institucional, mas toda a sociedade sofre uma privação arbitrária do direito de viver sob um regime democrático. Em paralelo ao que já foi afirmado no caso Hermanos Gómez Paquiyauri v. Peru sobre o impacto coletivo da impunidade, o pedido sustenta que a ruptura democrática gera uma situação de múltiplos efeitos ofensivos — atingindo, simultaneamente, a liberdade de expressão, o direito de associação, os direitos políticos, as garantias judiciais e o próprio projeto coletivo de autodeterminação.
Essa perspectiva não é desprovida de precedentes. A Corte, no caso Canese v. Paraguai, destacou que a exclusão arbitrária de candidatos compromete a formação da vontade coletiva por meio do sufrágio, afetando não apenas os diretamente impedidos, mas também os eleitores que se veem privados da opção de voto. A lógica é simples e potente: se a democracia é o espaço normativo no qual os direitos florescem, a sua supressão atinge o conjunto da cidadania, justificando a construção de um direito à democracia inesgotável à perspectiva individual.
Normatividade regional e prática internacional: a cláusula democrática como costume?
Outro ponto notável do pedido é sua tentativa de consolidar a existência de um costume regional em torno da democracia. O direito internacional contemporâneo tem se mostrado cada vez mais permeável a interpretações integradas entre fontes, e a própria Comissão de Direito Internacional reconhece que práticas regionais podem gerar levas à consolidação de normas costumeiras. Pode-se ainda argumentar que a democracia constitui um princípio geral do direito internacional, com âmbito de aplicação limitado aos que dele partilham.
Para tanto, a Guatemala aponta para um conjunto de elementos que, somados, confeririam densidade a uma norma consuetudinária: cláusulas democráticas em tratados regionais (como o Protocolo de Ushuaia, no Mercosul, e a Aliança do Pacífico), suspensões políticas no âmbito da OEA, declarações reiteradas de organismos interamericanos e práticas institucionais que pressupõem a democracia como condição de pertencimento ao sistema.
Esse ponto merece atenção. Se acolhido pela Corte, ele poderá abrir espaço para uma argumentação futura de que a democracia, no contexto americano, é não apenas um valor aspiracional, mas uma norma de direito costumeiro ou principiológico regional. Isso fortaleceria, por exemplo, a atuação preventiva da Comissão Interamericana, o que permitiria monitorar Estados que, mesmo não sendo parte da CADH, atentem contra a ordem democrática. O valor democrático não é apenas reconhecido no continente americano, como bem se nota nos atuais debates na França em relação ao processo eleitoral relativo a impossibilidade de participação nas eleições francesas de Marine Le Pen. Contudo, reforçar a dimensão regional pode ser uma estratégia eficaz para os trabalhos futuros da Corte e para a diplomacia de Estados americanos comprometidos com valores democráticos.
Papel da Corte diante do pedido: ativismo ou continuidade?
A pergunta que muitos se farão, diante de uma eventual aceitação do pedido (que possui não simples questões de admissibilidade em função de sua jurisprudência passada), é inevitável: estaria a Corte indo além de sua competência, “inventando” um novo direito? É o papel da Corte Interamericana, um órgão judicial, avançar posições e standards que serão posteriormente exigidos em casos contenciosos?
A isso se soma um ponto muitas vezes negligenciado: o papel normativo das opiniões consultivas. Diferentemente dos casos contenciosos, nos quais a Corte julga violações concretas diante de fatos, o procedimento consultivo visa construir parâmetros interpretativos que possam orientar os Estados, prevenir violações e fortalecer a coerência do sistema. Ao decidir responder à Guatemala, a Corte não estaria julgando um caso político; estaria oferecendo uma interpretação jurídica sobre o conteúdo dos tratados interamericanos.
O pedido de opinião consultiva apresentado pela Guatemala representa um momento-chave na história do Sistema Interamericano e na defesa da democracia, um valor que nos tempos atuais tem sido relativizado de modo não indiferente. Ele oferece à Corte a oportunidade de consolidar, em termos jurídicos claros, aquilo que já existe na prática: a democracia como condição indispensável para a realização dos direitos humanos.
Em um continente marcado por idas e vindas democráticas, por retrocessos que testam os limites da tolerância institucional, os debates sobre a afirmação da democracia como direito humano autônomo pode oferecer um novo instrumento de resistência jurídica. Não se trata apenas de um gesto simbólico, mas de uma afirmação concreta com implicações práticas para o sistema e para os países que ainda a consideram um valor importante a ser protegido.
[1] Sobre o tema e opiniões consultivas, ver LIMA, Lucas Carlos; FELIPPE, Lucas Mendes. A expansão da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos através de opiniões consultivas. Anuario Mexicano de Derecho Internacional. 2021, vol.21, pp.125-166.
[2] Sobre o tema, ver ARRIGHI, Jean Michel. El sistema interamericano y la defensa de la democracia. Agenda Internacional, vol. 16, n. 27, pp. 69-94, 2009
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