Aportes em plano de previdência complementar: caráter remuneratório ou previdenciário?
9 de abril de 2025, 8h00
Em um mercado cada vez mais competitivo, é comum que empresas ofereçam a seus empregados e diretores, dentro do “pacote de benefícios”, aportes em planos de previdência complementar. Apesar de estarem sujeitos à aprovação e fiscalização da Susep, a depender do tipo de plano de previdência complementar, a legislação regulatória é flexível com relação aos valores e à periodicidade dos aportes, bem como ao seu resgate pelo beneficiário.

Nesse contexto, a Receita Federal entendeu que remuneração estava sendo paga a diretores e empregados por meio de aportes em planos de previdência complementar e passou a exigir, do empregador, contribuições previdenciárias, bem como multa isolada por falta de retenção e recolhimento de imposto de renda retido na fonte (IRRF), prevista no artigo 9º da Lei nº 10.426/2002 [1], inclusive de forma qualificada em caso de sonegação, fraude ou conluio.
O tema, então, foi submetido ao Carf, que, em muitos casos, ponderou, inclusive, a competência da autoridade fiscal para afastar a natureza previdenciária dos planos de previdência complementar, uma vez que seus termos haviam sido aprovados pela Susep e estavam de acordo com a legislação. Antes de analisar a jurisprudência do Carf, entretanto, é preciso tecer alguns comentários acerca dos aspectos regulatórios e tributários da previdência complementar.
Previdência complementar: aspectos regulatórios e tributários
A previdência social, nos termos do artigo 201 da Constituição Federal, objetiva cobrir os eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada, proteger a maternidade e o trabalhador em situação de desemprego involuntário e conceder salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda e pensão por morte do segurado ao cônjuge ou companheiro e dependentes.
A previdência privada ou previdência complementar, como também é denominada, por sua vez, está prevista no artigo 202 da Constituição, inserido pela Emenda Constitucional nº 20/1998, que prevê dentre outros, seu caráter complementar ao regime geral de previdência social. Isso significa que a previdência privada tem por fim complementar os benefícios concedidos pela previdência social, quais sejam, aqueles decorrentes de invalidez ou idade avançada, gestação, desemprego involuntário, baixa renda, reclusão e morte.
O tema foi regulamentado pela Lei Complementar nº 109/2001, que, dentre outros, autoriza aos participantes dos planos de benefícios de entidades abertas de previdência complementar, “observados os conceitos, a forma, as condições e os critérios fixados pelo órgão regulador”, a resgatar os recursos das reservas técnicas, isto é, aqueles destinados ao pagamento de benefícios de caráter previdenciário. Nesse contexto, a Susep autoriza o resgate parcial ou total dos recursos vertidos ao plano por meio de pagamento de contribuições após um período de carência superior a 60 dias [2].
No que se refere aos aspectos tributários, a Constituição Federal prevê no §2º do artigo 202 que as contribuições do empregador nos planos de previdência complementar não integram o contrato de trabalho e tampouco a remuneração dos participantes. A Lei Complementar nº 109/2001, por sua vez, dispõe, nos artigos 68 e 69, que as contribuições vertidas para as entidades de previdência complementar não integram a remuneração do participante e não sofrem qualquer tributação.
Ademais, a Lei Complementar nº 109/2001 é expressa ao dispor, no §4º do artigo 41, que a competência fiscalizatória da Susep não prejudica àquela das autoridades fiscais “relativamente ao pleno exercício das atividades de fiscalização tributária”.
Diante desse arcabouço legislativo é que a 1ª Seção do Carf passou a analisar a exigência de multa por falta de retenção e recolhimento de IRRF, enquanto a 2ª Seção se debruçou sobre lançamentos de contribuições previdenciárias em razão de suposto desvirtuamento do caráter previdenciário dos aportes em planos de previdência complementar.
Jurisprudência da 1ª Seção do Carf
No âmbito da 1ª Seção de Julgamento, o Acórdão nº 9101-004.656, proferido em 16/1/2020, foi decidido por voto de qualidade em razão do empate no julgamento. Na oportunidade, deu-se provimento ao recurso especial da Fazenda Nacional, para restabelecer a exigência de multa isolada por falta de retenção de imposto de renda.
A relatora, que foi vencida, defendeu que a legislação prevê a não tributação sobre tais aportes, bem como que o plano de previdência em discussão foi aprovado pela Susep, de forma que a fiscalização não detém competência para negar a sua natureza previdenciária.
A redatora do voto vencedor, por sua vez, entendeu que “o incentivo de formação de reservas para a concessão de futuros benefícios com a contratação de planos de previdência privada é o que justifica a concessão de isenção tributária”, donde concluiu que os aportes do empregador na forma de instrumento de incentivo ao trabalho estão sujeitos à incidência de imposto de renda e contribuições previdenciárias.
Ademais, ressaltou que o fato de o plano ser autorizado pela Susep não tem o condão de tornar improcedente as exigências fiscais porque, na seara tributária, a Receita Federal não se encontra vinculada a atos emitidos pela referida autarquia.
No caso, as circunstâncias fáticas que levaram os julgadores a manter o lançamento foram, em resumo, (1) a relevância dos valores aportados no plano, que, em muitos casos, eram equivalentes ao próprio rendimento do trabalho; (2) a realização de resgate pelos participantes em valores substanciais, geralmente no mês de janeiro de cada ano; e (3) a ausência de clareza no contrato acerca do valor devido a título de contribuição dos beneficiários.
No Acórdão nº 1302-004.335, proferido em 11/2/2020, diante de situação muito similar, por maioria de votos, os julgadores deram provimento ao recurso voluntário apenas para afastar a multa qualificada. Isso porque concluíram que é “inoponível ao Fisco a interposição de plano de previdência na remuneração dos administradores com a finalidade de deslocar a tributação da renda para o momento do seu resgate pelos beneficiários”.
Interessante notar que o Acórdão nº 1302-004.335 foi objeto de recurso especial pela Fazenda Nacional com relação à multa qualificada, que culminou na prolação do Acórdão nº 9101-007.287, em 4/2/2025, por meio do qual a 1ª Turma da CSRF, por voto de qualidade, deu provimento parcial ao recurso para reestabelecer a penalidade no patamar de 100%. Isso por entender que “houve falseamento da verdade ao se constituir um plano de previdência diferenciado para favorecer com verbas salariais apenas os executivos da empresa, subtraindo tais valores da incidência das contribuições previdenciárias e postergando a incidência do imposto de renda para o momento do resgate, ocasião na qual, inclusive, a alíquota aplicável pode ser inferior à tabela progressiva”.
No Acórdão nº 1302-006.870 [3], proferido em 15/8/2023, mais uma vez, discutiu-se a exigência de multa isolada em razão de suposta falta de retenção e recolhimento de imposto de renda incidente sobre aportes efetuados no plano de previdência complementar instituído exclusivamente para os dirigentes da pessoa jurídica.
Na oportunidade, a totalidade dos julgadores votou por manter a penalidade, afastando, apenas, sua qualificação. Isso porque considerou-se que os aportes realizados, em verdade, tinham natureza remuneratória, tendo em vista que (1) 81% da remuneração paga ao dirigente no ano foi destinada ao plano de previdência; (2) não havia regras claras sobre os valores a serem aportados pela empresa e pelo beneficiário; (3) o contrato previa a possibilidade de resgate total do saldo da conta mediante autorização da pessoa jurídica instituidora; e (4) no caso, o beneficiário resgatou valor significativo do plano enquanto ainda exercia o cargo de diretor da empresa.
O fato de o plano de previdência complementar ter sido autorizado pelo órgão competente e firmado com entidade de previdência regularmente constituída, de acordo com os julgadores, não impede sua desqualificação pela autoridade tributária.
Por outro lado, a circunstância de o plano englobar apenas dirigentes não foi considerado suficiente para atrair a tributação dos aportes correspondentes, tendo em vista o entendimento de que a Lei Complementar 109/2001 permitiu que planos de previdência complementar abertos coletivos sejam compostos por grupos de uma ou mais categorias específicas de um mesmo empregador, não lhes sendo, pois, aplicável o disposto no artigo 28, §9º, “p”, da Lei 8.212/91.
Jurisprudência da 2ª Seção do Carf
Com relação à exigência de contribuições previdenciárias, o tema foi objeto de análise pela 2ª Seção de Julgamento
No Acórdão nº 9202-004.345, proferido em 24/8/2016, os julgadores, por maioria de votos, negaram provimento ao recurso especial do contribuinte, mantendo o lançamento para exigência de contribuições previdenciárias sobre os aportes em plano aberto de previdência complementar caracterizados como instrumento de incentivo ao trabalho.
Isso porque (1) o valor de tais aportes era definido por um comitê de remuneração, que tinha por objetivo avaliar as performances dos empregados e da empresa; (2) o montante destinado a custear a previdência correspondeu a quase 60% da remuneração global anual, e, considerados alguns diretores individualmente, o valor aportado superou o próprio rendimento do trabalho; e (3) houve resgates pelos participantes dos planos, em regra, no mês de janeiro e em montantes coincidentes.
No Acórdão nº 9202-007.974, proferido em 18/6/2019, a relatora ponderou que não se estava ali discutindo “a possibilidade ou não de haver no mercado de previdência privada plano que possibilite as mais diversas movimentações financeiros, o que deve ser controlado pelos órgãos de regulação do mercado”, mas, sim, o caráter previdenciário do plano, que afasta a incidência de contribuições previdenciárias.
Assim, seria preciso verificar se o benefício tem por finalidade “estimular a poupança interna, proporcionando ao trabalhador, ou a seu dependente, um determinado nível de renda futura e substitutiva/complementar da remuneração da atividade laboral, cujos benefícios previstos nos planos, via de regra, estão relacionados a ocorrência de eventos por sobrevivência, morte ou invalidez total ou permanente”.
Diante disso, mais uma vez, foi mantido o lançamento, tendo em vista o valor dos aportes em relação à remuneração do beneficiário e a possibilidade de saque em montante significativo.
Em oportunidade mais recente, foi proferido o Acórdão nº 9202-010.868, de 25.07.2023, no qual, por força do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, em face do empate no julgamento, negou-se provimento ao recurso especial da Fazenda Nacional, de forma a manter a decisão objeto do Acórdão nº 2402-008.107, que extinguiu o lançamento de contribuições previdenciárias sobre aportes em plano de previdência complementar aberta.
De acordo com o voto do relator, que foi vencedor, a previdência complementar objetiva “minorar para os empregados (e para seus dependentes) os efeitos dos riscos sociais que os atingirão, no caso, a velhice, a doença e eventualmente a invalidez e a morte, e que darão origem à aposentadoria”. Disso decorre a necessidade de aportes em valores diferentes para aqueles executivos que recebem remuneração mais alta.
Ademais, afirmou que a legislação não estabelece limite de valor para as contribuições patronais, que podem ocorrer de forma variável, livre e unilateral, e, ainda, prevê o resgate como um direito do participante. Por fim, uma circunstância fática parece ter sido determinante para o resultado do julgamento: apesar de o diretor ter realizado um saque de mais de 14 vezes o montante da sua remuneração anual em janeiro de 2009, ele se desligou da empresa no final do período, o que, supostamente, justificou o resgate.
Conclusão
Disso se conclui que, apesar de ainda existir divergências no âmbito do Carf, a jurisprudência, em especial da 1ª Seção de Julgamento, vem se firmando no sentido de que é preciso analisar as características do plano de previdência complementar, para se aferir sua natureza previdenciária ou remuneratória.
Assim, mesmo que o plano tenha a aprovação da Susep e a legislação permita a livre realização de aportes pelo empregador e o resgate dos valores pelo empregado, pode a autoridade fiscal exigir multa por falta de retenção e recolhimento de imposto de renda e contribuições previdenciárias caso verifique o desvirtuamento da finalidade previdenciária no caso concreto.
[1] Isso porque, como prevê expressamente o Parecer Normativo Cosit nº 01/2002, verificada a falta de retenção do imposto, que tiver a natureza de antecipação após data fixada para a entrega da declaração de ajuste anual, no caso de pessoa física, serão exigidos da fonte pagadora apenas a multa de ofício e os juros de mora isolados, calculados desde a data prevista para recolhimento do imposto que deveria ter sido retido até a data fixada para a entrega da referida declaração.
[2] É o previsto, por exemplo, no art. 19 da Circular Susep nº 338/2007 e art. 22 da Circular Susep nº 698/2024.
[3] Tal acórdão foi objeto de recurso especial pelo contribuinte, que, entretanto, não foi conhecido com relação à matéria “caráter previdenciário dos aportes suplementares”.
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