Opinião

ADI 7.236: oportunidade para o STF sepultar o mito da 'independência das instâncias'

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11 de setembro de 2024, 12h18

Iniciou-se em maio o julgamento da ADI 7.236, em que se questiona, entre outros dispositivos, o §4º do artigo 21 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), introduzido pela Lei 14.230/2021. Ela ampliou os efeitos vinculantes da sentença penal absolutória para impedir o processamento de ação de improbidade baseada nos mesmos fatos do processo criminal, independentemente da razão da absolvição. Antes dessa alteração legislativa, a vinculação se restringia às hipóteses de prova da inexistência do fato ou da autoria.

A autora da ADI 7236 argumenta que o §4º do artigo 21 da LIA promoveria “indevido alargamento das hipóteses de interferência das decisões proferidas no âmbito criminal, afrontando, em primeiro lugar, o princípio da independência das instâncias e incorrendo em proteção insuficiente ou deficiente da probidade administrativa, a teor do artigo 37, §4º da CF”.

Ainda, sustenta que dele resultaria suposta violação “ao princípio do juiz natural, ao princípio do livre convencimento motivado e ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, XXXVII), da Lei Maior”.

Acatando esses argumentos, o relator da ADI, ministro Alexandre de Moraes, reconhece na alteração legal a violação a uma suposta lógica constitucional de autonomia das instâncias. O ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo.

O Supremo Tribunal Federal está, a nosso ver, diante da oportunidade de sepultar, de uma vez por todas, o mito da independência das instâncias, essa “fórmula mágica (…) por meio da qual se busca, na tradição de nosso país, como que varrer para debaixo do tapete problemas de sensível complexidade” [1].

Procurando dar subsídios ao debate, neste artigo defenderemos [2] não apenas a constitucionalidade do §4° do artigo 21 da LIA, mas também o seu efeito expansivo para outros procedimentos de natureza punitiva. Após esta introdução, demonstraremos a constitucionalidade da norma (2), desmistificando o “princípio” da independência das instâncias (2.1), bem como evidenciando a existência de microssistema normativo que conduz a uma interação entre as esferas penal, administrativa e civil (2.2) e, ainda, que dele decorre tratamento adequado e coerente da improbidade administrativa (2.3). Por fim, apresentaremos nossa conclusão (3).

Constitucionalidade do §4° do artigo 21 da LIA

2.1. O caráter mítico do “princípio” da independência das instâncias

Por vezes surgem — também no mundo jurídico — mitos que se cristalizam ou bondes do transporte intelectual, parafraseando Ortega y Gasset [3]. Exemplo desse tipo de mito é justamente o suposto “princípio da independência das instâncias” administrativa, civil e penal. A independência das instâncias, contudo, não é um princípio. A desvinculação do resultado do processo penal às decisões civis/administrativas não representa um fim ou um valor em si mesma, como veremos adiante.

Em segundo lugar, os princípios ligados a essa questão — da segurança jurídica, da unidade do ordenamento jurídico e da proibição de bis in idem — apontam em sentido contrário, isto é, para uma vinculação entre as esferas, de modo a evitar incoerências sistêmicas.

O princípio da segurança jurídica — decorrência do próprio Estado de direito e expressamente previsto no artigo 5°, caput, da Constituição — exige que “a atuação estatal seja governada por regras gerais, claras, conhecidas, relativamente constantes no tempo, prospectivas e não-contraditórias” [4].

Spacca

Já a unidade do ordenamento jurídico — que, mais do que um princípio, é um pressuposto do sistema — impede a existência de contradições normativas [5]. A existência de decisões incongruentes em relação ao mesmo fato viola esse pressuposto, pois não se coaduna “com a ideia de unidade da ordem jurídica, como um sistema jurídico estruturado e dotado de racionalidade interna” [6].

Por sua vez, o princípio do ne bis in idem, mesmo em uma concepção esmaecida [7], impõe que seja “evitada, tanto quanto possível, qualquer duplicidade na coleta e na avaliação das provas”, de modo a evitar decisões contraditórias [8]. Assim, se admitida a coexistência de processos penal e administrativo relacionados ao mesmo fato, é imperioso que a apreciação das provas não leve a valorações diferentes.

Portanto, o que ocorre é que a vinculação (ou interdependência) entre as instâncias é, essa sim, um princípio — ou um subprincípio da segurança jurídica, da unidade do ordenamento jurídico e do ne bis in idem. Consequentemente, seria inadmissível que uma sentença penal absolutória, fundada na ausência de participação do acusado no fato, por exemplo, fosse simplesmente ignorada pelas esferas administrativa e civil, exemplificativamente [9].

2.2. A existência de microssistema normativo de interação (ou interdependência) entre as esferas penal, administrativa e civil: independência mitigada das instâncias

A ideia de independência das instâncias parte de uma premissa correta: a Constituição e as leis atribuem a diferentes autoridades competências próprias para decidirem sobre a imposição de consequências jurídicas de natureza diversa. Como regra geral, pois, cada qual apreciará livremente os fatos que lhe são apresentados, à luz dos fundamentos jurídicos que considerar adequados, e proferirá decisão dentro de sua esfera de competência.

Isso não significa, contudo, que não possa o legislador, por razões de segurança jurídica e unidade do sistema, vincular aspectos dessas decisões a decisões tomadas por outros órgãos, impedindo a — ou, ao menos, diminuindo o risco de — prolação de decisões contraditórias.

No âmbito processual penal, há diversas hipóteses em que o juízo criminal está atrelado a decisões provenientes de outras esferas. Por exemplo:

  • (1) não pode haver persecução penal nos crimes tributários antes da constituição definitiva do crédito (Súmula Vinculante nº 24);
  • (2) não pode haver persecução penal nos crimes falimentares antes de prolatada a sentença que decreta a falência ou que concede a recuperação judicial ou extrajudicial (Lei n° 11.101/2005, artigo 180);
  • (3) controvérsias sobre o estado civil das pessoas dependem de sentença transitada em julgado na esfera cível (artigo 92 do Código de Processo Penal — CPP).

Do mesmo modo, há normas que estabelecem que decisões proferidas pelo juízo criminal vinculam juízos cíveis e órgãos julgadores administrativos, tais como o artigo 935 do CC, o artigo 126 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (Lei n° 8.112/1990) e o artigo 7º da Lei n° 13.869/2019.

Todas essas normas traçam um verdadeiro microssistema da interação entre as esferas penal, administrativa e civil, estabelecendo quando e em que medida haverá vinculação recíproca. Assim, para além de não haver um “princípio constitucional de independência das instâncias”, a existência de tal microssistema normativo constrói, em verdade, uma “independência mitigada entre as esferas penal e administrativa” [10].

2.3. A adequada e coerente tutela da probidade administrativa

A autora da ADI argumenta também que o dispositivo acarretaria “proteção insuficiente ou deficiente da probidade administrativa, a teor do artigo 37, §4º da CF”.

A ser assim, também deveria a autora ter pugnado pela inconstitucionalidade do § 3º do artigo 21 — ao prever que as sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria — o que não foi feito.

O artigo 37, § 4º, da Constituição estabelece a possibilidade de duplo sancionamento nas esferas penal e de improbidade administrativa [11], mas não determina que as decisões em improbidade administrativa possam atingir conclusões contrárias àquelas alcançadas pelo Juízo criminal, nos casos que discutam os mesmos fatos.

Tampouco há ofensa ao princípio do juiz natural, pois a ação de improbidade administrativa continuará sendo julgada pelo juiz competente, que decidirá conforme seu convencimento e fundamentará sua decisão racionalmente (observando-se o princípio do livre convencimento motivado). Isso, contudo, não afasta a possibilidade de que haja regras de vinculação em casos que versem sobre os mesmos fatos.

Em relação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, diga-se que a decisão do Juízo criminal representa exatamente a apreciação realizada pelo Poder Judiciário, com os instrumentos de prova mais invasivos da esfera de liberdade e privacidade individual e, portanto, com maior aptidão para a obtenção da verdade.

Em conclusão, a norma do §4° do artigo 21 da LIA é constitucional. Mais do que isso, integra-se em um verdadeiro microssistema de normas que estabelece os efeitos das decisões penais sobre as esferas administrativa e civil. Assim, as garantias trazidas pela LIA devem ser estendidas a quaisquer processos de natureza sancionatória, à luz da ideia de unidade do direito administrativo san­cionador[12]. Indiciando essa vinculação, a própria Lei n° 14.230/2021 esclareceu que se aplicam “ao sistema da improbidade disciplinado nesta lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador” (artigo 1 º, § 4º, da LIA).

Conclusão

O relacionamento entre as esferas penal, administrativa e cível é regido por um microssistema de normas de natureza infraconstitucional (e.g. artigo 935 do CC, artigo 180 da Lei n° 11.101/2005, artigo 92 do CPP, artigo 126 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, artigo 7º da Lei n° 13.869/2019), que traçam verdadeira interação entre as diferentes esferas, fixando quando e em que medida deve haver vinculação recíproca.

Portanto, para além de inexistir um dito “princípio constitucional” da independência das instâncias, tal microssistema normativo resulta em uma verdadeira interdependência ou uma “independência mitigada entre as esferas penal e administrativa” [13].

A independência das instâncias, esclareça-se, é simplesmente um espaço de não vinculação entre as esferas, resultante também da aplicação desse microssistema normativo. Nada impede — pelo contrário, é uma decorrência dos princípios da segurança jurídica, da unidade do ordenamento jurídico e do ne bis in idem — que o legislador crie mais hipóteses de vinculação entre as esferas, a garantir a coerência do sistema jurídico.

Dessa forma, ao ampliar as hipóteses de vinculação do juízo da improbidade administrativa à decisão do juiz criminal, por meio da inclusão do § 4º ao artigo 21 da LIA, o legislador não incorreu em inconstitucionalidade alguma, mas apenas criou uma norma que observa os princípios da segurança jurídica, da unidade do ordenamento jurídico e do ne bis in idem, devendo ter seus efeitos expandidos para todos os processos administrativos de natureza sancionadora.


[1] TEIXEIRA, Adriano: ESTELLITA, Heloísa; CAVALI, Marcelo. Ne bis in idem e o cúmulo de sanções penais e administrativas: Um ‘Estado Hidra de Lerna’? In: Jota 01.08.2018. https://www.jota.info/artigos/ne-bis-in-idem-e-o-cumulo-de-sancoes-penais-e-administrativas-01082018?non-beta=1

[2] Os argumentos estão mais extensamente desenvolvidos em outro artigo, no qual também examinamos cada uma das hipóteses de vinculação do juízo da improbidade a decisões absolutórias provenientes da esfera criminal: CAVALI, Marcelo Costenaro; SIQUEIRA, Joana Rangel Wanderley de. O mito da independência das instâncias e os efeitos das sentenças penais absolutórias sobre outros processos de natureza punitiva. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, ano 5, v. 19, jul./set. 2024.

[3] ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Trad. Felipe Denardi. Campinas: Vide Editorial, 2016. p. 214.

[4] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 213.

[5] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UNB, 1999. p. 85.

[6] COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. Tese de Livre Docência. São Paulo: USP, 2013. p. 119.

[7] No Brasil, até o momento, não se tem reconhecido uma dimensão transversal ao princípio do ne bis in idem, que impeça a incidência de sanções penais e administrativas pelo mesmo fato. Cf. uma defesa muito bem fundamentada dessa dimensão, SABOIA, Keity. Ne bis in idem: história, teoria e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

[8] MIRANDOLA, Sofia; LASAGNI, Giulia. The European ne bis in idem at the Crossroads of Administrative and Criminal Law. Eucrim 2/2019. p. 128.

[9] Afinal, como pergunta Tourinho Filho, “não seria perigoso, atentando-se para a circunstância de o fato gerador das responsabilidades, no caso, ser um só, viesse a Justiça Civil afirmar que o ofendido não faz ‘jus’ ao ressarcimento, porque o réu não praticou o ato incriminado, e a Justiça Penal, apreciando esse mesmíssimo fato, viesse a condená-lo, afirmando, assim, a existência daquele mesmo fato?” – TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 2. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 29.

[10] STF, Rcl 41557, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 15.12.2020, DJe 09.03.2021.

[11] É, de fato, difícil compatibilizar essa norma com a vedação ao bis in idem. Tratando-se, porém, de norma constitucional, não há como ser considerada inválida. O que não significa que não possam ser, ao menos, aplicadas medidas de atenuação ao duplo sancionamento. Exatamente neste sentido, prevê o § 5º do art. 21 da LIA que “sanções eventualmente aplicadas em outras esferas deverão ser compensadas com as sanções aplicadas nos termos desta Lei”.

[12] Cf. menção nesse sentido, em MENDES, Gilmar; BUONICORE, Bruno Tadeu; DE-LORENZI, Felipe da Costa. Ne bis in idem entre Direito Penal e Administrativo Sancionador: considerações sobre a multiplicidade de sanções e de processos em distintas instâncias. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 192. ano 30. p. 75-112. São Paulo: Ed. RT, setembro – outubro/2022. p. 106.

[13] STF, Rcl 41557, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 15.12.2020.

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