Opinião

A não cumulatividade no contexto da reforma tributária

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6 de setembro de 2024, 20h46

O inciso I do parágrafo 1º do artigo 156-A da Constituição [1], combinado com o parágrafo 16º do artigo 195 da Constituição, incluídos pela Emenda Constitucional nº 132/23 (EC 132), estabelecem que o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) serão não-cumulativos, compensando-se o tributo devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição.

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Contudo, o inciso II do parágrafo 5º do artigo 156-A da Constituição coloca que a lei complementar (LC) disporá, entre outros temas, sobre o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do tributo incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que:

(i) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços (split payment manual);

ou (ii) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação (split payment automático).

Não se ignora o fato de que a não cumulatividade no atual modelo de tributação sobre o consumo brasileiro, a despeito de em momento anterior à reforma tributária já encontrar guarida no texto constitucional, foi frustrado por diversas questões, como por exemplo a discussão sobre o conceito de insumo para o PIS e a Cofins ou as diversas prorrogações e restrições quanto aos créditos de ICMS.

Nesse contexto, amparado pelas atuais disposições constitucionais (alterações promovidas pela EC 132), o artigo 28 do Projeto de Lei Complementar nº 68/24 (PLP 68) trouxe como regra geral que a apropriação dos créditos do IBS e da CBS poderá ser realizada quando do pagamento dos referidos tributos.

A exceção está prevista no artigo 29 do PLP 68 ao elencar que os créditos poderão ser apropriados mediante o destaque dos valores dos débitos do IBS e da CBS no documento fiscal de aquisição dos respectivos bens e serviços, dispensada a exigência de pagamento desses débitos, exclusivamente, na hipótese de não ter sido implementada as modalidades de pagamento dos débitos via split payment ou pagamento pelo adquirente.

Ou seja, a exceção prevista no texto constitucional está sendo tratada como regra geral na legislação infraconstitucional. Referida exceção ao aproveitamento dos créditos se trata (ou deveria tratar) de uma situação excepcional, aplicada a determinados contribuintes e a operações muito específicas, sob pena de esvaziar todo o racional aplicado na construção do IBS e da CSB.

Em nossa leitura, a sistemática representa inequívoco retrocesso ao sistema atual de apuração de créditos. Ao que parece, a construção legislativa referente a restrição aos créditos teve como ponto de partida a fraude (especialmente aquelas relacionadas às chamadas “notas frias” ou “empresas noteiras”[2]).

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Como mencionado na parte inicial do presente texto, o inciso I do parágrafo 1º do artigo 156-A da Constituição, combinado com o parágrafo 16º do artigo 195 da Constituição, incluídos pela EC 132, estabelecem que o IBS e a CBS serão não cumulativos, compensando-se o tributo devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição.

A redação dos dispositivos é muito semelhante ao que já existe no ordenamento jurídico. Ou seja, o reconhecimento do crédito com base na operação anterior independe da aferição do efetivo recolhimento do tributo devido naquela etapa [3].

Cabe mencionar ainda que a exceção ao crédito prevista no inciso II do parágrafo 5º do artigo 156-A da CF88, que trata sobre a possibilidade de a lei complementar (como o fez o PLP68), estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do tributo incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que

  • (i) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços (split payment manual); ou
  • (ii) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação (split payment automático), não é verificada em outros países que adotam o IVA.

Restituição após pagamento do tributo

Contudo, conforme apontado pelo professor Alexandre Alkmim Teixeira [4], não é novidade no direito brasileiro a exigência de antecipação do tributo para posterior restituição ao contribuinte mediante a comprovação de que o valor antecipado fora indevido ou a maior. Na doutrina, a prática é conhecida como solve et repete.

Em geral, o solve et repete se refere à exigência de pagamento para que o contribuinte possa questionar a exigência tributária que lhe é feita pelo Fisco, como ocorre em casos de apreensão de mercadoria ou como condicionante da prática de atos perante a administração tributária.

É essa mesma lógica que se verifica com as disposições contidas na EC 132 e no PLP 68: primeiro se exige o pagamento do tributo para que somente em momento posterior o valor possa ser utilizado. É o que acontece hoje com a substituição tributária progressiva, as antecipações do IRPJ e da CSL no regime do lucro real anual, as retenções tributárias na fonte, entre outros.

A implementação e adoção da referida sistemática, a despeito de contrariar, em minha leitura, a neutralidade (um dos princípios condutores da reforma tributária), deve ter em mente o impacto no fluxo de caixa das empresas. Isso porque, especialmente no Brasil, a disponibilidade de recursos tem um custo. Nessa direção, cabe mencionar trecho do estudo publicado no Brazilian Journal of Development [5]:

A discussão sobre retenção de caixa é um dos aspectos relevantes em finanças corporativas e tem sido o foco de diversas pesquisas acadêmicas. Um dos fatos estilizados mais comumente aceito na literatura é um crescimento do nível de caixa nas empresas abertas nos EUA durante os anos 2000, em relação a décadas anteriores (Bates et al., 2009). O motivo precaucional (evitar perder oportunidades de investimento) é o mais utilizado na explicação. Estudos de Almeida et al. (2004) e Harford et al. (2014) são consistentes com essa explicação. O primeiro verifica que as firmas mitigam os efeitos adversos da restrição financeira adotando políticas de maior retenção de caixa. Já o segundo, mostra que o nível de caixa é determinado pelo risco de refinanciamento das empresas, com o objetivo de prevenir problemas de subinvestimento. Em países emergentes o tema torna-se ainda mais relevante, uma vez que em mercados menos desenvolvidos, há tendência de maiores fricções financeiras, o que torna ainda mais difícil o acesso às fontes de financiamento, aumentando a propensão a uma restrição financeira das firmas. Não bastasse isso, o Brasil nos últimos anos tem apresentado histórico de recessões econômicas com reflexos diretamente nas finanças corporativas e, de modo particular, na liquidez das empresas. De acordo com o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace), da Fundação Getúlio Vargas, desde 1980 o Brasil passou por nove períodos de recessão econômica, sendo o último e mais severo, entre 2014 e 2016.

Destaca-se mais uma vez que a partir da experiência internacional, devemos ter atenção aos impactos que o split payment poderá provocar no fluxo de caixa das empresas, com efeitos diretos na saúde econômica destas.

Na mesma direção são as lições da professora Mary Elbe Queiroz e do professor Antonio Carlos de Souza Junior [6], ao chamarem a atenção para o fato de que mesmo com evidentes benefícios em relação ao combate as fraudes, os reflexos do split payment e desse modelo de não cumulatividade poderão trazer impactos prejudiciais maiores do que os supostos benefícios.

Sendo assim, com base no exposto, nos parece que a exceção prevista no texto constitucional, que está sendo tratada como regra geral na legislação infraconstitucional, deve (ou deveria) ser aplicada apenas em situações excepcionais, a determinados contribuintes ou segmentos, e em operações muito específicas, sob pena de esvaziar todo o racional aplicado na construção do IBS e da CSB, e dos próprios princípios constitucionais que nortearam (e estão norteando) a reforma tributária.

 


[1] Conteúdo disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 03 set. 2024.

[2] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. MACHADO, Nelson (coords.). Imposto sobre bens e serviços. Centro de Cidadania Fiscal: Estatuto, PEC45, PEC Brasil Solidário, PEC110, notas técnicas e visão 2023. APPY, Bernard. MACHADO, Nelson. São Paulo: Editora Max Limonad, 2023. Pag. 174.

[3] De acordo com o Professor André Mendes Moreira, “a questão foi enfrentada pela Corte Suprema, que aclarou o sentido do termo utilizado pela Constituinte. O leading case envolvia uma contenda entre o Fisco paulista e um contribuinte cujos créditos de ICM não estavam sendo reconhecidos pela Secretária da Fazenda. O Estado resistia à pretensão da empresa pois esta não havia apresentado provas de que o vendedor das mercadorias tivesse recolhido o imposto destacado nas notas fiscais cujos créditos pretendia utilizar. Ao decidir o caso, o STF legitimou o creditamento mesmo à mingua da comprovação do pagamento do tributo incidente na etapa pretérita. O entendimento da Suprema Corte é correto e predomina dos dias atuais. Se assim não fosse, o Estado estaria autorizado a transferir para o particular o dever – indelegável – de fiscalizar o cumprimento das obrigações tributárias (no caso, o pagamento do tributo pelo vendedor das mercadorias). Ora, não cabe ao adquirente assegurar que o imposto devido pelo alienante seja pago. A função do particular se completa com a exigência e recebimento, no ato da aquisição, de nota fiscal idônea, preenchida consoante os predicados legais. A efetiva recolha do tributo pelo alienante, dessarte, não pode ser erigida como conditio sine qua non para o exercício do direito de crédito pelo adquirentein MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2ª Edição. São Paulo: Noeses, 2018. Pag. 136-137.

[4] TEIXEIRA, Alexandre Alkmim. (2022). To Split or not to Split: o split payment como mecanismo de recolhimento de IVA e seus potenciais impactos no Brasil. Revista Direito Tributário Atual nº 50, ano 40. São Paulo: IBDT, 2022. Pag. 31 e 32. Conteúdo disponível em: <https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/2139/1921>. Acesso em 03 set. 2024

[5] ZANI, Thobias et al. Comportamento da estocagem de liquidez: um estudo comparativo entre empresas brasileiras domésticas e multinacionais. Brazilian Journal of Development, 2021. Conteúdo disponível em:

<https://www.academia.edu/73158046/Comportamento_da_estocagem_de_liquidez_um_estudo_comparativo_entre_empresas_brasileiras_dom%C3%A9sticas_e_multinacionais_Liquidity_stocking_behavior_a_comparative_study_between_domestic_and_multinational_brazi-lian_companies>. Acesso em 03 set. 2024.

[6] QUEIROZ, Mary Elbe. JÚNIOR, Antonio Carlos de Souza. Regra-matriz do crédito do IBS e o alcance das limitações previstas no art. 156-A, par. 5º, da constituição federal in: CARVALHO, Paulo de Barros (coord.). BRITTO, Lucas Galvão; VERGUEIRO, Camila Campos (orgs.). A reforma tributária do sistema tributária nacional sob a perspectiva do construtivismo lógico-semântico. O texto da emenda constitucional 132/23. São Paulo: Editora Noeses, 2024. Pag. 393.

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