Opinião

Sistema de precedentes no processo administrativo

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  • é advogado sócio do escritório Bento Muniz procurador do Distrito Federal pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em parceria Público-Privada e Concessões (Fesp-SP e FSE) e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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9 de outubro de 2024, 18h18

1. Introdução

Ainda que submetido a sistema de jurisdição una, o Brasil confere relevância a processos administrativos, sobretudo àqueles que tratam de matérias relevantes e de alta complexidade técnica, como os apreciados por agências reguladoras e órgãos reguladores independentes, por Tribunais de Contas e mesmo processos administrativos fiscais submetidos ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) ou a tribunais administrativos locais. Além desses processos de maior envergadura apreciados por órgãos colegiados de especial realce, a administração conduz processos disciplinares, licitatórios e mesmo para outorga de simples licenças ou autorizações.

Disso resulta a relevância de se avaliar a abrangência de repercussão do processo civil no processo administrativo e, nesse ponto, especificamente como o desenho do sistema de precedentes judiciais deve influenciar as decisões administrativas, bem assim se é viável e em que medida juridicamente se ampara a instituição de um sistema de precedentes administrativos de observância compulsória nos processos administrativos.

2. A vinculação da administração pública a precedentes judiciais

O direito administrativo, ora fundado no princípio da juridicidade, não fica alheio ao que a Recomendação CNJ nº 134/2022 reconheceu como nova concepção de jurisdição, em que a atividade jurisdicional não se resume à resolução atomizada e repressiva de conflitos já instaurados, mas “se preocupa em fornecer, de modo mais estruturado e geral, respostas às controvérsias atuais, latentes e potenciais, de modo a propiciar a efetiva segurança jurídica”.

Diante da resolução da controvérsia jurídica pelo Judiciário, firmando, de modo definitivo, a interpretação da norma, a própria evolução do direito positivo brasileiro evidenciou a necessidade de a administração pública acompanhá-la.

O Decreto nº 2.346/1997 consolidou as normas de procedimentos a serem observadas pela administração pública federal em razão de decisões judiciais, estabelecendo a necessidade de observância de decisões do Supremo Tribunal Federal.

Com o advento da Lei nº 11.417/2006, que regulamentou a súmula vinculante, foram incluídos os artigos 56, § 3º, e 64-A na Lei nº 9.784/1999, para estabelecer que, nos recursos administrativos, se o recorrente alegar que a decisão administrativa recorrida contraria enunciado da súmula vinculante, caberá à autoridade prolatora da decisão impugnada, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme o caso.

Incluiu-se, ainda, o artigo 64-B, dispondo que o acolhimento de reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante será informado à autoridade prolatora e ao órgão competente para julgamento do recurso administrativo, “que deverão adequar as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal”.

Wesley Bento, advogado

Ainda, a releitura do princípio da boa-fé à luz de um sistema de precedentes qualificados exige uma nova compreensão da vinculatividade em relação à administração pública, por força do princípio da eficiência, consagrado explicitamente no artigo 37, caput, da Constituição.

No âmbito do CPC de 2015, houve evoluções da própria legislação positiva no sentido da aplicação de entendimentos firmados em precedentes qualificados na Administração Pública. Com as previsões dos artigos 985, § 2º e 1.040, inciso IV, de comunicação de teses vinculantes firmadas no Judiciário “ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada”, percebe-se que o julgamento terá, aos particulares prestadores de serviço público, os mesmos efeitos de norma regulatória editada pelo órgão ou ente, a indicar uma expansão dos efeitos da tese fixada a sujeitos que não ajuizaram ações judiciais.

O sistema de precedentes regrado no CPC de 2015, portanto, não se revela incompatível com a legislação referente à adoção, no âmbito da administração pública, do entendimento firmado nos tribunais superiores a respeito da interpretação de leis e atos normativos; em verdade, a complementa, ao promover uma releitura de fontes, fundada na estabilidade, integridade e coerência [1]. Desse modo, a ausência de previsão expressa, na redação que impõe efeito vinculante, no plano jurisdicional, da tese jurídica fixada não dispensa a administração pública de seguir o entendimento firmado.

3. Precedente administrativo e mecanismos de uniformização da jurisprudência administrativa

No âmbito do common law, a noção de precedente ultrapassa o limite das competências jurisdicionais, sendo tratada como equivalente, por autores como Frederick Schauer [2], ao próprio direito costumeiro, admitindo que sua autoridade não decorra necessariamente de uma decisão judicial. Michael J. Gerhardt, em relevante trabalho, teorizou o precedente não judicial [3], com enfoque no sistema norte-americano, o qual, no notório intercâmbio de modelos presente no ordenamento jurídico contemporâneo, possui características identificadas igualmente no ordenamento jurídico brasileiro.

Embora a acepção de precedente em Michael J. Gerhardt seja ampla, não apenas no que concerne às funções do Estado, mas igualmente em sua conceituação de precedente, a admitir o costume como sua espécie – o que é majoritariamente rechaçado na doutrina brasileira [4] –, a conclusão referente à deferência judicial a decisões administrativas adotadas com fundamento em critérios técnicos se apresenta, igualmente no Direito brasileiro, como fundamento que torna necessária a adoção de uma teoria de precedentes administrativos, principalmente em relação a agências reguladoras.

Nesse sentido, Odete Medauar compreende existir um núcleo comum da processualidade, que decorre da Constituição da República de 1988. Esse raciocínio se extrai do artigo 5º, inciso LV, do diploma constitucional, segundo o qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A autora ainda sustenta, nesse contexto, a existência de uma “processualidade como categoria conceitual que transcende o campo da disciplina administrativa e jurisdicional e emerge na condição de uma constante da experiência jurídica” [5].

O CPC de 2015, em seu artigo 15, tornou evidente esse núcleo comum, determinando que as normas processuais civis sejam aplicadas supletiva e subsidiariamente ao processo administrativo, comportando plausibilidade lógica com a disciplina da lei de processo administrativo (no âmbito Federal, a Lei nº 9.784/1999), “tanto nos casos de omissão da lei específica como naqueles em que proveja solução mais adequada ao caso concreto” [6].

Essa noção se estende à disciplina jurídica da teoria de precedentes do CPC. A sistemática não é incompatível com o processo administrativo, notadamente ante a necessidade de observância dos princípios da segurança jurídica e da isonomia. A Lei nº 9.784/1999, a propósito, já prescreve o dever de motivação na hipótese em que o ato deixar “de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepar de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais” (artigo 50, inciso VII).

Encontra-se alinhado com o artigo 15 do CPC o reconhecimento de que a aludida regra de uniformização, estabilização, integridade e coerência é aplicável ao processo administrativo, sendo correto afirmar que, atualmente, conforme o próprio direito positivo, vige o “dever cogente de respeito à jurisprudência (administrativa e jurisdicional)” [7].

Juraci Mourão Lopes Filho e Fayga Silveira Bedê, em estudo referente ao precedente administrativo, dedicam-se a identificar a plausibilidade lógica da aplicação do sistema de precedentes judiciais do CPC de 2015 no Direito Administrativo e dividem os precedentes administrativos em dois grupos:

“a) aqueles oriundos de decisões em processos administrativos (nos quais são solucionadas no âmbito da administração controvérsias mediante a incidência do contraditório e da ampla defesa) e b) aqueles oriundos de respostas a consultas e pareceres jurídicos em procedimento administrativo, nos quais, por definição, não há incidência do contraditório e da ampla defesa, mas, ainda assim, são respostas institucionais” [8].

Dessa diferenciação é possível exigir que, em relação aos precedentes administrativos formados em processo administrativos, assim compreendidos aqueles nos quais participam ou são habilitados participarem sujeitos cuja esfera jurídica será afetada pelo ato final (em acepção inspirada em Fazzalari [9]), deveria haver a incidência do contraditório, tornando dialético o próprio processo interpretativo e exigindo, nas palavras dos autores, “que a autoridade julgadora aprecie e enfrente todos os argumentos formulados pelos interessados, tornando sua resposta mais rica e plural” [10].

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942) foi alterada pela Lei nº 13.655/2018, a qual, ao incluir disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público, também inovou na disciplina legal da padronização decisória na administração pública, prevendo no artigo artigo 24 vedou que na revisão de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa se os declarem inválidos com base em mudança de orientação geral. E, embora de fato, a vedação de aplicação retroativa de nova interpretação já decorresse de comando do artigo 2º, parágrafo único, inciso XIII, da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, com o advento da Lei nº 13.665/2018, o comando passa a integrar o conjunto de normas de sobredireito (lex legum), não havendo dúvida sobre sua aplicação nas demais esferas da federação.

Mais relevante alteração promovida pela Lei de Segurança Jurídica, no que concerne à padronização decisória administrativa, porém, se apresenta no artigo 30 inserido na Lindb, o qual estabelece que “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas” (caput), e que esses instrumentos “terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão” (parágrafo único).

A teoria de precedentes do Direito Administrativo brasileiro, portanto, se sustenta nas bases do constitucionalismo pós-positivista, que reconhece a autolimitação administrativa [11] como meio de concreção dos princípios da isonomia, da segurança jurídica e da eficiência e afirma a necessidade de restrição da discricionariedade na definição da interpretação jurídica adequada em um contexto de superação do paradigma da legalidade estrita para o da juridicidade e de ampliação da deferência judicial à atividade decisória na administração pública.

A partir da aplicação supletiva do sistema de precedentes do CPC, a negativa de aplicação do precedente administrativo também deve observar a metodologia e o ônus argumentativo previsto em relação ao precedente judicial. Assim, é aplicável a disposição do artigo 489, § 1º, inciso VI, do referido diploma, que não considera fundamentada a decisão que deixar de seguir precedente “sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

Considerando as peculiaridades do processo administrativo e a subordinação da Administração Pública à juridicidade e ao princípio da autotutela administrativa, todavia, deverá o agente público provocar a autoridade administrativa competente para revisão do precedente administrativo, quando for o caso de sua superação.

À luz da aplicação supletiva do CPC, recomenda-se, ainda, que, sempre que possível, e notadamente no âmbito de tribunais administrativos, órgãos de controle e agências reguladoras, a alteração da orientação firmada no precedente administrativo seja precedida de audiências públicas e participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese, na forma do artigo 927, § 2º, do CPC.

Os demais requisitos disciplinados nos §§ 3º a 5º do artigo 927 do CPC, por sua vez, se aplicam integralmente em qualquer órgão ou entidade que proceda à superação de precedente administrativo.

4. Conclusão

Identifica-se, não apenas com aporte na doutrina estrangeira de países de civil law, mas na mesma linha de intercâmbio de modelos com o common law – que promoveu uma releitura do sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro –, um rígido sistema que se norteia pela preservação da ratio decidendi de precedentes administrativos, que se guia por razões universalizáveis cuja eficácia vinculante decorre de lei e encontra pressupostos formais e materiais de aplicabilidade, a alcançar inclusive órgãos de controle e agências reguladoras.

Em decorrência dos influxos do CPC de 2015, a vinculatividade no processo administrativo se encontra em consonância com as técnicas inerentes à teoria de precedentes, notadamente a admissão do afastamento de sua aplicação quando presentes as hipóteses de superação e distinção.

Há, portanto, no ordenamento jurídico brasileiro, um sistema de precedentes qualificados aplicável ao processo administrativo fundado na teoria da autolimitação administrativa com influências de técnicas decisórias herdadas do modelo anglo-americano, a partir de uma releitura pós-positivista do Direito Administrativo, o qual encontra respaldo no núcleo comum de processualidade constitucionalmente reconhecido, na aplicação supletiva do CPC e nas recentes alterações da Lindb.

 


[1]  Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

[2] SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, vol. 39, 1987, p. 571.

[3] GERHARDT, Michael J. Non-Judicial Precedent. Vanderbilt Law Review, vol. 61, 2008, p. 713-784.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. Op. cit.

[5] Idem, p. 30.

[6] Idem, p. 317-318.

[7] Idem, p. 323.

[8]  LOPES FILHO, Juraci Mourão; BEDÊ, Fayga Silveira. A força vinculante dos precedentes administrativos e o seu contributo hermenêutico para o Direito. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 66, out./dez. 2016, p. 249.

[9] FAZZALARI. Elio. Instituizioni di Diritto Processuale. Padova: Casa Editarice Dott. Antonio Milanni, IV Edizione, 1986, p. 77.

[10] LOPES FILHO, Juraci Mourão; BEDÊ, Fayga Silveira. Idem, ibidem.

[11] Sobre o tema, cf. GRECCO, Carlos Manuel. Apuntes para una teoría de las autolimitaciones de la Administración. Revista de Derecho Administrativo, a. 5, n. 12-14, Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1993, p. 317-342.

Autores

  • é advogado, procurador do Distrito Federal, sócio do escritório Bento Muniz - Advocacia, mestre em Direito Constitucional pelo IDP, pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC-SP e MBA em Parcerias Público-Privadas pela Fesp-SP.

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