Falsa simetria entre associações cíveis e réus em ações coletivas
7 de outubro de 2024, 13h20
A história ocidental é marcada por tentativas de cerceamento das associações privadas. O contexto francês pós-revolucionário é sintomático neste aspecto [1]. Visando liquidar os resquícios das corporações medievais, o direito positivo foi paulatinamente criando mecanismos para acabar com as associações existentes, sob a premissa de que não poderiam existir entes políticos intermediários entre o indivíduo e o estado. Houve, inclusive, um movimento voltado à extinção das corporações de profissionais e de trabalhadores, mediante as leis “D’Allarde” e “Le Chapelier”, ambas de 1791. [2]

Ato contínuo, revendo essa mentalidade, o contexto norte-americano trouxe novas perspectivas para o associativismo. O direito de associação passou a ser visto num cenário de liberdades individuais, em que existe uma grande ligação entre associação e democracia (paradigma de organização democrática de sociedade).
Com base nos estudos do professor Rodrigo Xavier Leonardo, podemos, sinteticamente, traçar um caminho que relate os passos subsequentes do associativismo no ocidente. [3] Fracassadas as tentativas de cercear o associativismo pela via do direito positivo, as associações passaram a ser reconhecidas pelo estado, inclusive mediante a concessão de personalidade jurídica.
Esse percurso bipartiu-se no desenvolvimento de sociedades comerciais (que não são objeto deste texto) e das associações sem fins econômicos. Estas últimas, ato contínuo, foram incentivadas após a 2ª Guerra Mundial, a partir de diversos documentos internacionais (a proteção da liberdade de associação é citada nos artigos 20 e 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; o direito de associação dos empregados e empregadores é ressaltado pela Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho; na sequência, o pacto internacional sobre os direitos civis e políticos aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 16/12/1966, prevê que:
“Toda a pessoa tem o direito de se associar livremente com outras, incluindo o direito de constituir sindicatos e de a eles aderir para a proteção dos seus interesses).”
No contexto da tutela coletiva de direitos no Brasil, enquanto os sindicatos assumiram importante papel na defesa dos direitos dos trabalhadores, as associações sem fins econômicos (junto com os legitimados coletivos públicos) tornaram-se baluartes na defesa dos demais direitos materiais coletivos.
Existem interesses essencialmente metaindividuais (como o meio ambiente ou o patrimônio histórico e cultural) que não são titularizados por um indivíduo específico. Também existem interesses individuais de massa, cuja tutela judicial é viabilizada pela via coletiva — que confere maior eficiência ao sistema.
Nesse microssistema de tutela coletiva, a Lei da Ação Civil Pública (artigo 5º) e o Código de Defesa do Consumidor (artigo 82) não conferiram legitimidade ativa ao indivíduo, mas sim a entidades associativas privadas; Defensoria Pública; Ministério Público; autarquias; empresas públicas; fundações e sociedades de economia mista.
Legitimidade ativa
A opção do legislador foi a de conferir legitimidade ativa a entes exponenciais, que funcionam como “porta-vozes” dos interesses cuja defesa é feita em juízo. Note-se que mesmo Ministério Público e Defensoria Pública, ainda que possuam autonomia institucional e orçamentária, não deixam de ser órgãos estatais.
A legitimidade ativa conferida a associações privadas sem finalidade econômica oxigeniza e traz maior representatividade popular/democrática ao microssistema de processos coletivos. Caso a legitimidade ativa fosse atribuída exclusivamente a órgãos do estado, os resultados certamente não seriam os melhores.
Ainda com base nos ensinamentos do professor Rodrigo Xavier Leonardo, as associações sem fins econômicos no Brasil “(…) ocupam uma importante função mediadora entre o indivíduo e o Estado, (…). Esta função não é patrimonial”. [4]
Em razão disso, as associações recebem tratamento estatal diferenciado em diversas áreas quando comparadas às sociedades. O associado possui posição muito diferente da do sócio. A associação possui regime tributário peculiar em muitos aspectos, incluindo a existência de imunidades e isenções.
Associações possuem prerrogativas singulares em suas relações com as pessoas jurídicas de direito público [5]. As associações podem, inclusive, exercer atividades de interesse social integrando o chamado “terceiro setor” mediante a celebração parceria com a administração pública (Lei nº 13.019/14).
Esse tratamento diferenciado às associações sem fins econômicos também possui reflexos no processo coletivo. O microssistema brasileiro de tutela coletiva disciplina a questão das despesas processuais no artigo 18 da LACP e no artigo 87 do CDC.
Os dispositivos estabelecem que a associação autora não está obrigada a adiantar despesas como custas, emolumentos e honorários periciais (“responsabilidade provisória”); bem como não serão condenadas ao pagamento de honorários advocatícios e despesas processuais, salvo em caso de comprovada má-fé (“responsabilidade definitiva”). Entende-se que esse sistema de gratuidade é um instrumento para ampliação do acesso à justiça. [6]
Essas previsões não se aplicam apenas para as associações, mas se estendem todos os legitimados coletivos autores (STJ, 2.T, AgRg no Ag 842.768/PR, rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 11/11/2009).
Adiantamento de custas
A dispensa de adiantamento de custas, emolumentos e honorários processuais é aplicável apenas ao autor, não ao réu no processo coletivo (entre outros: STJ, Corte Especial, AgRg no EAg 1.173.621/CE, rel. ministro Cesar Asfor Rocha, DJe 22.06.2012).
O STJ também tem o entendimento (ainda não pacificado) de que o réu vencido deve pagar honorários advocatícios de sucumbência em ação civil pública ajuizada por associação privada (3.T, REsp 1.986.814/PR, rel. Ministra Nacy Andrighi, DJe 04.10.2022). Cita-se eloquente passagem do voto da relatora:
“Não seria razoável, sob o enfoque ético e político, equiparar ou tratar como simétricos grandes grupos econômicos/instituições do Estado com organizações não governamentais sem fins lucrativos (de moradores, de consumidores, de pessoas com necessidades especiais, de idosos, ambientais, entre outras).”
Mutatis mutandis, esse entendimento também é aplicável às ações civis públicas ajuizadas pela Defensoria Pública, tendo o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidido que é devido o pagamento de honorários sucumbenciais à Defensoria Pública nas demandas em que ela representa a parte vencedora, ainda que contra o ente federativo ao qual está vinculada.
O valor recebido deve ser usado para o aprimoramento da estrutura da Defensoria, proibido o rateio entre os membros (Tema 1.002, repercussão geral). O fundamento utilizado é o de que, nada obstante as Defensorias Públicas sejam instituições públicas permanentes e essenciais à função jurisdicional do Estado, ainda enfrentam graves problemas de estruturação.
Em relação ao Ministério Público, quando a instituição é vencedora em ação civil pública, o entendimento prevalente é o de que o Parquet não faz jus ao recebimento de honorários na ação civil pública, em razão da “simetria” (STJ, EREsp 895.530/PR, rel. Min. Eliana Calmon, DJe 18.12.2009). No entanto, esse entendimento não isenta o réu na ação civil pública proposta pelo Ministério Público do adiantamento de despesas como custas, emolumentos e honorários periciais.
Pode-se afirmar que o Ministério Público é instituição mais estruturada que a Defensoria Pública. No entanto, esse entendimento em relação ao Parquet também precisa ser revisto.
Ainda que a instituição tenha orçamento constitucionalmente assegurado para fins de manutenção do pessoal e estrutura, o custeio de perícias realizadas no processo coletivo ainda é um dos maiores gargalos do sistema — caso o Ministério Público fizesse jus ao recebimento de honorários, essas verbas poderiam ser direcionadas para o pagamento dessas perícias, possibilitando o adequado andamento de diversos processos.
Feita essa explanação, é preciso destacar que estão para julgamento na Corte Especial do STJ os Embargos de Divergência em REsp 1.304.939/RS e os Embargos de Divergência em REsp 1.987.688/PR.
Os casos irão discutir se seria ou não descabido o pagamento de honorários de sucumbência pelo vencido na ação civil pública, independentemente de quem seja o legitimado coletivo autor (incluindo as associações).
Os defensores da tese (em prol do não cabimento da condenação) argumentam que o artigo 18 da LACP foi editado em um contexto social muito diferente do que vivenciamos hoje, pois os problemas de acesso à justiça teriam sido, em grande parte, resolvidos pela atuação de legitimados coletivos como Entes Públicos, Ministério Público, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil.
Ponderam que estamos em um contexto de intensa litigiosidade e devem ser desestimuladas aventuras jurídicas. Afirmam que as associações não incorrem em qualquer risco financeiro ao proporem demandas, podendo ter ganhos mesmo com argumentos frágeis e temerários.
Esses argumentos não podem ser acolhidos. A prerrogativa conferida às associações no tocante às despesas processuais e isenção de honorários possui fundamentos ético-jurídicos.
Como já mencionamos, as associações civis conferem maior caráter democrático e ampliam os meios de participação da sociedade. A legitimidade ativa das associações sem fins lucrativos no processo coletivo “é o sinal da salutar desconfiança de que a voz única do Estado seja a via adequada para a defesa dos direitos coletivos”. [7]
Inclusive, em diversas hipóteses as associações defendem em juízo direitos que não se confundem com os direitos subjetivos de seus associados. Cita-se a atuação de associações da defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado (bem difuso de titularidade de todos). Nesses casos, modernamente entende-se que a associação atua em regime de substituição processual (v.g. STJ, 2. Seção, REsp 1.325.857/RS, rel. Min. Luiz Felipe Salomão, DJe 01/02/2022).
Sobre o argumento de que as associações privadas podem ter ganhos mesmo em ações civis públicas ajuizadas com argumentos frágeis e temerários, em primeiro lugar é preciso ressaltar que a premissa de “ganhos” é equivocada, pois a ausência de finalidade lucrativa para os associados é um pressuposto do regime associativo (artigo 53 do Código Civil). No entanto, é evidente que a manutenção de uma associação é custosa, nesse sentido:
“Assim, percebe-se que os integrantes do ‘setor voluntário’ não se confundem com os players do mercado. Observando que não lhes cabe partilhar seus lucros e que é indissociável de suas atividades o atendimento de algum anseio da comunidade, a diferença se torna evidente. A divergência, entretanto, não exclui o fato de que as entidades do ‘terceiro setor’ não podem ser vistas exclusivamente à luz de um ‘altruísmo romântico’. De regra, evolvem gastos operacionais que tornam inviável a continuidade de suas atividades caso não haja retorno. Possuem serviços profissionalizados e sujeitam-se a encargos trabalhistas, expondo estruturas amplamente organizadas.” [8]
A preocupação com a manutenção econômica das associações, inclusive, está prevista no Código Civil. Sobre isso:
“Ademais, quando o art. 54 do CC determina que, sob pena de nulidade, o estatuto conterá as fontes de recursos para manutenção da associação indica-se, de forma implícita, a indispensabilidade de uma sustentação econômica para que os fins não econômicos possam ser atingidos. Essa fonte, não necessariamente, será limitada às contribuições dos associados.” [9]
Até para que possam ser movidas boas demandas, dentro de um contexto de litigância estratégica, é fundamental que a associação esteja representada por advogados capacitados, para que seja garantida a representatividade adequada, razão pela qual é justo e correto que o réu vencido em ação civil pública movida associação sem fins econômicos pague honorários sucumbenciais.
Ainda que possam ser ajuizadas por associações demandas com fins espúrios, isso não deve ser considerado a regra e nem ser utilizado como argumento para se enfraquecer o processo coletivo. Essas práticas devem ser combatidas por outras vias.
Lembre-se, inclusive, que em todas as ações civis públicas movidas por associações, o Ministério Público intervirá como fiscal da ordem jurídica (artigo 5º, § 1., da LACP), coibindo aventuras jurídicas e assegurando a moralidade do sistema.
Ademais, em regra a associação estará em situação de hipossuficiência econômica e jurídica em relação ao demandado, que normalmente será uma grande corporação ou mesmo um litigante repetitivo.
Mesmo na hipotética situação em que uma associação de defesa do meio ambiente move ação contra um pequeno agricultor, este poderá requerer a concessão do benefício da assistência judiciária gratuita — e, nesta hipótese, a exigibilidade dos honorários ficará suspensa.
Grupos hipossuficientes
As associações sem fins econômicos podem garantir adequada representação em juízo de grupos hipossuficientes economicamente (como catadores de recicláveis) ou minorais (quebradeiras de coco babaçu no Piauí; povos faxinais no Paraná; deficientes físicos etc). É ilógico supor que as associações que representem esses grupos estejam em pé de igualdade com os potenciais demandados em ações civis públicas por elas propostas.
Em reforço ao argumento, cita-se o caso corriqueiramente mencionado nos livros para exemplificar a possibilidade de afastamento do requisito de constituição pelo prazo mínimo de um ano para a associação que pretende ajuizar ação civil pública (artigo 5º, § 4º, da LACP).
É o caso da associação de parentes de vítimas de acidentes aéreos: se por um lado não é razoável exigir o prazo de um ano de funcionamento da entidade, diante das circunstâncias em que foi criada; por outro é evidente que nunca haverá situação de simetria entre esse grupo de pessoas e a companhia área acionada.
É preciso ressaltar também que os diversos desastres ambientais (com consequências sociais) que assolam o Brasil e exigem o incremento da chamada “litigância climática”, seara na qual as associações terão papel decisivo.
Não é o momento de se enfraquecer o processo coletivo. A alegada simetria no processo entre associações sem fins econômicos e demandados inexiste na prática, não devendo ser chancelada pela jurisprudência.
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
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[1] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo: RT, 2014, p. 31.
[2] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo: RT, 2014, p. 32.
[3] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo: RT, 2014, p. 46 e ss.
[4] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo: RT, 2014, p. 191.
[5] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo: RT, 2014, p. 180
[6] PINHO, Humberto Dalla Bernardina; PORTO, José Roberto Mello. Manual de Tutela Coletiva. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 397
[7] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo: RT, 2014, p. 122.
[8] ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Curso de Processo Civil Coletivo. São Paulo: RT, 2019, p. 276
[9] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo: RT, 2014, p. 208.
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