Opinião

Desafios para a regulação da inteligência artificial no Brasil

Autores

  • Luís Inácio Adams

    é advogado e ex-procurador da Fazenda Nacional. Foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).

  • Mauro Pedroso Gonçalves

    é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown doutorando e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor de Direito Processual Civil na especialização da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) e coordenador regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) em Brasília.

  • Caio Viana de Barros Thomé

    é associado de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP).

  • Carolina Marcondes Fraga

    é estagiária de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharelanda em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

27 de março de 2024, 7h00

A inserção de novas tecnologias na atividade econômica é o motor de alterações sociais. [1] Mesmo que o papel do direito não seja paralisar a marcha histórica, a ciência jurídica deve refletir sobre as transformações provocadas pelas inovações tecnológicas.

Não foge a essa premissa a inteligência artificial (IA), cujo atual estágio de desenvolvimento já produz impactos em diversas esferas da sociedade (indivíduo, relações de trabalho, geopolítica [2] etc.).

Por meio de carta aberta divulgada pelo Future of Life Institute, em março de 2023, diversos executivos do ramo de tecnologia apresentaram consternação diante dos impactos da IA: “Devemos automatizar todos os trabalhos, incluindo os satisfatórios? Deveríamos desenvolver mentes não-humanas que eventualmente nos superassem em número, fossem mais espertas, obsoletas e nos substituíssem? Devemos arriscar perder o controle de nossa civilização?” [3]

Com o advento de ferramentas de IA, como o ChatGPT (Generative Pre-trained Transformer), desenvolvido pela OpenAI,[4] que recebe investimentos expressivos da Microsoft;[5] e do Bard (Big Artificial Research Dialogue),[6] disponibilizado pela Google, já se têm ao alcance das mãos “modelo[s] de linguagem projetado[s] para responder a perguntas de modo coerente e relevante e realizar tarefas em texto natural”.[7]

Economistas estimam que muitos postos de trabalho, inclusive aqueles que geralmente exigem maior grau de escolaridade, como os de advogados, contadores, tradutores, entre outros, serão progressivamente substituídos por essa nova modalidade de IA.[8]

Como uma das garantias previstas pela Constituição é o trabalho, caso se concretize a previsão de eliminação de cerca de 18% dos postos de trabalho, o direito não poderá ser alheio ao exame dessa realidade.

Os direitos autorais também estão no centro da problemática. Discute-se, de um lado, se a proteção do regime de direitos autorais deve ser estendida a obras criadas pela IA e, de outro, se a utilização de obras para treinamento das ferramentas de IA viola direitos autorais sobre as respectivas fontes. Caso haja violação, quem deve ser responsabilizado pelos prejuízos daí advindos? [9]

Freepik

As greves que eclodiram há meses dentre roteiristas e atores de Hollywood ilustram bem essa questão no ramo dos direitos autorais. [10] Igualmente, já há autores que reclamam por indenização, em razão de fontes utilizadas para treinamento das IAs. [11]

Desafios da inteligência artificial

A IA trará, ainda, novos desafios no âmbito da responsabilidade civil e criminal. Além de potencializar a propagação de fake news, a IA pode ser utilizada atualmente na criação de deep fakes, ou seja: “A fabricação de fake news em formato audiovisual de forma hiper-realista por meio de inteligência artificial”.[12]

Certamente, a utilização indevida da imagem das pessoas para veicular informações inverídicas não só pode levar à necessidade de indenização da vítima, como até mesmo à criminalização dos responsáveis pelas informações ou mídias falsas postas em circulação. É o que se extrai, por exemplo, da capa da revista Veja de 3/11/2023: “A serviço do mal: a multiplicação de casos de falsos nudes nas redes mostra um lado sombrio da inteligência artificial — autoridades do Brasil e de outros países já se movimentam para combater o problema”. [13]

No âmbito do Poder Judiciário, há uma crescente utilização da IA. Com o objetivo regulamentá-la, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 332/2020, que impõe balizas éticas para assegurar que a utilização da IA pelo Poder Judiciário, para que busque “garantir a segurança jurídica e colaborar para que o Poder Judiciário respeite a igualdade de tratamento aos casos absolutamente iguais” (artigo 5º).  [14]

Em casos recentes, já se verifica a utilização aparentemente indevida da IA por magistrados. Em 31 de outubro de 2023, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região divulgou a Circular Coger 33/2023, na qual informou ter chegado ao seu conhecimento caso em que uma ferramenta de IA generativa criou precedentes inexistentes do Superior Tribunal de Justiça, os quais foram utilizados para fundamentar uma sentença. [15]

Por conta disso, recomendou-se, na mencionada circular, que “não sejam utilizadas para a pesquisa de precedentes jurisprudenciais ferramentas de IA generativa abertas e não-homologadas pelos órgãos de controle do Poder Judiciário”. [16]

Nesse contexto, o direito, que já vinha se ocupando do debate acerca da regulamentação da IA, deve intensificar a atividade regulatória, a fim de criar marcos que não sejam um impasse ao desenvolvimento tecnológico, mas que, ao mesmo tempo, propiciem segurança jurídica na utilização da ferramenta.

A propósito, o CEO do Google, Sundar Pitchai, escreveu no Financial Times que “não há dúvida de que a inteligência artificial precisa ser regulamentada”. Contudo, destacou que legislações sobre o tema precisam equilibrar os benefícios da IA para a sociedade e a prevenção de potenciais riscos, como aqueles relacionados aos carros autônomos e deep fakes. [17]

Regulação da inteligência artificial

Mesmo antes do advento dos chatbots, houve iniciativas regulatórias que merecem destaque, como diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para regulamentação da IA, datada de 2016, sendo o Brasil um dos 42 signatários desse documento; [18] regras de governança editadas pelo Ministério de Ciência e Tecnologia da China em 2019 para o desenvolvimento de IA no país; [19] o Guia de Ética para IA da União Europeia, também de 2019; [20] e a The Global Partnership on AI (GPAI), de 2020, iniciativa regulatória encabeçada pela França e o Canadá, à qual aderiram países como Austrália, Alemanha, México, Cingapura e Estados Unidos e que conta com apoio da OCDE e da Unesco. [21]

No Brasil, já há algumas iniciativas, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado, para estabelecer um marco regulatório da IA, sendo as mais recentes os seguintes projetos de lei: PL 759/23, apresentado em março deste ano pelo deputado José Eurípedes Clemente; [22] e o PL 2338/23, publicado em maio e de autoria do senador Rodrigo Pacheco, [23] que substituiu os PLs 5.051/2019, 21/2020 e 872/2021, contando com uma maior colaboração técnica que todos os outros, inclusive em relação ao PL 759/23.

O PL 2338/23 foi elaborado por uma comissão envolvendo diversos especialistas nos ramos do direito civil e digital, dentre os quais se destaca o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça (Presidente da comissão). Tal comissão realizou uma série de audiências públicas, além de seminário internacional, ouvindo mais de setenta especialistas sobre a matéria e representantes de diversos segmentos: sociedade civil organizada, governo, academia e setor privado.

Da sua justificativa, extrai-se que o PL 2338/23 tem um duplo objetivo:

  • estabelece direitos para proteção do elo mais vulnerável em questão, a pessoa natural que já é diariamente impactada por sistemas de inteligência artificial, desde a recomendação de conteúdo e direcionamento de publicidade na Internet até a sua análise de elegibilidade para tomada de crédito e para determinadas políticas públicas;
  • ao dispor de ferramentas de governança e de um arranjo institucional de fiscalização e supervisão, cria condições de previsibilidade acerca da sua interpretação e, em última análise, segurança jurídica para inovação e o desenvolvimento tecnológico.

Em que pese os diversos atores e estudos por trás do PL, em votação aberta no site do Senado, a maioria da população votou contra a sua aprovação. Em 6 de outubro de 2023, eram 159 para “sim” e 165 para “não”. [24] Por se tratar de tema complexo e cujos debates se intensificaram recentemente, ainda há muitas incertezas e temores em relação à qual seria a regulamentação adequada.

Divulgação/CIAPJ-FGV

Nessa lógica, Marina Feferbaum, coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP, posicionou-se no sentido de que a necessidade da regulação da IA “não pode ser utilizado como pretexto para a elaboração, às pressas, de regras unicamente para que se diga que o tema está regulado”. [25]

Dessa forma, apesar do cuidado na elaboração do PL 2338/23, o Brasil tem um grande desafio pela frente: o de estabelecer uma regulação efetiva para a IA, bem como o de definir o momento certo para aprová-la. Além da experiência regulatória internacional, que pode servir de inspiração, não se pode perder de vista os princípios constitucionais, como o da segurança jurídica, e as garantias individuais e sociais.

Por fim, vale lembrar que o então Senador baiano Ruy Barbosa — ao criticar a rapidez com que Clóvis Beviláqua redigiu o anteprojeto do primeiro Código Civil Brasileiro, cuja incumbência foi recebida do então Ministro da Justiça, Epitácio Pessoa, em 1899, tendo a sua redação sido concluída em outubro de 1900 [26] — usou a seguinte expressão: “A pressa é a inimiga da perfeição”. Aqui, pode-se dizer que: a pressa é a inimiga da regulação!

 


[1]      SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961, p. 31.

[2]     Já se tem notícia da utilização de IA no conflito militar da Ucrânia, que vem impulsionando start-ups voltadas à criação de IA com aplicação militar ao redor do globo. Nesse sentido: https://www.estadao.com.br/internacional/guerra-na-ucrania-abre-caminho-para-startup-militares-nos-eua/#:~:text=Alguns%20especialistas%20esperam%20que%20a,combates%20quanto%20as%20armas%20nucleares. Acesso em 26.03.24.

[3]     ‘Risco para a humanidade’; Musk e grupo pedem pausa em ChatGPT e rivais – TecMundo. Acesso em 26.03.24.

[4]    Em 19.07.23, para fins de elaboração deste artigo, questionou-se ao ChatGPT (https://chat.openai.com/) “o que é você?” e “o que é o chat GPT?”. As respostas fornecidas foram, respectivamente, as seguintes: (i) “Eu sou a ChatGPT, um modelo de linguagem desenvolvido pela OpenAI. Fui treinado para responder perguntas, fornecer informações, auxiliar em tarefas e manter conversas em diversos tópicos. Posso ajudá-lo com várias questões e fornecer informações com base no meu treinamento em uma ampla gama de textos disponíveis na internet. No entanto, é importante lembrar que eu sou um programa de computador e não possuo consciência ou sentimentos.”; e (ii) “O ChatGPT é um modelo de linguagem desenvolvido pela OpenAI. Ele é baseado na arquitetura GPT-3.5, que significa “Generative Pre-trained Transformer 3.5”. Essa arquitetura utiliza redes neurais de transformadores, que são modelos de aprendizado de máquina capazes de processar e gerar texto. O GPT (Generative Pre-trained Transformer) é treinado em grandes quantidades de texto para aprender padrões e estruturas da linguagem. Ele pode ser utilizado para uma variedade de tarefas relacionadas ao processamento de linguagem natural, como responder perguntas, completar frases, traduzir textos e gerar conteúdo. O ChatGPT é uma versão específica do GPT projetada para conversar com usuários, fornecendo respostas relevantes e engajando-se em diálogos. Ele é treinado em um conjunto diversificado de dados, incluindo conversas simuladas entre humanos e perguntas e respostas coletadas de fontes da internet. No entanto, é importante ressaltar que o ChatGPT é um modelo de linguagem baseado em padrões e estatísticas, não possui conhecimento próprio além do que foi treinado e não tem consciência ou compreensão real do significado dos textos.”

[5]     https://www.infomoney.com.br/negocios/microsoft-investe-bilhoes-de-dolares-na-openai-do-chatgpt-e-acirra-corrida-tecnologica/.

[6]    Em 20.07.23, questionou-se à Bard “o que é o bard?”, ao que a plataforma respondeu: “Bard é um chatbot conversacional de inteligência artificial generativa desenvolvido pelo Google AI, baseado inicialmente na família LaMDA de grandes modelos de linguagem e mais tarde no PaLM LLM. É capaz de ler e responder a perguntas de forma informativa, mesmo que sejam abertas, desafiadoras ou estranhas. Também pode gerar diferentes formatos de texto criativo, como poemas, código, scripts, peças musicais, e-mail, cartas, etc. O nome Bard foi escolhido porque, na mitologia celta, os bardos eram poetas, contadores de histórias e músicos que eram reverenciados por sua sabedoria e conhecimento. Assim como os bardos da antiguidade, o Bard do Google é um repositório de conhecimento que pode ser consultado para obter informações e inspiração.

O Bard ainda está em desenvolvimento, mas já aprendeu a realizar muitos tipos de tarefas. Ele pode ser usado para: Pesquisar informações na web; Traduzir idiomas; Escrever diferentes tipos de conteúdo criativo; Responder a perguntas de forma informativa; Gerar código; Compreender e responder a comandos de voz

O Bard é uma ferramenta poderosa que pode ser usada para uma variedade de propósitos. Ele pode ser usado para melhorar a educação, a pesquisa, a comunicação e a criatividade. À medida que o Bard continua a se desenvolver, ele se tornará uma ferramenta ainda mais poderosa para ajudar as pessoas a aprender, criar e se comunicar.”

[7]    TOMAZINI, Andressa. Diálogos entre o direito e a tecnologia: chat gpt e fakenews. Boletim Revista dos Tribunais Online, vol. 40/2023.

[8]   https://www.cnnbrasil.com.br/economia/inteligencia-artificial-pode-afetar-300-milhoes-de-empregos-no-mundo-diz-goldman-sachs/. Acesso em 26.03.24.

[9]    https://www.conjur.com.br/2023-jul-17/direito-autoral-obras-criadas-ia-problema-ainda-longe-solucao. Acesso em 26.03.24.

[10]     https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2023/07/15/greve-em-hollywood-o-que-se-sabe-sobre-as-paralisacoes-dos-roteiristas-e-atores.ghtml. Acesso em 26.03.24.

[11]    https://olhardigital.com.br/2023/07/19/pro/lado-b-da-ia-inumeros-autores-exigem-pagamento-por-uso-de-seus-trabalhos/#:~:text=%E2%80%9CEstamos%20tentando%20trabalhar%20em%20novos,disse%20ele%20em%20evento%20recente.&text=J%C3%A1%20assistiu%20aos%20novos%20v%C3%ADdeos%20no%20YouTube%20do%20Olhar%20Digital%3F. Acesso em 26.03.24.

[12]    https://www.security.ufrj.br/dicas/deepfake-o-futuro-da-desinformacao/. Acesso em 26.03.24.

[13]   https://veja.abril.com.br/edicoes-veja/2866/. Acesso em 26.03.24.

[14]   https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429.

[15]    https://www.migalhas.com.br/quentes/396836/juiz-que-usou-tese-inventada-pelo-chatgpt-em-sentenca-sera-investigado.

[16]   https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/11/74184B7B3A149B_circular.pdf.

[17]   Ex-CEO do Google alerta para os malefícios da inteligência artificial – Forbes. Acesso em 26.03.24.

[18] Artificial intelligence – OECD. Acesso em 26.03.24.

[19]   China: AI Governance Principles Released | Library of Congress (loc.gov). Acesso em 26.03.24. A China aprovou, recentemente, novas regulamentações: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/china-aprova-novas-regras-de-regulamentacao-de-ia-generativo-como-o-chatgpt/. Acesso em 26.03.24.

[20]     https://op.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/d3988569-0434-11ea-8c1f-01aa75ed71a1. Acesso em 26.03.24.

[21]   https://gpai.ai/. Acesso em 26.03.24.

[22]  PL 759/2023 — Portal da Câmara dos Deputados – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 26.03.24.

[23] PL 2338/2023 – Senado Federal. Acesso em 26.03.24.

[24] PL 2338/2023 – Senado Federal. Acesso em 26.03.24.

[25]   https://futurodasaude.com.br/regulacao-da-ia/. Acesso em 26.03.24.

[26] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 36ª ed. 1. Vol. São Paulo: Saraiva, 1999.

Autores

  • é advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional, foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).

  • é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown, doutorando e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor de Direito Processual Civil na especialização da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) e coordenador regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) em Brasília.

  • é associado de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP).

  • é estagiária de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharelanda em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

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