Repensando as Drogas

E se Jesus de Nazaré voltasse durante uma marcha da maconha?

Autor

  • Mário Henrique Cardoso Caixeta

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás mestre em História pela PUC-GO graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

8 de março de 2024, 8h00

No já longínquo ano de 2011, no julgamento da ADPF 187, o ministro Celso de Melo deixou assentado que a “Marcha da Maconhaé um movimento social espontâneo que reivindica, por meio da livre manifestação do pensamento, “a possibilidade da discussão democrática do modelo proibicionista (do consumo de drogas) e dos efeitos que (esse modelo) produziu em termos de incremento da violência” [1].

De lá pra cá, muita água passou pela ponte, mas ainda pululam iniciativas autoritárias que buscam proibir o exercício de direitos fundamentais, associadas à livre manifestação de pensamento e ao direito de reunião.

Cito como exemplo lei de iniciativa do poder executivo de Sorocaba (SP), e chancelada pelo Poder Legislativo, flagrantemente inconstitucional, proibindo a realização da marcha da maconha [2]. A lei caiu, mas… a Frente Nacional dos Prefeitos sufragou o posicionamento do município paulista, buscando socorro, inclusive, no Senado [3].

Mais recentemente, sem inovação em fundamentos e deixando ecoar a mesma sanha preconceituosa e punitivista, o município de Blumenau editou lei proibindo a realização da marcha da maconha [4]. Enfim, são recorrentes esses movimentos de proibição! Afinal, como adverte Bertold Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”.

A marcha da Maconha é um movimento político que defende a reforma da atual política de drogas, a descriminalização e a regulamentação do comércio e uso da maconha. O movimento nasceu em Armsterdã, em 1972, e ocorre em diversas partes do mundo.

No Brasil, a primeira marcha ocorreu em 2002, no Rio de Janeiro, e hoje ela acontece em diversos municípios brasileiros. A recente legalização e regulamentação da posse, produção e uso de maconha na Alemanha é um exemplo de que não se marcha em vão…

Paulo Pinto/Agência Brasil

No Brasil, que foi o último país a abolir a escravatura, ao que parece, também será o último a encarar, sem hipocrisia, o fracasso da guerra às drogas (leia-se fracasso quanto aos objetivos declarados: proteção da saúde pública e tutela da segurança pública, mas é inegável que a guerra é de um estrondoso sucesso, quando observada sob a perspectiva do controle e extermínio de populações específicas). Achávamos que víamos uma esperança, parafraseando Henfil, no julgamento do RE 635.659, até o dia 6/3/2024.

Atônitos, observamos um ministro da Suprema Corte, com escopo de reduzir o parâmetro mencionado pelos colegas para distinção entre tráfico e uso, invocar exemplos que desafiam a experiência da prática criminal: 10 gramas de maconha seriam capazes de gerar, na sua fala, 34 “baseados”! Qual a relevância desse argumento sob perspectiva dogmática? Nenhuma, especialmente porque o que distingue o uso do tráfico é o comércio! A fala logo tornou-se meme na internet! [5]

Acompanhando o voto desse colega, outro ministro emendou que a descriminalização acabaria com o único argumento da família pobre brasileira para evitar o contato de seus familiares com a droga: o fato de ser ilícito, esquecendo-se que o relator não chegou a declarar licitude do porte de drogas, que poderia ser objeto de regulação administrativa.

Lembrou, ainda, a cartada do conservador Senado, com sua PEC das drogas. Argumentos de política, não de princípio! Nada sobre a fragmentariedade do direito penal; nada sobre a autolesão; nada sobre dignidade da pessoa humana; nada sobre os efeitos deletérios da política de drogas, principalmente na perspectiva da família pobre, encurralada, isso sim, pela política proibicionista. Ao final, as luzes do papel iluminista da corte, tão lembrado pelo seu presidente, apagaram-se com um desolado (r) pedido de vista.

Voltando à marcha, a ativista da Marcha da Maconha de São Paulo, denominada Diva Sativa, destacou o caráter inclusivo do evento:

Eu como jovem da periferia posso afirmar que nós não somos estimulados a participar da vida política do país, a ter uma visão crítica, a saber fazer uma análise de conjuntura, a conhecer outras realidades deste País tão grande. A gente não tem esse estímulo, por isso, para muitos de nós, a marcha é a primeira organização política que participamos. Algo que promove o debate, a informação e se torna um espaço legítimo para que o jovem negro periférico possa fazer uso de um direito, que é a liberdade de expressão, para lutar pelo direito à vida. Os coletivos da marcha são espaços acolhedores e de educação social e política e não um espaço de apologia ao uso de drogas, ainda que nossa luta seja pela legalização” [6].

E se Jesus de Nazaré voltasse em carne e osso e estivesse rolando a marcha?
Como seria?
Ele repreenderia os participantes?

Essa perspectiva de análise não evoca elementos religiosos, crenças, dogmas, etc., envolvendo Jesus de Nazaré. Assim, para o debate, o que ele representa para o cristianismo, para o judaísmo ou para o islamismo não importa.

Mas, sendo a nação brasileira predominantemente cristã [7], trazer os ensinamentos de Jesus de Nazaré, especialmente aqueles realizados no Sermão da Montanha (MATEUS, 5:3; e LUCAS 6:20), para a arena da guerra às drogas me pareceu interessante, mormente quando muitos líderes religiosos, dizendo-se porta-vozes de Jesus, de Deus ou do Espirito Santo — isso não importa — vociferam contra a “marcha da maconha”, contra minorias, contra pessoas LGBTQIA+, pessoas em situação de rua, etc., estimulando preconceito e violência contra estas, fortalecendo narrativas de exclusão, violência e eliminação[8]. É paradoxal, para dizer o mínimo, que se pregue violência sob o nome de Jesus!

Jesus de Nazaré, ao perceber aquela turma pregando “paz e amor”, mas ao mesmo tempo dizendo “não à guerra”, “não à proibição”, certamente se aproximaria do movimento, ao menos por curiosidade.

De um lado, ele perceberia humildes, desvalidos e injustiçados naquele aglomerado de pessoas. Também veria muitas pessoas corajosas desafiando a ordem posta, calcada no preconceito, na violência e na exclusão, com marcas de violência pelo corpo, praticada por agentes do estado.

De outro lado, veria olhares atentos dos “guardiões da moral e dos bons costumes” e a vigilância implacável do poder do Estado, ambos pretendendo dissuadir aquele movimento, seja com o uso da força bruta [9], seja com uma maciça campanha de descredibilização e aviltamento da dignidade dos participantes, simpatizantes e apoiadores, como é a realizada por alguns líderes religiosos [10].

Ou seja, não seria um quadro muito diferente daquele que vigia no tempo de Jesus, quando o poder político era exercido por Roma e a moral era ditada pelos fariseus, numa promíscua relação do Estado com a religião, urdida para a exploração e opressão de pobres e enriquecimento de alguns.

Nesse cenário, me veio à lembrança o Sermão da Montanha, verdadeiro ato de contracultura protagonizado por Jesus. Está descrito no Evangelho de Mateus, capítulo 5-7, e no Evangelho de Lucas, capítulo 6, e nele está contida a bula do agir cristão. Foi proferido a multidões que buscavam alento, conforto, salvação, paz, enfim.

O público era de desvalidos, pessoas à margem do sistema, espoliados, e a eles se dirigiam a mensagens de Jesus. Como explicado pelo professor Waldir Augusti e Padre Ticão [11], “o filho do Homem, desde o seu nascimento, estaria com os pobres, com os desvalidos, com os enxotados por uma sociedade dividida em classes.

Uma sociedade na qual a classe dominante impunha pesados fardos sobre camponeses, pescadores, pastores, artesãos e outras categorias de trabalhadores. Altos impostos eram cobrados pelas autoridades governantes, enquanto que contribuições financeiras eram exigidas pelos líderes religiosos que deturpavam a palavra de Deus para se satisfazerem em sua ganância e cobiça. Enquanto o povo pobre sofria com a miséria, os ricos de deleitavam com suas riquezas. Estava instaurada a divisão entre os grandes e pequenos, ricos e pobres, exploradores e explorados”.

No “sermão da montanha”, Jesus nos exorta à humildade, prometendo justiça aos injustiçados e àqueles que sofrem, ou seja, às páreas de hoje e de outrora; nos concita a exercitar a tolerância, a mansuetude, porém, nos encorajando a provocar a mudança do mundo, a sermos o sal da Terra, ainda que sejamos perseguidos, nos encorajando a lutar contra a injustiça e pelos injustiçados, como corajosamente faz o admirável padre Júlio Lancellotti, apesar dos terríveis obstáculos [12].

Sobre o conceito de justiça, Jesus nos adverte: “Digo-vos, pois, se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrarei no Reino dos céus” (MATEUS, 5:20). Logo, nada mais distante do modelo de justiça preconizado por Jesus que a perseguição àqueles que participam ou apoiam a marcha da maconha!

Jesus também nos incita a exercer a caridade, preocupando-se com o próximo, a sermos humildes, observando nossos próprios defeitos. Ele também nos convida a realizar boas obras —muitos diferentes daquelas consistentes em templos suntuosos construídos às expensas do dízimo pago por fieis majoritariamente pobres!

Quando se examinam os verdadeiros porquês da criminalização do tráfico e da posse de drogas para consumo pessoal, especialmente da maconha, com enfoque especial naqueles que são vítimas da política proibicionista, constata-se que não há outros objetivos senão controlar, perseguir, punir, excluir populações específicas, a partir de critérios racistas e sócio-econômicos.

Nesta mesma coluna, o tema foi abordado por mais de uma vez, e vale citar o trecho do artigo produzido pelo articulista Felipe Morais Barbosa: “a política de segurança pública baseada no proibicionismo se iniciou como um programa de controle social, nos Estados Unidos, Europa, Brasil, e diversos outros países. Posteriormente foi expandida para o mundo, com especial ingerência norte-americana, através da ONU.

A Organização das Nações Unidas defende a construção de ‘um mundo livre das drogas’. Política que trouxe consequências gravosas, principalmente a população vulnerável. Negros e pobres ficaram na alça de mira das agências penais dos estados” [13].

Cotejando os ensinamentos de Jesus com os objetivos da política de guerra às drogas (leiam-se, objetivos escamoteados), parece-me que ele, nesse panorama, apoiaria a marcha da maconha, e isso certamente geraria a fúria daqueles que estão com a batuta do poder nas mãos.

Teriam Jesus como baderneiro, vagabundo e maconheiro, e a cruz certamente lhe esperaria como outrora. Quanto a estes, fariseus e quejandos, Jesus já nos deu o exemplo de como os trataria, ao expulsar os vendilhões do templo: “14 — Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas. 15 — Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. 16 — Disse aos que vendiam as pombas: Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes” (JOÃO, 2:14-16).

Já quanto aos outros, esbulhados, certamente seriam acolhidos por Jesus, que inclusive seria chamado a dar um “tapa na macaca”, ao que ele, prudentemente, recusaria, pois haveria de respeitar a “Lei de César”, ou seria mais um a engrossar o sistema penal brasileiro.

Em nosso socorro, Gilberto Gil cantou a desilusão dos tempos que correm e a esperança no porvir, se Jesus vier nos acudir:

“Muita gente se arvora a ser Deus; E promete tanta coisa pro sertão; Que vai dar um vestido pra Maria; E promete um roçado pro João; Entra ano, sai ano e nada vem; Meu sertão continua ao Deus dará; Mas se existe Jesus no firmamento; Cá na Terra isso tem que se acabar” (música Procissão).

 


[1] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=182124&ori=1 – acesso em 04/03/2024;

[2] https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2023/02/16/lei-que-proibe-realizacao-de-eventos-como-a-marcha-da-maconha-e-sancionada-em-sorocaba.ghtml – acesso em 04/03/2024;

[3] https://www.gazetadopovo.com.br/sao-paulo/prefeitos-articulacao-para-criminalizar-marcha-da-maconha/ – acesso em 04/03/2024;

[4] https://www.cartacapital.com.br/politica/psol-vai-a-justica-apos-blumenau-proibir-a-marcha-da-maconha-inconstitucional/ – acesso em 04/03/2024;

[5] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/mendonca-vira-piada-na-web-ao-dizer-que-10-gramas-de-maconha-renderiam-34-cigarros/ – acesso em 07/03/2024;

[6] https://soucannabis.ong.br/marcha-da-maconha-conheca-a-historia-do-movimento/ – acesso em 04/03/2024;

[7] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml – acesso em 04/03/2024;

[8] https://congressoemfoco.uol.com.br/temas/direitos-humanos/pastor-que-ora-pela-morte-de-paulo-gustavo-sera-processado-por-homofobia/ – acesso em 04/03/2024;

[9] https://oglobo.globo.com/politica/apos-violencia-na-marcha-da-maconha-dois-policiais-sao-afastados-diz-pm-2765994 – acesso em 04/03/2024;

[10] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vitoria-em-cristo/ – acesso em 04/03/2024;

[11] https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/jesus-esteve-ao-lado-dos-pobres-desvalidos-e-enxotados-desde-o-seu-nascimento/ – acesso em 04/03/2024;

[12] https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/padre-julio-lancellotti-existe-uma-desumanizacao-acelerada – acesso em 04/03/2024;

[13] https://www.conjur.com.br/2023-mai-26/repensando-drogas-vicio-fracasso/ – acesso em 04/03/2024;

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, mestre em História pela PUC-GO, graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

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