Opinião

Restabelecimento do sigilo profissional do advogado por meio da Reclamação 57.996

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5 de março de 2024, 16h21

Casos de escândalos financeiros, infelizmente muito comuns no nosso país, impactam a vida de diversos grupos no ambiente corporativo, entre eles clientes, fornecedores e especialmente os funcionários, que na grande maioria são totalmente alheios às práticas ilícitas perpetradas ou investigadas.

Recentemente, a fraude financeira de “risco sacado” sob investigação nas Americanas serviu de contexto para uma apressada busca e apreensão de documentos e comunicações, que acabaram por atingir indevidamente inclusive os advogados da empresa, em flagrante infringência à Constituição e à lei.

O presente artigo vem para comentar este infeliz episódio na busca e apreensão no caso da Americanas à luz do sigilo profissional do advogado, extraindo oportunas lições, e por fim, a título de sugestão, veicular boas práticas de governança corporativa em contexto de questionamentos e investigações no âmbito financeiro, especialmente para os profissionais advogados.

Sigilo profissional em questionamento
De início, importante reafirmar o que consta do artigo 7º, inciso II, do Estatuto da Ordem dos Advogados:

“São direitos do advogado: a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia.

Trata-se, portanto, de verdadeiro privilégio outorgado ao advogado de não ser surpreendido e de ter preservado seu ambiente de trabalho, seus documentos e suas comunicações, com vistas a se garantir o livre desenvolvimento de atividades em prol da defesa de seus clientes, por vezes sendo os únicos defensores destes.

Nas palavras do ministro Ricardo Lewandowski, “a inviolabilidade do escritório ou do local de trabalho é consectário da inviolabilidade assegurada ao advogado no exercício profissional” (STF, ministro Ricardo Lewandowski, ADI 1.127).

O texto expresso da lei; a jurisprudência unânime; a doutrina lecionada durante a formação do operador do direito. Enfim, todas essas fontes deveriam ser mais que suficientes à desnecessidade de qualquer discussão a respeito da preservação do sigilo profissional do advogado.

Contudo, foi necessário reforço constitucional por parte do Supremo Tribunal Federal no âmbito da Reclamação nº 57.996, corrigindo ordem judicial de primeira instância veiculada para se obter, em medida de busca e apreensão, comunicações internas da empresa Americanas S.A., envolta em suspeitas de fraude financeira, que acabou por atingir inclusive correspondências dos advogados internos e externos do grupo (Gamba, 2023).

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Como mencionado, deveria ser indiscutível e desnecessário se declarar a inviolabilidade dos advogados envolvidos. Porém, infelizmente, foi necessária a intervenção do STF por meio da referida reclamação para que, ao final, tal prerrogativa e a justiça, fossem restabelecidas. É preciso, pois, tirar importantes lições dessa infeliz situação imposta à história da advocacia brasileira.

Contextualizando, ato contínuo à divulgação de “fato relevante” noticiando renúncia do então novo CEO da Americanas S.A., bem como ao ajuizamento de respectiva ação de recuperação judicial, o credor Bradesco ajuizou competente ação de produção antecipada de provas com pedido de tutela antecipada, Processo nº 1000147-05.2023.8.26.0260, em face das devedoras Americanas S.A. e B2W Companhia Digital, com vistas à busca e apreensão de comunicações eletrônicas para fins de preservação de prova e perícia investigativa de possível fraude.

A juíza Andréa Galhardo Palma deferiu medida irrestrita, adotando como fundamentação as seríssimas suspeitas e evidências de fraude financeira então apresentadas:

“(…) Tem sido veiculado diariamente nos meios de comunicação as suspeitas de contundente fraude financeira, a atingir uma cadeia volumosa de fornecedores, bancos e acionistas minoritários. Neste quadro, diante da magnitude do fato e potencial responsabilização individual dos agentes envolvidos nas fraudes suspeitas, é razoável supor que provas relevantes e necessárias para verificar a ocorrência de fatos ilícitos correm risco de perecimento. Ainda que a companhia ré tenha supostamente adotado medidas para realizar a apuração dos fatos, como a criação de “Comitê Independente” (fls. 78/79), diante da elevada possibilidade de responsabilização individual em diversas esferas (criminal, administrativa, cível) dos agentes envolvidos com a suposta fraude, não são improváveis os riscos de destruição ou inutilização de provas documentais como “e-mails, ofícios, relatórios internos, etc.”
(fl. 299 dos autos).

Por sua vez, contra esta decisão e seus sucessivos atos judiciais, foi ajuizada a mencionada Reclamação nº 57.996, com vistas à cassação de tal determinação abrangente e genérica que atingiria inclusive advogados internos e externos da empresa, ferindo prerrogativa e sigilo profissionais. Para tanto, demonstrou-se que o ato reclamado teria violado o decidido na ADI 1.127, especialmente quanto à inviolabilidade do local de trabalho do advogado.

O ministro Alexandre de Moraes então concedeu inicialmente medida cautelar para suspender a referida decisão de primeira instância e ouvir as demais partes envolvidas na reclamação, em especial a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), como amicus curiae; a juíza Andréa Palma; a Procuradoria-Geral da República, que opinou pela preservação do sigilo dos advogados envolvidos; e o credor Bradesco.

Foi então finalmente proferida sentença em 03/04/2023, julgando parcialmente procedente a reclamação para:

(…) EXCLUIR DA DECISÃO RECLAMADA a utilização de mensagens eletrônicas, documentos e dados transmitidos entre advogados, no exercício da profissão (…)”.

Na respectiva fundamentação, especial destaque para a menção ao restabelecimento da inviolabilidade das correspondências eletrônicas impactadas pela decisão tomada em primeira instância, que teve por fim a inviolabilidade do exercício da função de advogado (artigo 7º, inciso II, EOAB, e artigo 133, Constituição), conjugada à efetivação da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, Constituição), garantida a qualquer parte.

Ora, há de se reconhecer a complexidade do caso e a apressada busca pela preservação de provas para apuração de suspeitas de fraude. Ágil e tempestiva a ação por parte de um banco credor em busca da preservação de provas que venham a tornar mais certa a restituição de eventuais créditos em seu favor. O que não se pode admitir é, com a supervisão da justiça, o avanço desmesurado de garantias constitucionais, como ocorreu neste caso de violação de advogados no exercício profissional.

Nem se alegue que com tal decisão o STF estaria por estimular práticas de atividade ilícitas ou abuso de prerrogativas de advogados.

Pelo contrário, houve o reforço por diversas vezes de que o sigilo profissional conferido ao advogado abrange os — e se limita aos — atos e manifestações realizadas em estrita observância à profissão, ponderando que de nenhuma forma tal sigilo afastaria a possibilidade de responsabilização civil ou penal por atos ilícitos, respeitando-se o devido processo legal e demais garantias constitucionais aplicáveis.

Enfim, ainda que em meio a um infeliz e desnecessário questionamento, posto que indubitável e pacífico, a definição dada pela sentença na Reclamação 57.996 vem para reforçar e restabelecer o direito ao sigilo profissional conferido ao advogado, que, independente das inovações da sociedade ou dos casos submetidos à apreciação judicial, deve ser constantemente reforçado diante das sempre presentes ameaças.

O dia depois da Reclamação 57.996: lições de governança e integridade
Restabelecido e reafirmado o direito quanto à inviolabilidade do sigilo profissional do advogado, que lições são possíveis serem extraídas do infeliz ocorrido? Como contribuir para um ambiente mais próximo das boas práticas de governança corporativa, sem que isso venha a contribuir para o sentimento generalizado de impunidade?

Em primeiro lugar, é preciso haver diálogo. A livre e irrestrita comunicação interna, respeitados os deveres de confidencialidade e proteção de dados, deve ser estimulada, especialmente quando a empresa está envolta em discussões públicas, com ampla cobertura midiática.

Especialmente no caso da Americanas, a busca e apreensão de documentos e comunicações foi encarada com surpresa e sem um plano de contingência institucional, de modo a minimizar os impactos no dia a dia da operação da empresa. É com este diálogo que a tensão se dissipa na medida em que as responsabilidades são estabelecidas e direcionadas.

Em segundo lugar, situações como essa servem para testar a conformidade das ações tocadas pelos diversos funcionários. As ações são tocadas por pessoas à ordem de outras, numa hierarquia bem definida, dentro de políticas e tarefas pré-definidas, visando ao bem comum da empresa.

Todo aquele que age dentro desta conformidade não há porque temer qualquer tipo de questionamento ou investigação; aliás, isso apenas reforçará a boa-fé e a integridade do funcionário.

Por último, e talvez o mais importante, é que situações atípicas como essas, de fraudes financeiras e de busca e apreensão, sirvam de experiência e oportunidade para que melhorias sejam implementadas.

Mais do que fazer de tudo para evitar situações desagradáveis, é salutar reconhecer que no caminho vão surgir problemas e de antemão exercitar como eles seriam endereçados, sempre tendo como objetivo a continuidade da empresa e o importante atingimento do seu fim social.

Enfim, seja em termos éticos ou morais, seja primando pelos princípios da governança corporativa e integridade, é possível conceber um ambiente corporativo mais propício a endereçar os questionamentos da sociedade como um todo a respeito das práticas corporativas.

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Referências
Gamba, K. Moraes autoriza busca e apreensão em e-mails de executivos da Americanas. O Tempo. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/politica/judiciario/moraes-autoriza-busca-e-apreensao-em-e-mails-de-executivos-da-americanas-1.2842836>. Acesso em: 24/11/2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal Consulta à jurisprudência disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search. Acesso em 21/11/2023. Precedentes citados: Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 1.127. Acórdão. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.906, DE 4 DE JULHO DE 1994. ESTATUTO DA ADVOCACIA E A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. DISPOSITIVOS IMPUGNADOS PELA AMB. PREJUDICADO O PEDIDO QUANTO À EXPRESSÃO “JUIZADOS ESPECIAIS”, EM RAZÃO DA SUPERVENIÊNCIA DA LEI 9.099/1995. AÇÃO DIRETA CONHECIDA EM PARTE E, NESSA PARTE, JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. Requerente: Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB. Requeridos: Presidência da República e Congresso Nacional. Rel.: Min. Marco Aurélio. Rel. para Acórdão: Min. Ricardo Lewandowski., Tribunal Pleno, julgado em 06/10/1994, Diário de Justiça Eletrônico divulgado em 10/06/2010 e publicado em 11/06/2010; Medida Cautelar na Reclamação 57.996 São Paulo. Decisão Monocrática. Reclamante: Rodrigo Figueiredo da Silva Cotta e Outros. Reclamado: Juiz de Direito da 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Especializado da Comarca de São Paulo. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Diário de Justiça Eletrônico divulgado em 03/04/2023, publicado em 04/04/2023.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Consulta à jurisprudência disponível em https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do. Acesso em 21/11/2023. Precedente citado: Produção Antecipada de Prova nº 1000147-05.2023.8.26.0260. Decisão Interlocutória. Autor: Banco Bradesco. Réus: Americanas S.A. e B2W Companhia Digital. Juíza prolatora: Dra. Andréa Galhardo Palma. Diário de Justiça do Estado de São Paulo 27/01/2023.

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