Diário de Classe

O judô socrático e a dogmática jurídica

Autor

  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

2 de março de 2024, 8h00

Um dos princípios centrais do judô consiste na ideia da Seiryoku Zen’Yo, máxima eficiência do corpo com o mínimo de esforço, a partir da qual os golpes utilizam a força do oponente para contra-atacar.

Este princípio da arte marcial ajuda-nos a entender a argumentação destrutiva que Sócrates, amigo da sabedoria (filósofo), emprega contra o sábio (sofista) Protágoras, em diálogo com Teeteto e Teodoro, admiradores de Protágoras que defendiam a tese de que o conhecimento equivale à sensação (intuição sensível) e que, assim, cada um é a medida da verdade a partir de sua sensação individual (“o homem é a medida de todas as coisas”).

Como relata Simon Blackburn em seu livro introdutório extremamente recomendável Verdade: um guia para os perplexos, “Sócrates encontrou alguns seguidores do filósofo Protágoras na praça do mercado em Atenas. O encontro é descrito no diálogo de Platão, o Teeteto.

Parece que Protágoras tinha escrito um volume denominado A verdade, que agora está perdido. Ele era notório pelo ditado de que o homem era a medida de todas as coisas, “das coisas que são, que eles são, das coisas que não são, que eles não são”. […] “No ponto crucial do diálogo, Sócrates solicita a um deles, Teodoro, que considere o ponto de vista de Protágoras, a Doutrina da Medida, e lhe pede que perceba que quase todos os outros (‘a vasta maioria’, diz Sócrates, citando Homero) a encaram como inverdade” [1].

Em resumo, argumenta Sócrates que a maioria das pessoas não considera que a opinião de um médico, por exemplo, equivale, em relação à doença, à opinião de qualquer outro não treinado na arte da medicina. E assim para os diferentes tipos de conhecimento.

Ora, se o homem é a medida de todas as coisas e a opinião de cada qual é tão verdadeira quanto às demais e, sendo a maioria contrária a esta mesma tese, Protágoras e sua definição de conhecimento caem em contradição. Afirma Sócrates, nesse sentido:

Sócrates – E Protágoras, como se arranjaria? Na hipótese de não acreditar que o homem é a medida das coisas, nem ele nem a grande maioria, que, de fato, não acredita, não seria inevitável não existir para ninguém sua Verdade, tal como ele a descreveu? E se ele a admitisse, porém as multidões a rejeitassem, sabes muito bem, para começar, que na mesma proporção em que o número dos que não a aceitam ultrapassa o dos que a aceitam, há mais razões para seu princípio não existir do que para existir.
Teodoro – Necessariamente, se depender do critério pessoal a existência ou não existência de alguma coisa.
Sócrates – Ao depois, o mais bonito, no caso, é reconhecer ele próprio que terão de estar certos seus contraditores, quando opinam sobre seu princípio e o declaram falso, visto admitir que a opinião de todos se refere ao que existe.
Teodoro – Perfeitamente.
Sócrates – Então, ele confessa que sua opinião é falsa, uma vez declarada verdadeira a dos que afirmam estar ele em erro.
Teodoro – Necessariamente.
Sócrates – E os outros, admitem que estejam errados?
Teodoro –  Em absoluto.
Sócrates – Ao passo que ele proclama estarem todos certos, de acordo com seus próprios escritos.
Teodoro – Parece.
Sócrates – De todo lado, pois, há contestação, a começar por Protágoras. Sim, principalmente por ele, visto aceitar como verdadeira a opinião dos que o contraditam. De onde vem, que o próprio Protágoras admite que nem um cão nem qualquer homem da rua não é medida de nada que não houvesse previamente estudado. Não é isso mesmo?
Teodoro – Exato.
Sócrates – Logo, se é contestada por todo mundo, a Verdade de Protágoras não é verdadeira para ninguém, nem para ele próprio.
Teodoro – Atacamos com muita violência, Sócrates, esse meu amigo. [2]

Como comenta Blackburn, “a passagem apresenta o clássico argumento do ‘recuo’, um golpe de judô destinado a deixar desconfortável o relativista Protágoras. A ideia é que a postura relativista, aqui supostamente exemplificada pela doutrina de que o homem é a medida de todas as coisas, recai sobre si mesma.

Ela se adianta como algo a ser aceito, como algo verdadeiro. Mas isso é um tanto incoerente com a própria significação da doutrina, sua própria negação de que a verdade tenha o significado que o senso comum (“a vasta maioria”) lhe concede.

Em resumo, se a Doutrina da Medida for verdadeira, então é refutada por sua própria verdade, significando que não pode ser verdadeira”[3].

Teeteto é o marco do pensamento ocidental acerca da teoria do conhecimento — espistemologia — e suas linhas influenciaram notadamente pensadores modernos como Descartes e Kant. Mas, afinal, o que este diálogo e o golpe de judô epistêmico desferido por Sócrates em Protágoras e seus seguidores há cerca de 25 séculos ainda pode dizer para a comunidade jurídica nacional?

Descompasso
Não é de hoje que Lenio Streck denuncia o descompasso da doutrina jurídica em relação à evolução dos paradigmas filosóficos. No brasil, referências filosóficas no Direito são utilizadas ainda como adorno, capa de sentido, pretenso rebuscamento argumentativo.

Ou, em outros casos, importamos teorias de maneira artificial, como ocorreu com temas como princípios jurídicos, ponderação e afins [4]. Falta-nos ainda, como insiste há tempo o professor Lenio, estabelecermos uma Filosofia no Direito.

Ao investigarmos o que nos dizem os doutrinadores sobre os problemas tratados por Platão no diálogo Teeteto, a verdade e o conhecimento, constatamos que nossa doutrina continua a ser uma vítima indefesa do judô socrático. Sim, nossa doutrina ainda está ao lado de Protágoras, o sofista.

Talvez o exemplo mais claro seja o de Guilherme Nucci, para quem “a existência da verdade é sempre relativa, pois o que é verdadeiro para uns, pode ser falso para outros” [5].

Apliquemos o Ippon filosófico de Sócrates e diremos: é verdade que a verdade é relativa? Bingo! (como diria Streck). Nosso sábio processualista vai ao tatame epistemológico sem grande esforço (seguindo o princípio da máxima eficiência e da suavidade do judô).

O sincretismo sobre o problema da verdade presente na dogmática jurídica é abordado pelo professor Lenio em artigo recentemente publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais do IBCCRIM (Um manifesto antirrelativista [6]).

Também abordamos o tema em outro texto escrito a quatro mãos, em que criticamos as concepções de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán [7]. Em texto prévio aqui nesta ConJur, faço um brevíssimo apanhado de teorias da verdade e sua relação com a teoria jurídica [8]. Em breve, contaremos com nova publicação do professor Streck sobre a crise do ensino jurídico em que o problema do tratamento da verdade no direito também é esmiuçado (spoiler).

Em linhas gerais, a doutrina processual adota a noção de verdade como adequação (adaequatio intellectus et rei). É o caso de autores estrangeiros como Ferrajoli, Taruffo, mas também Gustavo Henrique Badaró [9].

A teoria da verdade como correspondência é em si problemática e poderíamos criticá-la a partir de diferentes correntes contemporâneas da filosofia.

O que torna estes autores sujeitos ao judô socrático, todavia, é a associação da teoria da verdade como correspondência com outras teses relativistas.

Ao mesmo tempo em que propõem um realismo/empirismo segundo o qual os fatos existem independentemente de nossas faculdades conceituais — Badaró, em que pese reconhecer a importância do linguistic turn “para demonstrar o papel de intermediação da linguagem com a linguagem”, afirma que, ainda assim, “a realidade externa existe e constitui o padrão de medida, o critério de referência que determina a verdade ou falsidade dos enunciados fáticos, no caso, da imputação penal” — propõem o livre convencimento como modelo de cognição judicial.

Afinal, se os fatos existem independentemente, mas temos liberdade subjetiva para compreendê-los, a realidade dos fatos não se tornaria dependente do juízo de cada um? E assim levamos a doutrina novamente ao tatame.

Outra tese comum entre processualistas: a realidade existe independentemente de nossos juízos e a verdade é correspondência do juízo com a coisa. No entanto, não podemos acessar a verdade enquanto tal, objetiva, cabendo aos julgadores contentarem-se com uma “verdade relativa”.

É o que propõe, por exemplo, Taruffo. Para o justeórico italiano, o ceticismo em relação à verdade está relacionado a um movimento de reação teórica por parte de “perfeccionistas” ou “desiludidos”, “es decir, de quien habiendo constatado que la verdad absoluta no es posible pasa al extremo opuesto y sostiene la imposibilidad de cualquier conocimiento racional[10].

O mesmo é dito por Ferrajoli, como abordamos nos textos anteriormente referidos. O que diria Aristóteles sobre os juristas contemporâneos que defendem a verdade como adequação? Uma verdade relativa, ou seja, uma verdade que é meia falsidade? Como fica o princípio lógico da não contradição, motor da filosofia do Estagirita?

Ao estilo de Heidegger quando critica o tratamento da questão sobre a existência do “mundo externo” pela filosofia, o escândalo da teoria do direito não é tanto o fato de não termos estabelecido um conceito irretocável de verdade jurídica.

Trata-se, afinal, de um dos grandes problemas do pensamento humano. O problema está no fato de que essa questão é tratada como se já estivesse resolvida e não precisássemos mais nos preocupar com os fundamentos filosóficos do raciocínio jurídico.

Encerro a coluna com a provocação de Sócrates a Teeteto, convidando o leitor a que, a partir destas breves considerações e das referências apontadas ao longo do texto, tire suas próprias conclusões:

Já te esqueceste, amigo, que eu não só não conheço nada disso como não presumo conhecer? Nesses assuntos sou estéril a conta inteira. O que faço é ajudar-te no trabalho do parto; daí, recorrer a encantamentos e oferecer ao teu paladar as opiniões dos sábios, até que, com o meu auxílio, venha à luz tua própria opinião. Uma vez isso conseguido, decidirei se se trata de um ovo sem gema ou de algum produto legítimo. Anima-te, pois; não desistas e declara com independência e decisão o que pensas a respeito do que te perguntei[11].

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[1] BLACKBURN, Simon. Verdade: um guia para os perplexos. Tradução Marilene Tombini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 60.

[2] PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, p. 43. (IX,171, a, b, c).

[3] BLACKBURN, Simon. Verdade: um guia para os perplexos. Tradução Marilene Tombini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 62.

 

[4] Streck, Lenio Luiz. Verdade e consenso : constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. — São Paulo : Saraiva, 2014.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 338.

[6] Luiz Streck, L. (2023). Um manifesto antirrelativista: só há interpretações por que existem fatos, regras e princípios a serem interpretados. Revista Brasileira De Ciências Criminais, 199(199), 53–71. https://doi.org/10.5281/zenodo.8381431

[7] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán. https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/18696

[8] https://www.conjur.com.br/2022-jan-15/diario-classe-filosofia-direito-problema-verdade/

[9] BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

[10] TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Traducción de Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Editorial Trotta, 2005. p. 30.

[11] PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, p. 43. (IX,157,d).

 

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em filosofia pela PUC-RS (bolsa Capes), professor do programa de pós-graduação em Direito da Unesa e membro do Dasein — Núcleo de estudos hermenêuticos.

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