Opinião

Prevenção para julgamento de produção antecipada de provas posterior a ação de conhecimento

Autores

26 de maio de 2024, 9h21

A redação do artigo 381, §3º, do Código de Processo Civil [1] não deixa dúvidas acerca da ausência de prevenção gerada pelo ajuizamento de ação autônoma de produção antecipada de provas em relação a eventual processo de conhecimento posterior, no qual será utilizada a prova já produzida nos primeiros autos. Entretanto, o referido dispositivo nada dispõe sobre a possibilidade de prevenção do juízo gerada por ação de conhecimento anterior, para o processamento e julgamento da ação de produção antecipada de provas posterior, relacionada ao mesmo contexto fático.

Considere-se, por exemplo, a hipótese de uma ação de produção antecipada de provas ajuizada em 2024, pela parte ré que foi solidariamente condenada em uma ação de conhecimento de 2023, pretendendo a produção de prova para sua defesa em eventual ação regressiva a ser movida contra si pelos corréus da primeira ação: haveria prevenção gerada pela demanda de 2023 em relação à ação probatória de 2024?

O artigo 381, §2º e §4º, do CPC estabelece que “a produção antecipada da prova é da competência do juízo do foro onde esta deva ser produzida ou do foro de domicílio do réu” e que “o juízo estadual tem competência para produção antecipada de prova requerida em face da União, de entidade autárquica ou de empresa pública federal se, na localidade, não houver vara federal”. Nessa toada, pela leitura da lei, bastaria, para que se identificasse o juízo competente, que se examinasse o foro do lugar onde a prova será produzida ou o foro de domicílio do réu [2].

Isso, aliado à natureza da ação antecipada de provas — que objetiva o puro exercício do direito autônomo à prova [3] — e a cognição do juiz naquele procedimento — que não excederá o exame dos requisitos formais para a produção da prova, tampouco valorará a prova ali produzida ou se pronunciará sobre o mérito da questão à qual a prova dará suporte em eventual processo de conhecimento [4] —, parece conduzir à conclusão de que não seria possível a prevenção do juízo, de câmara ou de turma julgadora, gerada em processo de conhecimento anterior em relação à ação probatória posterior, ainda que a prova a ser produzida tenha ligação com os fatos narrados na ação pretérita.

Spacca

Mesmo porque, o objeto da ação prevista no artigo 381 e seguintes do CPC (produzir a prova [5]) não se confunde com o objeto da ação de conhecimento anterior (resolver crise de certeza ou de satisfação no plano material), nem com o da eventual ação posterior, afastando também a acessoriedade [6] da qual trata o artigo 61, do CPC [7].

Doutrina x jurisprudência

A doutrina pátria, contudo, entende que é possível a prevenção do juízo para julgamento de ação de produção antecipada de provas gerada por uma ação de produção antecipada anterior, porque, nessa situação excepcional, o objeto das ações seria o mesmo; isto é, o direito de produzir a prova [8].

Mas, na jurisprudência, a questão não é unânime. Por maioria de votos, a 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 2022, anulou sentença terminativa proferida nos autos de produção antecipada de provas para determinar o retorno dos autos à instância de origem a fim de se verificar a existência de prevenção gerada por ação declaratória simultânea, e, caso superada, verificar a presença dos requisitos da ação cautelar probatória [9].

Por sua vez, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, com base no artigo 55, §3º, do CPC, reconheceu a prevenção da Turma Julgadora para julgar recurso especial oriundo de ação de produção antecipada de provas, em função do julgamento de recurso especial anterior, interposto nos autos de ação civil pública na qual os ora recorrentes da ação probatória seriam réus. Na fundamentação, concluiu-se pela existência de conexão por afinidade entre as ações simultâneas, registrando o risco de prolação de decisões conflitantes e a obediência ao princípio do juiz natural [10].

Nesse cenário, nota-se um aparente descompasso entre doutrina e jurisprudência acerca da prevenção para processamento e julgamento de ação de produção antecipada de provas e recursos correlatos, cuja natureza é para alguns verdadeiramente autônoma, mas para outros acessória.

 


[1] “A produção antecipada da prova não previne a competência do juízo para a ação que venha a ser proposta”.

2 Aqui, entende-se mais adequada a posição de Fredie Didier Jr. e de Flávio Luiz Yarshell, no sentido de que, embora seja dado à parte o direito de escolher alternativamente o foro em que será proposta a ação, deve-se priorizar o foro do local onde será produzida a prova em razão do seu caráter funcional. Para Fredie Didier Jr.: “O §2º cria hipótese de foros concorrentes para a produção antecipada da prova: do juízo do foro onde está deva ser produzida ou do juízo do foro de domicílio do réu. O §2º prevê a possibilidade forum shopping, então. Por ser regra de competência territorial, e não haver qualquer ressalva legal, o caso é de competência relativa. O direito de escolha do juízo competente deve ser exercido conforme os princípios da competência adequada e da boa-fé processual. A observação é importante, pois não há sentido algum, por exemplo, na propositura de uma produção antecipada de prova pericial sobre um imóvel em foro distinto do local do imóvel, onde a prova será produzida – se assim fosse, seria uma ação para pedir ao juízo a expedição de uma carta precatória, o que sob qualquer ponto de vista, inclusive a partir do princípio da eficiência (art. 80, CPC), não faz sentido. O foro do domicílio do réu deve ser encarado, no caso, como foro excepcional, cabível, por exemplo, no caso de produção antecipada de depoimento da parte, hipótese em que o domicílio do réu é realmente o mais adequado” (Produção antecipada da prova. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord.); MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; e FREIRE, Alexandre (Orgs.). Coleção Novo CPC, vol. 3: provas, Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 652/653).

3 “O requerimento judicial de produção antecipada de provas é ação (i.e., veicula um pedido de tutela jurisdicional) geradora de processo próprio. (…) A produção antecipada é medida com procedimento sumário (a ponto de excluir contestação e recursos) e cognição sumária horizontal (o juiz averigua superficialmente o pressuposto para antecipar a prova) e vertical (o juiz não se pronuncia sobre o mérito da pretensão ou defesa para a qual a prova poderá futuramente servir)” (TALAMINI, Eduardo. Produção antecipada de prova no código de processo civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 260, São Paulo, out./2016, pp. 75/101).
4 “A valoração da prova pertence ao juiz da causa principal e não ao juiz da medida antecipatória. No curso do procedimento, nem sequer há controvérsia ou discussão sobre o mérito da prova” (THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil, vol. I: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento, procedimento comum, 60ª ed., 2ª reimpr., Rio de Janeiro: Forense, 2019, versão digital, p. 1.313). No mesmo sentido, assentou o Superior Tribunal de Justiça: “Nesse contexto, reconhecida a existência de um direito material à prova, autônomo em si — que não se confunde com os fatos que ela se destina a demonstrar (objeto da prova), tampouco com as consequências jurídicas daí advindas, podendo (ou não) subsidiar outra pretensão —, a lei adjetiva civil estabelece instrumentos processuais para o seu exercício, que pode se dar incidentalmente, no bojo de um processo já instaurado entre as partes, ou por meio de uma ação autônoma (ação probatória lato sensu). (…) Na atual configuração legislativa, a ação de produção antecipada de provas pode assumir duas diferentes naturezas: cautelar, na hipótese do art. 381, I, do CPC, diante da necessidade de preservação da prova; ou satisfativa, nas hipóteses do art. 381, II e III, quando a prova puder viabilizar a autocomposição ou meio adequado de resolução do conflito ou, ainda, evitar ou justificar o ajuizamento de ação. As hipóteses de produção antecipada de prova de natureza satisfativa estão assentadas na existência de um direito autônomo à prova que permite às partes apenas pesquisar a existência e o modo de ocorrência de determinados fatos, independentemente da existência de um litígio potencial, além de ser também um instrumento útil para que as partes mensurem, previamente, a viabilidade e os riscos envolvidos em um eventual e futuro litígio, podendo, inclusive, adotar meios de autocomposição. (…) Na ação probatória autônoma de justificação prevista no art. 381, § 5º, do CPC, assim como na antiga medida cautelar de justificação que lhe serviu de inspiração, descabe a declaração ou reconhecimento de qualquer direito material ou fato que possa suportá-lo, eis que é vedado ao juiz se pronunciar sobre o fato ou sobre as suas repercussões jurídicas e caberá a valoração da prova produzida, oportunamente e se necessário, na ação futura que porventura vier a ser proposta” (STJ, REsp nº 2.103.428/SP, Min. Rel. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 19/3/2024).

5 “A disciplina legal da competência foi coerente com o caráter autônomo do processo cujo objeto é a prova antecipada: ele não deve ser tido como mero acessório de outro (que seria o ‘principal’). Com efeito, se autonomia já se reconhecia no caso de produção antecipada cautelar, com maior razão a desvinculação deve ser feita quando se trata de direito autônomo à produção da prova. Daí, então, a regra do art. 381, § 3.º, que nega o fenômeno da prevenção para ‘a ação que venha a ser proposta’ – lembrando-se que prevenção não é critério determinante de competência. Isso quer dizer que não há competência do juízo perante o qual tramitou o processo probatório (que seria por critério funcional), de sorte que prevalece a distribuição livre, se o foro tiver pluralidade de juízos” (YARSHELL, Flávio Luiz. Arts. 381 a 383, In: Comentários ao Novo Código de Processo Civil [livro eletrônico]. ARRUDA ALVIM, Teresa; DIDIER JÚNIOR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; e DANTAS, Bruno (Coords.), 1ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 978).

6“Na ação de produção antecipada de provas, o juiz não realiza nenhum tipo de juízo sobre o mérito da futura ação principal – que, aliás, pode nem vir a ser ajuizada. Isso, ao lado do fato de a medida de produção antecipada de provas não apresentar um caráter constritivo, faz com que o seu vínculo de acessoriedade com a eventual ação principal seja muito tênue. Justifica-se, assim, o afastamento da regra de competência funcional do art. 61 na hipótese” (WLADECK, Felipe Scripes. Arts. 54 a 63 (Da Modificação de Competência). In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; FERREIRA FILHO, Manoel Caetano; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho; DOTTI, Rogéria Fagundes; e GILBERT MARTINS, Sandro (Coords.). Código Civil anotado, São Paulo: AASP/OAB, Paraná, 2019, pp. 108/109).

7 “A ação acessória será proposta no juízo competente para a ação principal”.
8“Como já se viu, a produção antecipada de provas não gera prevenção do juízo para a futura ação em que o resultado probatório venha a ser utilizado (n. 8.3, acima). Mas não se pode descartar a hipótese do posterior ajuizamento de outra ação de produção antecipada de provas, versando total ou parcialmente sobre o mesmo objeto. Nesse caso, há prevenção do juízo em que tramita a primeira ação (CPC/2015 (LGL\2015\1656), art. 59) – cabendo a reunião das ações (CPC/2015 (LGL\2015\1656), art. 58), nos limites do art. 55, § 1.º, do CPC/2015 (LGL\2015\1656)” (TALAMINI, Eduardo. Produção antecipada de prova no código de processo civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 260, São Paulo, out./2016, pp. 75-101).

9 “APELAÇÃO – PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS – INDEFERIMENTO DA INICIAL – EXTINÇÃO PRECIPITADA – OBJETO DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS DISTINTO DAQUELE DA AÇÃO DECLARATÓRIA – NECESSIDADE DE ANÁLISE DA PREVENÇÃO PARA POSTERIORMENTE SE EXAMINAR AS CONDIÇÕES DA AÇÃO – SENTENÇA ANULADA – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO” (TJSP, Ap. nº 1125663-98.2021.8.26.0100, Des. Rel. Carlos Abrão, 14ª Câmara de Direito Privado, j. 23/11/2022).

[1]0 “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA. PROCESSOS QUE TÊM POR OBJETO A DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA XETÁ. DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA. FACULDADE DO JULGADOR. 1. Nos termos do art. 55, § 3º, do CPC/2015, é possível a reunião de processos não conexos quando houver risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias. 2. No REsp. 1.524.045/RS, de minha relatoria, os fatos que motivaram a propositura da demanda foram assim delimitados: ‘Os autos versam sobre Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal contra a União e Fundação Nacional do índio (FUNAI), tendo por objeto a finalização do processo administrativo n° 1.25.009.000196/2007-11, que tem por escopo identificar e demarcar as terras indígenas da Tribo Xetá nos Municípios de Umuarama e Ivaté, Paraná, alegadamente muito atrasados e morosos. Já no presente recurso (AREsp 1.537.591/PR), distribuído a mim por dependência ao REsp 1.524.045/RS, extrai-se o seguinte: ‘Trata-se de pedido de produção antecipada de provas formulado inicialmente por Santa Maria Agropecuária LTDA, Jorge Alves Dias, Moacir Kleber Geraldi, Jose Fernandes da Silva e Mauro José Jordão, objetivando a realização de provas testemunhal, pericial e documental. Segundo a petição inicial, a FUNAI instaurou procedimento para demarcação de terra indígena (Processo Administrativo n. 3.478/99) e a área objeto de tal estudo abrangeria imóveis de propriedade dos requerentes, sendo necessária a produção antecipada de provas para demonstrar a inexistência de ocupação histórica dos índios Xetas nas referidas terras, com vistas ao ajuizamento de ação declaratória de nulidade do procedimento administrativo da FUNAI. Além da produção de provas, requereu-se a sustação do Processo Administrativo n. 3.478/99’. 3. Como se percebe, há identidade entre os fatos que fundamentam os pedidos de ambas as demandas, as quais, em última análise, correspondem à pretensão de demarcação das terras indígenas da Tribo Xetá nos Municípios de Umuarama e Ivaté, do Paraná. 4. Reconhecida, in casu, a prevenção pelo Relator com fulcro no art. 55, § 3º, do CPC/2015, não se cogita de nulidade na distribuição e ofensa ao princípio do juiz natural. 5. Agravo Interno não provido” (STJ, AgInt na PET no AREsp nº 1.537.591/PR, Min. Rel. Herman Benjamin, 2ª T., j. 11/12/2023).

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!