Opinião

Enchentes no RS: dever de guarda inerente à liquidação do sinistro

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23 de maio de 2024, 13h18

A enchente que assolou o Rio Grande do Sul trouxe inúmeros prejuízos, sobretudo à frota de automóveis do estado. Desde então, surgem questionamentos a respeito do dever de guarda e vigilância da seguradora, por intermédio de oficina referenciada.

Pois bem. Na visão do autor, não podem existir dúvidas. Isso porque a seguradora, juntamente com a oficina (responsabilidade solidária), é responsável pela guarda e conservação do bem, enquanto em poder do veículo, a teor da dicção do artigo 629 do Código Civil (CC), que assim dispõe:

[…]

Art. 652. Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.

[…] 

O Código Civil estabelece de forma clara o dever de guarda sobre o objeto depositado, bem como sobre a obrigação de restituição incólume. Essa responsabilidade é solidária, tanto da oficina, como da seguradora, por força do disposto no artigo 932, III, do Código Civil c/c artigo 7°, § único, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

A falha no dever de guarda — independente da origem do sinistro — vai de encontro à previsão do artigo 14 do CDC e, também, ao entendimento jurisprudencial, inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Veja:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. SEGURO DE DANO. DANOS AO VEÍCULO SOB A GUARDA DA CONCESSIONÁRIA ESCOLHIDA PELA SEGURADORA. DANOS ORIUNDOS DA FALTA DE ZELO NA GUARDA DO VEÍCULO (FURTO DE PEÇA E DEPREDAÇÃO). RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA SEGURADORA. DEMORA INJUSTIFICÁVEL PARA DEVOLUÇÃO DO VEÍCULO. LUCROS CESSANTES DEVIDOS. JUROS MORATÓRIOS A PARTIR DA CITAÇÃO. 1. A seguradora de seguro de responsabilidade civil, na condição de fornecedora, responde solidariamente perante o consumidor pelos danos materiais decorrentes de defeitos na prestação dos serviços por parte da oficina que credenciou ou indicou, pois, ao fazer tal indicação ao segurado, estende sua responsabilidade também aos consertos realizados pela credenciada, nos termos dos arts. 7º, parágrafo único, 14, 25, § 1º, e 34 do Código de Defesa do Consumidor. (REsp 827.833/MG, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 24/4/2012, DJe 16/5/2012) 2. O credenciamento ou a indicação de oficinas e concessionárias como aptas à prestação do serviço necessário ao reparo do bem sinistrado ao segurado induz o consumidor ao pensamento de que a empresa escolhida pela seguradora lhe oferecerá serviço justo e de boa qualidade. 3. Nesse passo, considerando-se que, a partir do momento em que o bem segurado é encaminhado à oficina cadastrada da seguradora, vinculada a ela, deixa o segurado de ter qualquer poder sobre o destino daquele veículo, que sai de sua guarda e passa, ainda que indiretamente, para o controle da seguradora, afirma-se a responsabilidade desta, seja pela má escolha da concessionária credenciada, assim como pela teoria da guarda 4. A partir do momento em que o consumidor entrega seu veículo à concessionária para reparo, ele confia naquela empresa, tanto no que respeita aos serviços que serão prestados diretamente no bem, quanto à sua guarda e incolumidade, exsurgindo dessa constatação que o contrato de depósito se encontra unido ao de prestação de serviço, porque imprescindível a permanência do bem no estabelecimento onde se efetuarão os consertos.  5. O Código Civil, em seu artigo 629, estabelece de forma clara o dever de guarda sobre o objeto depositado, bem como sobre a obrigação de restituir o bem da mesma forma que foi deixado, ou seja, neste dispositivo resta incontroverso que a não devolução do objeto importará na incidência da responsabilidade civil. 6. No caso concreto, o furto do tacógrafo e a destruição do para-brisa devem ser considerados má prestação do serviço, porque representaram falha na guarda do bem, defeito na conservação do veículo, da qual não se pode descuidar a contratante na realização de sua prestação. […] (REsp 1341530/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, j.em 27-6-2017)

Na mesma linha de pensamento, prevê a Súmula 130 do STJ: “A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento.”

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É certo que o contrato de depósito se encontra unido ao de prestação de serviço, porque imprescindível à permanência do bem no estabelecimento onde se efetuarão os consertos, sendo certo, também, que o consumidor acredita que a prestadora de serviços se responsabilizará quanto à sua guarda e incolumidade. A falha, por consequência, gera o dever de indenizar, consoante artigo 14, caput, do CDC.

O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a responsabilidade solidária de seguradora de veículos em razão de avarias ocorridas nas dependências de oficina credenciada / referenciada. Segundo STJ, o dever de cautela e a teoria da guarda são aplicados ao caso, conforme estabelece o artigo 629 do Código Civil, que trata da obrigação de restituir os bens da mesma forma em que foram entregues (RECURSO ESPECIAL Nº 1.341.530 – PR).

A propósito, cito o entendimento jurisprudencial:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REGRESSIVA PROPOSTA PELA SEGURADORA CONTRA O SUPOSTO CAUSADOR DOS DANOS. ALAGAMENTO DE ESTACIONAMENTO DO HOTEL ONDE VEÍCULO ESTAVA ESTACIONADO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. APELO DA SEGURADORA ALAGAMENTO DO ESTACIONAMENTO, EM RAZÃO DE FORTES CHUVAS, INCONTROVERSO. FATO PREVISÍVEL E EVITÁVEL QUE NÃO PODE SER CARACTERIZADO COMO CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR. HOTEL QUE ADMITE QUE O ALAGAMENTO LEVOU ALGUMAS HORAS PARA OCORRER. TEMPO SUFICIENTE PARA A ADOÇÃO DE MEDIDAS DESTINADAS A ASSEGURAR A INCOLUMIDADE DOS AUTOMÓVEIS ESTACIONADOS. AUSÊNCIA DE PROVA QUANTO À OBSERVÂNCIA DO DEVER DE GUARDA E ZELO PARA EVITAR O SINISTRO. RESPONSABILIDADE PELOS DANOS, PORTANTO, EVIDENCIADA. DENUNCIAÇÃO DA LIDE À SEGURADORA DO RÉU. CLÁUSULA CONTRATUAL QUE EXCLUI COBERTURA EM CASO DE DANOS PROVOCADOS POR TEMPESTADE. RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA DENUNCIADA AFASTADA. ÔNUS SUCUMBENCIAIS DA LIDE SECUNDÁRIA DEVIDOS PELO DENUNCIANTE. VALOR DO RESSARCIMENTO NÃO IMPUGNADO. ALÉM DISSO, POR SE TRATAR DE AÇÃO REGRESSIVA, O QUANTUM DEVIDO DEVE SER EQUIVALENTE AO MONTANTE PAGO PELA SEGURADORA AO SEU SEGURADO. JUROS DE MORA DEVIDOS DESDE A CITAÇÃO (ART. 405 DO CC) E CORREÇÃO MONETÁRIA INCIDENTE A CONTAR DA DATA DO DESEMBOLSO. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA 43 DO STJ. ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA. INVERSÃO. SUCUMBÊNCIA EXCLUSIVA DA PARTE RÉ. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS JÁ CONSIDERANDO O LABOR NA FASE RECURSAL. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0303401-41.2017.8.24.0018, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Cláudia Lambert de Faria, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 15-12-2020).

APELAÇÕES CÍVEIS. ALAGAMENTO EM ESTACIONAMENTO DE SUPERMERCADO. AVARIAS CAUSADAS EM VEÍCULO. FORÇA MAIOR NÃO CARACTERIZADA. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. Hipótese dos autos em que o consumidor teve danificado o seu veículo deixado sob a guarda e depósito de estacionamento devido a um alagamento que ocorreu no local. A responsabilidade civil dos réus é objetiva, nos exatos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. Caracterizado o dever de indenizar, pois o serviço prestado pelos réus foi falho, na medida em que não atentou para o dever de guarda e vigilância que lhes era exigível. Afastada a alegação de caso fortuito ou força maior, uma vez que a obrigação de guarda do bem se insere no risco da atividade desenvolvida pelos réus. Diante da ocorrência de fortes chuvas, cumpria à administradora do estacionamento adotar todas as medidas possíveis para assegurar que o ambiente disponibilizado ao público apresentava segurança aos automóveis estacionados, principalmente por se tratar de estacionamento localizado no subsolo, com maior propensão a inundações. DANOS MATERIAIS. COMPROVAÇÃO. Devida a condenação ao pagamento dos danos materiais, consubstanciados no valor do bem atingido pelo evento danoso e demais despesas decorrentes do incidente, eis que devidamente demonstrado o prejuízo. COBERTURA SECURITÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA DA CLÁUSULA DE EXCLUSÃO POR FORÇA MAIOR. Não configurada a excludente de responsabilidade por força maior, não há como incidir a cláusula de exclusão constante na apólice de seguro. De se ressaltar, ainda, que a seguradora inspecionou o local, avaliou as condições e instalações, assumindo, com isso, os riscos ao celebrar apólice de seguro com estabelecimento propenso a episódio adverso quando não tomadas as medidas necessárias, sendo incabível a alegação de que o segurado estaria se aproveitando da sua própria desídia. RECURSOS DESPROVIDOS. (TJRS – AC n. 70074673708, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em: 30-08-2017).

Com efeito, a partir do momento que o bem segurado é encaminhado à oficina credenciada/referenciada, vinculada à seguradora, deixa o segurado de ter qualquer poder sobre o destino daquele veículo, que sai de sua guarda e passa, ainda que indiretamente, para o controle da seguradora, nascendo, desde então, a responsabilidade objetiva da garantidora (e, também, oficina) pelos danos ocasionados (Apelação Cível n° 70082410325, TJ-RS, julgado em 24/10/2019).

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Acrescento, por pertinente, que a responsabilidade imputada decorre do próprio risco da atividade que desenvolve e independe da comprovação de culpa (responsabilidade objetiva), não sendo afastada nem mesmo com base na excludente de força maior ou caso fortuito, na medida em que possui a obrigação de assegurar a integridade do local e dos bens guardados.

Diante da ocorrência de fortes chuvas, cumpria à seguradora e à oficina adotar todas as medidas possíveis para assegurar que o ambiente disponibilizado ao público apresentava segurança aos automóveis estacionados, principalmente por se tratar de local com maior propensão a inundações.

Não obstante o volume pluviométrico acima do normal, competia à seguradora/oficina resguardar os veículos dos seus clientes estacionados sob sua responsabilidade. Até porque, ao primeiro indício de alagamento, deveria ter imediatamente removido os veículos ou, no mínimo, comunicado o fato aos consumidores para que estes retirassem seus automóveis estacionados no local, sob pena de responsabilidade.

Veja:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR. ART. 14 DO CDC. PROCEDÊNCIA PARCIAL À ORIGEM. INSURGÊNCIA DAS RÉS. VEÍCULO SOB GUARDA DE OFICINA INDICADA PELA SEGURADORA. INUNDAÇÃO DO ESTABELECIMENTO QUE CAUSOU NOVOS DANOS AO BEM. DEFEITO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO EVIDENCIADO. DEVER DE GUARDA E ZELO DO AUTOMÓVEL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA DA OFICINA E DA SEGURADORA. O credenciamento ou a indicação de oficinas e concessionárias como aptas à prestação do serviço necessário ao reparo do bem sinistrado ao segurado induz o consumidor ao pensamento de que a empresa escolhida pela seguradora lhe oferecerá serviço justo e de boa qualidade. […] A partir do momento em que o consumidor entrega seu veículo à concessionária para reparo, ele confia naquela empresa, tanto no que respeita aos serviços que serão prestados diretamente no bem, quanto à sua guarda e incolumidade, exsurgindo dessa constatação que o contrato de depósito se encontra unido ao de prestação de serviço, porque imprescindível a permanência do bem no estabelecimento onde se efetuarão os consertos. (REsp 1341530/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, j.em 27-6-2017). CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR. ALAGAMENTO DECORRENTE DE CHUVA. FATORES DA IMPREVISIBILIDADE E INEVITABILIDADE NÃO EVIDENCIADOS NOS AUTOS. COMPROVAÇÃO DOS DANOS PELOS DOCUMENTOS ENCARTADOS. EXTENSÃO DO PREJUÍZO QUE DEPENDE DA PRODUÇÃO DE PROVAS EM FASE DE LIQUIDAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSOS DESPROVIDOS. (TJSC, Apelação Cível n. 0300528-49.2015.8.24.0047, de Papanduva, rel. Ricardo Fontes, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 01-09-2020).

APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO INDENIZATÓRIA. AUTOMÓVEL APREENDIDO E ENCAMINHADO AO PÁTIO DE AUTARQUIA MUNICIPAL. ALAGAMENTO DO DEPÓSITO APÓS FORTES CHUVAS. PERDA TOTAL DO VEÍCULO DA DEMANDANTE. ALEGAÇÃO DA OCORRÊNCIA DE CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR. TESE RECHAÇADA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA CONCESSIONÁRIA CONFIGURADA. NEXO CAUSAL DEMONSTRADO. DEVER DE INDENIZAR. DANOS MATERIAIS DEVIDAMENTE COMPROVADOS. DANOS MORAIS AFASTADOS. ADEQUAÇÃO DOS CONSECTÁRIOS LEGAIS, DE OFÍCIO. APELO DO MUNICÍPIO PARCIALMENTE PROVIDO. RECURSO DA AUTORA NÃO ACOLHIDO. “Não possui fundamento a assertiva de caso fortuito ou força maior invocada pela concessionária recorrente, uma vez que já silente na jurisprudência pátria, que a ocorrência de chuvas fortes não têm o condão de ser consideradas caso fortuito ou força maior, pois eventos como estes nada possuem de imprevisíveis e incomuns”. (TJSC, Apelação Cível n. 0501329-73.2012.8.24.0018, de Chapecó, rel. Des. Luiz Fernando Boller, j. 11-07-2017) (TJSC, Apelação Cível n. 0501388-91.2012.8.24.0008, de Blumenau, rel. Júlio César Knoll, Terceira Câmara de Direito Público, j. 07-08-2018).

Conclui-se, portanto, que negar indenização à hipótese, além de violar o dever de guarda, que incumbia à seguradora/oficina, consubstancia flagrante ofensa à boa-fé contratual, impondo ao consumidor ônus desproporcional, sobretudo na atual situação de crise que assola o Rio Grande do Sul.

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