Controvérsias Jurídicas

Não existe ato de improbidade por violação a princípios gerais

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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16 de maio de 2024, 8h00

A Lei nº 14.230/2021 alterou substancialmente a Lei nº 8.429/1992 e pôs fim à antiga controvérsia sobre a natureza jurídica do ato de improbidade, situando-o no âmbito do direito administrativo sancionador.

Spacca

A Lei nº 8.429/92 era considerada uma legislação civil e, por conseguinte, descompromissada com os princípios penais da individualização da pena, responsabilidade subjetiva, avaliação normativa do nexo causal, ampla defesa, contraditório e taxatividade para a adequação típica. Tal distorção hermenêutica ignorava que muitas das sanções dessa lei são mais severas que as do próprio direito penal.

Como é cediço, um mesmo fato pode configurar ato de improbidade administrativa e crime previsto no Código Penal. É o que ocorre, por exemplo, com o delito de peculato. Surpreendentemente, verifica-se que são mais drásticas as consequências da Lei n. 8.429/92 (artigos 9º e 10) do que as do diploma penal (CP, art. 312, caput. Verifique-se que a pena mínima cominada para o peculato corresponde a apenas 2 anos de reclusão, o que possibilita ao agente uma série de benefícios como a suspensão condicional da pena (CP, art. 77), a sua substituição por pena restritiva de direitos (CP, art. 44) ou ter seu cumprimento iniciado em regime aberto (CP, art. 33, § 2º, c). Disso resulta que as chances de um autor de crime de peculato cumprir pena em regime de total segregação prisional são pequenas”. [1]

Não se pode olvidar que diplomas extrapenais, como a Lei de Improbidade cominam em muitos casos, penas mais drásticas que as do CP, some-se a isso o fato de que, sob a égide do diploma anterior, sua imposição vinha ocorrendo sem a proteção das garantias constitucionais.

Tal percepção não faltou a Marcelo Figueiredo, ao afirmar:

conquanto já tenhamos afirmado e ratificado que a lei em tela não possa ser qualificada como penal, na medida em que não estabelece restrições à pessoa, à liberdade pessoal (prevê a suspensão de direitos, multa civil, reparação civil de danos etc), dúvidas não pairam a propósito de seu cunho marcadamente restritivo de direitos. É lei que atrita, suspende, restringe direitos de várias categorias: patrimoniais, civis, eleitorais, funcionais etc. Em última análise, está cerceando legitimamente a liberdade dos cidadãos. Se é assim, devemos interpretá-la e aplicá-la (ao menos no que tange às cominações) como se fora autêntica norma penal. Exclusivamente, para fins de interpretação, cremos que podemos encará-la como norma penal. A importância de tal assertiva está na legalidade cerrada dos comportamentos judiciais e administrativos por ocasião de sua aplicação. Deve-se ter extrema cautela com os direitos fundamentais expressos e implícitos, com o devido processo legal, com a ampla defesa, com o contraditório – enfim, com as garantias constitucionais”.[2]

O desprezo às garantias constitucionais próprias do direito penal e do direito administrativo sancionador, ambos sujeitos aos mesmos princípios, acarretou excessiva ampliação do rol de acusados nas ações de improbidade, uma vez que se exigia dolo, mas mera voluntariedade, além do que o nexo causal se estabelecia mediante simples relação física de causa e efeito, em clara responsabilização objetiva. Adotava-se vetusto critério da eliminação hipotética desenvolvido em 1858 pelo austríaco Julius Glaser e aplicado em 1888 por Von Buri no Supremo Tribunal Alemão.

Bastava contribuir de qualquer modo para o resultado para se tornar réu, sem exigência de dolo ou má fé. A adoção da conditio sine qua non (equivalência dos antecedentes) tornava qualquer forma de contribuição, uma participação do ato de improbidade. Sem a necessidade de demonstração do dolo, a consequência era a responsabilidade objetiva de um número tão grande de pessoas, em um quase regressus ad infinitum.

Por exemplo, o diretor de uma empresa pública que participou de uma assembleia geral, na qual foi aprovado reequilíbrio contratual em obra pública pode ser incluído como réu na ação de improbidade, apenas por ter tomado parte da reunião, ainda que de boa-fé. Outro exemplo é o de um jurista que elabora um parecer defendendo a dispensa de licitação, o qual pode ser considerado partícipe da contratação apenas por ter expressado sua convicção jurídica.

Ineficácia da proteção jurisdicional

Disso resultou a ineficácia da proteção jurisdicional, com ações tramitando em primeira instância desde os anos 1990. Some-se a isso, a interpretação dos tribunais superiores, admitindo bloqueio automático dos bens de todos os acusados, sem exigência de periculum in mora, e em valores muito superiores ao do pedido principal tornava o oferecimento da ação, uma pena em si mesma.

Com isso, o polo passivo da ação de improbidade ficava repleto de réus que atuaram sem dolo, acarretando a morosidade da demanda, a qual raramente chegava ao trânsito em julgado. Os processos ficam estagnados, sem solução e sem serem extintos, ante a ausência de prescrição intercorrente. E todos os réus com bens bloqueados. Essa falta de perspectiva do desfecho da ação beneficia o agente ímprobo que recebe a punição por seus atos e prejudica o erário, na medida em que a reparação que nunca chega.

Em boa hora, portanto, a Lei nº 14.230/2021 corrigiu tais excessos, sendo o principal deles quanto à antiga previsão genérica do artigo 11. A antiga Lei nº 8.429/92 considerava ato de improbidade administrativa, “qualquer lesão a princípio da administração pública”.

Não é preciso maior esforço hermenêutico para concluir que se tratava de tipo inequivocamente inconstitucional. É certo que os artigos 9º e 10 da Lei de Improbidade, que definem enriquecimento ilícito e dano ao erário, adotaram semelhante técnica de interpretação analógica, com uma expressão genérica, à qual se segue uma enumeração casuística. [3]

Em ambos os dispositivos, há uma relação meramente exemplificativa. É importante ressaltar, no entanto, que, em nenhuma das duas hipóteses há que se falar em inconstitucionalidade, porquanto não existe grau de incerteza na tipificação legal. Ambas as condutas são perfeitamente delimitáveis, uma vez que qualquer pessoa sabe identificar o que é cause enriquecimento ilícito e dano ao patrimônio público. Isso também ocorre no CP em diversas passagens.

No artigo 157, por exemplo, o roubo é descrito como qualquer subtração mediante violência ou grave ameaça, sendo desnecessário e impossível enumerar um rol exaustivo todas as formas pelas quais pode se dar um assalto a mão armada. No art. 121 também, o CP se limita a descrever “matar alguém”, sendo obviamente desnecessário elencar todas as maneiras de se tirar a vida de alguém.

O caso do artigo 11, porém, é completamente diverso. Pretender que o Estado possa considerar ato de improbidade qualquer conduta que viole um genérico princípio constitucional caracteriza flagrante inconstitucionalidade porque não há taxatividade, nem precisão em sua definição legal, do que resulta insegurança jurídica e risco de abuso de autoridade.

Qualquer interpretação de princípio que destoe daquela que os órgãos de controle julguem a mais acertada corre o risco de configurar ato de improbidade. Por exemplo, em uma cidade onde há muitos cães circulando pelas ruas, o MP pode interpretar que tal fato representa violação ao princípio da eficiência e, por conseguinte, ato de improbidade.

Quem governa?

Do mesmo modo, um show patrocinado com verba pública com vistas a estimular o turismo local pode ser considerado afronta ao princípio da moralidade ou razoabilidade, pois existem áreas prioritárias a demandar o investimento público. Como se nota, a tarefa de administrar sai das mãos do chefe do Poder Executivo, eleito para tomar decisões discricionárias e vai para os órgãos de controle, os quais carecem de representatividade popular para estabelecer prioridades administrativas por meio do inquérito civil público.

Por essa razão, andou bem a Lei nº 14.230/2021 ao revogar a tipificação genérica do artigo 11 da Lei n 8.429/92, que nasceu inconstitucional, mas, por omissão do Poder Judiciário, permaneceu incólume por quase trinta anos. Permitir que um princípio geral constitua elemento do tipo de improbidade é uma grave inconstitucionalidade.

Os princípios são normas de amplo grau de abstração e generalidade, cujo conteúdo é vago e impreciso, sendo diretrizes com alto nível de indeterminação, feixes de regras gerais que se fundem para servir de alicerce geral do arcabouço normativo. Pretender que uma determinação tão vaga em seu conteúdo funcione como elementar de um tipo de improbidade é violar o princípio da legalidade.

Como lembra Rodrigo Capez, Robert Alexy

define princípios como mandamentos de otimização, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes, de que exurge a característica de poderem ser satisfeitos em graus variados, a depender das apontadas possiblidades, sendo que o âmbito das possiblidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Ao ordenarem que algo seja realizado na maior medida possível, os princípios não contêm um mandamento definitivo, mas apenas prima facie, isto é, representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas, o que não é determinado pelo próprio princípio. Disso decorre que os princípios não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das possiblidades fáticas.” [4]

Fábio Medina Osório, precursor dos estudos sobre direito administrativo sancionador, já alertava:

Não pode existir improbidade administrativa por meio de violação direta das normas da própria LGIA. Se aceitássemos tal hipótese, estaria aberta a via de uma grave insegurança jurídica. Os princípios podem ostentar funcionalidade normativa de controle da validez dos atos administrativos, mas jamais uma função autônoma de suporte aos tipos sancionadores da Lei Federal 8.429/92. Um equívoco corrente na doutrina é precisamente o de atribuir aos princípios essa funcionalidade de integrar a tipicidade da LGIA, sem referência a uma prévia intermediação legislativa, equívoco que induz ou é induzido por argumentações judiciais precariamente compreendidas em sua essência, num contexto de deficitária visualização das funções normativas das regras e princípios. A tarefa de embasar direta tipificação de improbidade ou transgressões penais não cabe às normas principiológicas. Essa é a dimensão democrática do dever de probidade, que se assenta no dever de obediência à legalidade e no respeito ao império da segurança jurídica, carecendo, como se dá no direito punitivo em geral, de um processo tipificatório complexo, que se integra por regras legais, valores e princípios jurídicos. (…) No caso em exame, a improbidade requer um processo laborioso e sofisticado, considerando a estrutura das normas que integram a LGIA. Não se pode, por razões de segurança jurídica, legalidade, tipicidade e fundamentos do Estado Democrático de Direito, imputar improbidade administrativa a alguém, formulando uma acusação de vulneração isolada dos ditames de qualquer dos textos da LGIA, porque a incidência desta depende, de modo visceral, da prévia violação de outras normas. Trata-se, aqui, de formular uma exigência de fundamentação democrática da imputação, assegurando-se o direito ao devido processo legal e, em especial, à ampla defesa[5].

Na mesma linha, cumpre também trazer a crítica de Marcelo Figueiredo:

Deveras, novamente a lei peca pelo excesso ao equiparar o ato ilegal ao ato de improbidade; ou, por outra, o legislador, invertendo a dicção constitucional, acaba por dizer que ato de improbidade pode ser decodificado como toda e qualquer conduta atentatória à legalidade, lealdade, imparcialidade etc. Como se fosse possível, de uma penada, equiparar coisas, valores e conceitos distintos. O resultado é o arbítrio. Em síntese, não pode o legislador dizer que tudo é improbidade” [6]

Revogada a previsão genérica do artigo 11 da LIA, operou-se verdadeira abolitio criminis adaptada ao direito administrativo sancionador, a qual segue os mesmos critérios do direito penal. Assim é que o artigo 5º, XL, da CF impõe retroatividade para todos os fatos anteriores, inclusive aqueles com decisão transitada em julgado.

Não se trata, no caso, de mera mudança de orientação legislativa, mas reconhecimento de flagrante inconstitucionalidade. A tipificação genérica é afrontosa aos princípios constitucionais do direito penal e administrativo sancionador. Deste modo, qualquer decisão que imponha pena com base em lei inconstitucional precisa ser invalidada, ainda que já operado o trânsito em julgado. Importante lembrar que a Lei de Improbidade não é regida pelo direito administrativo, mas pelo direito administrativo sancionador, mais próximo ao direito penal.

Mesmo ultrapassado o prazo bienal da ação rescisória, por se tratar de matéria de ordem pública, o Poder Judiciário pode, em ação anulatória, proferir a invalidação da condenação proferida em antinomia aos princípios constitucionais derivados do Estado democrático de Direito e da dignidade da pessoa humana, especificamente, o da reserva legal.

Como lembra Bandeira de Mello:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.[7]

Contraditoriamente, ao incriminar genericamente a violação de princípios gerais da administração, a Lei nº 8.420/92, em sua antiga redação, afrontou o maior deles, qual seja, o da dignidade humana.

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[1] CAPEZ, Fernando. Limites Constitucionais à Lei de Improbidade. SP: Saraiva, 2010, p. 202.

[2] FIGUEIREDO. Marcelo Probidade Administrativa. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 329/330.

[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 28ª ed. SP: Saraiva, 2024, p. 31;

[4] CAPEZ, Rodrigo. Prisão e Medidas Cautelares Diversas. SP: Quartier Latin, 2017, p. 50 e 51.

[5] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. P.275-277.

[6] FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade administrativa. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. P. 125.

[7] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Adminstrativo, 5ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., p. 451.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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