Público & Pragmático

Horizonte regulatório para fundações de apoio na saúde de São Paulo

Autor

  • Carolina Filipini Ferreira

    é especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP. Membro efetivo da Comissão ESG do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial e professora da Faculdade Unità. Advogada do escritório Curi & Dametto Advogados.

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5 de maio de 2024, 8h00

A organização administrativa possui a estrutura formada pelas entidades e pelos respectivos órgãos públicos com a aplicação das técnicas de repartição de competências da descentralização e da desconcentração, que têm como principal objetivo possibilitar a eficiência e a especialidade na prestação dos serviços públicos.

Para além da organização da Administração Pública direta e indireta, a estrutura apresenta ramificações nos instrumentos jurídicos que são celebrados com o que parte da doutrina administrativista denomina por entes paraestatais ou entes de colaboração, que, inclusive, apresentam especificações em termos setoriais.

Uma das ramificações setoriais é em relação às instituições de ensino superior (IES) e às instituições científicas, tecnológicas e de inovação (ICTs), que estabelecem relações com as fundações de apoio. A existência de fundações de apoio tem fundamento na Lei Federal nº 10.973, de 2004, com as alterações promovidas pela Lei Federal nº 13.243, de 2016.

Trata-se de uma esfera estratégica de aproximação das IES e das ICTs com o setor produtivo na formação de uma atuação em rede, pois as fundações de apoio promovem a gestão administrativa e financeira de convênios, de contratos e de instrumentos congêneres entre as IES e as ICTs com outras IES, ICTs, bem como com as demais entidades públicas, com empresas que promovem pesquisa e desenvolvimento e com as organizações da sociedade civil.

A previsão dentro do marco legal da Ciência, Tecnologia e Inovação estimulou a criação de fundações de apoio ao redor das IES e ICTs nos três níveis federativos.

De acordo com Thiago Marrara, em geral, as fundações de apoio são criadas por docentes e/ou pesquisadores para o aperfeiçoamento do ensino e da pesquisa, dando agilidade às atividades acadêmicas, científicas e de inovação, na medida em que facilitam a contratação de pessoal, de serviços, de obras e de bens sem concurso e licitação pública, mas por processos simplificados em regulamentos de contratação e de compras, além de facilitarem o desempenho simultâneo de outras atividades pelos docentes em dedicação exclusiva e a realização de cursos de extensão e de especialização mediante cobrança (1).

Em razão das vantagens apontadas, Thiago Marrara sustenta a necessidade de que cada ente federativo regule as relações de suas IES e ICTs com as fundações de apoio a fim de evitar desvirtuamentos por fundações que, apesar de se dizerem de apoio, na verdade, em nada beneficiam a instituição de ensino e/ou científica e com ela concorrem, em patente conflito de interesses (2).

Além disso, como se está diante de uma ramificação setorial da Administração Pública, importante as ponderações em caráter amplo de Gustavo Justino de Oliveira, no sentido de que é imprescindível a existência de medidas que combatem o corporativismo do funcionalismo com a previsão de regulação sofisticada, que esteja alinhada aos parâmetros do modelo de gestão da governança pública, que impõe a adoção das técnicas pela busca de resultados alinhadas com mecanismos democráticos, de padrões éticos de comportamento e de inovação (3).

Em âmbito federal, a Lei nº 8.958, de 1994, dispõe sobre o regime jurídico das instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica e as fundações de apoio, que, inclusive, está em processo de discussão sobre a modernização do texto normativo para adequação da realidade que se estabeleceu na atuação das fundações de apoio, que desempenham um papel significativo e consolidado com as instituições federais de ensino e científicas (4). No entanto, em âmbito estatual e em âmbito municipal, a matéria depende de lei específica no exercício da competência legislativa.

Em SP

No estado de São Paulo, sobreveio a Lei nº 17.893, de 2 de abril de 2024, que dispõe sobre a normatização e a consolidação dos vínculos da Administração Pública do Estado com as fundações civis de saúde das comunidades científicas de suas universidades públicas e hospitais universitários (5).

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Hospital, médico, plano de saúde

Na justificativa, o projeto que antecedeu a lei apontou a necessidade de adequação das ações cooperativas entre as fundações civis de saúde já instituídas e o estado de São Paulo mediante o estabelecimento de parâmetros, objetivos e obrigações para a prestação de serviços públicos de saúde céleres e de qualidade à população paulista, resguardado o interesse público aos usuários do Sistema Único de Saúde (6). Além disso, a justificativa enfatizou a necessidade de adequação da gestão dos hospitais universitários pela harmonização do atendimento hospitalar com o ensino, pesquisa e inovação (7).

Para Carlos Ari Sundfeld, a Lei Estadual nº 17.893, de 2024 reconheceu os vínculos formados ao longo do tempo entre as fundações de apoio de saúde e a Administração Pública paulista, que careciam de regulamentação e estabeleceu condutas jurídicas norteadoras de transparência e de controle (8).

Ao se analisar as regras previstas na referida lei estadual, é possível perceber a adoção de mecanismos de governança e de conformidade, que promovem o aprimoramento da regulação da gestão, atendendo-se em parte às ponderações dos administrativistas outrora citados, mas ainda carece de ênfase democrática.

Além disso, verifica-se a opção do legislador em regulamentar a relação das fundações de apoio apenas na área de saúde, o que não promove uma efetiva integração e ainda não resolve a falta de regulação das fundações de apoio nas áreas do ensino, pesquisa, ciência, tecnologia e inovação no estado de São Paulo.

De todo modo, a lei estadual traz um norte regulatório para o fomento ao sistema de saúde dos hospitais universitários, que são gerenciados por fundações de apoio e que demandam a revitalização e a ampliação dos serviços médicos para a prática de ações de assistência à saúde das comunidades que usufruem de seus serviços. O principal norte regulatório que se depreende é a definição da área de atuação com o contorno jurídico das atividades que tais fundação desempenham com a preservação de autonomia.

Panorama do regime jurídico da lei estadual

Em termos panorâmicos, a lei estadual consolida os vínculos formados entre as fundações civis de saúde e as universidades públicas e hospitais universitários paulistas.

Importante enfatizar que, embora a lei se utilize da nomenclatura de fundações civis de saúde, enquadram-se as fundações de apoio, tanto que a justificativa do Projeto de Lei nº 1719/2023 remete à atuação das Fundações de Apoio na área de saúde.

Ainda, o artigo 2º da lei estadual faz a definição de que as fundações civis de saúde são aquelas que atuam em cooperação em projetos e atividades de ensino, pesquisa, extensão, científica e tecnológica para o aprimoramento da gestão administrativa e financeira e incremento na qualidade dos serviços de saúde de referência dos hospitais universitários.

A lei estadual prevê que os vínculos formados entre as fundações civis de saúde e as universidades públicas e hospitais universitários estejam de acordo com os instrumentos regulados e celebrados nos termos da referida lei, conferindo prazos de adaptação previstos no parágrafo único do artigo 8º quanto aos regulamentos das fundações (prazo de 120 dias após a entrada em vigor da lei) e no parágrafo único do artigo 11 quanto aos instrumentos (final do exercício seguinte à entrada em vigor da lei).

O que se percebe é que a lei não instituiu um instrumento específico, o que ela faz é determinar que os instrumentos celebrados passem a observar diretrizes e obrigações. Isso porque os instrumentos utilizados entre as fundações de apoio de saúde e as instituições públicas paulistas são os previstos no regime jurídico administrativo referentes aos convênios, aos acordos de cooperação, aos contratos de gestão na hipótese de qualificação das fundações como organizações sociais e demais instrumentos congêneres.

Nesse sentido, além da observância da legislação específica destes instrumentos, no âmbito do estado de São Paulo, ao que parece, as fundações de apoio de saúde precisarão observar a Lei nº 17.893, de 2024.

Em mecanismos de governança, a lei estadual assegura a autonomia científica, estratégica, técnica, financeira, contratual, patrimonial e jurídica na tomada de decisão pelas fundações civis de saúde, estabelecendo-se os parâmetros no exercício desta autonomia, nos termos do artigo 4º e do artigo 5º da lei.

O exercício desta autonomia não pode conflitar e deve estar em consonância com a preservação da autonomia universitária prevista no artigo 207 da Constituição, conforme prevê o §3º do artigo 1º da lei estadual. Esta parece ser a grande contribuição da lei estadual ao detalhar o contorno de atuação das fundações de apoio de saúde em cooperação com as universidades públicas e os hospitais universitários, garantindo a autonomia que lhe é inerente.

Além disso, o artigo 6º da lei estadual prevê impedimentos quanto ao pagamento de remuneração por recursos da fundação de apoio com ocupantes de cargos em comissão nos respectivos hospitais universitários, com cônjuges, companheiro(a) ou parentes até terceiro grau ou com empresas, cujos sócios estejam enquadrados dentre as situações anteriormente previstas de cargos em comissão e relações de parentesco e afetivas.

Nesse sentido, verifica-se a previsão de um parâmetro para a preservação da impessoalidade, da moralidade e da eficiência na gestão administrativa.

Quanto à transparência e à conformidade, o artigo 7º da lei estadual prevê a obrigação da fundação civil de saúde divulgar os instrumentos e os respectivos aditivos, que estabelecem os vínculos com as universidades e os hospitais universitários, bem como divulgar os relatórios anuais, os pagamentos relativos ao pessoal com detalhamento de eventuais pagamentos aos agentes públicos e pessoas físicas e jurídicas por prestação de serviço de qualquer natureza, além de divulgar as prestações de contas.

Tal divulgação precisa ocorrer também nos sítios eletrônicos das universidades públicas e dos hospitais universitários.

O artigo 8º da lei estadual estabelece a obrigação da fundação de apoio na utilização de procedimentos previstos em regulamentos de contratações de bens, obras e serviços.

A lei não prevê a contratação de pessoal, mas se enfatiza que a existência de regulamento de contratação de pessoal também é uma obrigação inerente ao regime jurídico administrativo, que faz derrogações na atuação das fundações com vínculos com instituições públicas, inclusive por recomendações e exigências dos órgãos de controle.

Derradeiramente, o artigo 10 da lei estadual faz a ressalva de que o regime jurídico nele previsto não se aplica à captação, recebimento e movimentação direta de recursos financeiros oriundos de fontes diversas.

O inciso VII do artigo 5º da lei estadual estabelece que outros recursos são os decorrentes por ajustes diversos dos regulados pela lei e celebrados com entidades privadas, entidades internacionais ou outras entidades estatais. O motivo colocado no dispositivo de afastamento de sua aplicação para outras fontes de recursos é em razão da preservação da autonomia da fundação de apoio.

Todavia, é preciso considerar que, se uma das pretensões da lei estadual é aprimorar a transparência, parece que há uma abertura no sentido contrário. A transparência advém do interesse público, cuja discricionariedade tem que ser mantida na motivação das decisões, porém, não afasta o dever de transparência, inclusive, de outras fontes de recursos que precisam ser utilizadas para a finalidade do ensino, da pesquisa, da ciência, da tecnologia e da inovação em saúde.

Mesmo porque a finalidade da fundação de apoio é justamente o aperfeiçoamento da gestão. No caso da lei em análise, a finalidade é o desenvolvimento da assistência à saúde dos hospitais universitários em integração com a ciência, tecnologia e inovação. Nesse sentido, eventuais fontes de recursos das fundações de apoio precisam ter a destinação aos docentes, aos pesquisadores e em benefício dos usuários dos serviços.

Com isso, o dever de transparência, o alinhamento das atividades, a existência de um regime de deveres e de responsabilidades precisa existir de todo modo, em atenção à governança pública com ênfase democrática, pois o controle social precisa ser garantido à comunidade científica das universidades públicas e dos hospitais universitários. Sendo a ênfase que se espera da regulamentação por decreto, determinada pelo artigo 13 da lei estadual, que é necessária para o devido entendimento e aplicação das disposições nela contidas, bem como se espera que a respectiva regulamentação seja precedida de consultas públicas e de audiências públicas para o debate da matéria.

Portanto, é possível perceber que a Lei nº 17.893, de 2024, apresenta um horizonte regulatório das fundações de apoio na área de saúde das universidades públicas e dos hospitais universitários paulistas com a contribuição no estabelecimento do espoco de atuação destas fundações e garantia de autonomia decisória, mas que ainda demanda uma integração ampla no modelo de gestão da governança pública e ainda levanta a necessidade do legislador paulista também se preocupar com as fundações de apoio que atuam de forma abrangente no ensino, na pesquisa e na extensão universitária, inclusive acumulando a gestão da assistência à saúde.

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1 MARRARA, Thiago. Manual do direito administrativo: fundamentos, fontes, princípios, organização e agentes – VOLUME 1. 3. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022, p. 210/211.

2 Idem, p. 212.

3 OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Administração pública Brasileira e os 30 anos da constituição de 1988: o combate ao excesso de corporativismo do funcionalismo por meio do dever de qualidade do serviço público. In: Direito Administrativo Pragmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 47/51.

4 Importante salientar que já há advocacy para a alteração da lei das fundações de apoio federais a fim de modernizá-la. Nesse sentido: CONFIES envia ao Congresso proposta de novo marco legal das Fundações de Apoio das IFES e ICTs. Notícias. Brasília: CONFIES, 30 de agosto de 2023. Disponível em < https://confies.org.br/institucional/confies-envia-ao-congresso-proposta-de-novo-marco-legal-das-fundacoes-de-apoio-das-ifes-e-icts/> Acesso em 01 mai. 2024.

5 SÃO PAULO. Lei nº 17.893, de 02 de abril de 2024. Dispõe sobre a normatização e consolidação dos vínculos da Administração Pública do Estado com as fundações civis de saúde das comunidades científicas de suas universidades públicas e hospitais universitários. São Paulo: Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 2024. Disponível em < https://www.al.sp.gov.br/norma/209274> Acesso em 01 mai. 2024.

6 SÃO PAULO. Projeto de lei nº 1719/2023. Estabelece a normatização e consolidação dos vínculos da Administração Pública do Estado com as Fundações Civis de Saúde das comunidades científicas de suas universidades públicas e hospitais universitários. São Paulo: Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 2023. Disponível em < https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000540712> Acesso em 02 mai. 2024.

7 SUNDFELD, Carlos Ari. São Paulo adota novo formato de reforma da gestão administrativa. Blogs, Fumus Boni Iuris. O Globo. São Paulo: O Globo, 2024. Disponível em < https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2024/04/carlos-ari-sundfeld-sao-paulo-adota-novo-formato-de-reforma-da-gestao-administrativa.ghtml> Acesso em 01 mai. 2024.

Autores

  • é mestre Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas pela FCA/Unicamp, especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP e professora de Direito Administrativo da Faculdade Unità. Advogada e consultora.

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