Embargos Culturais

Direito e literatura: a posse de Evandro Lins e Silva na Academia Brasileira de Letras

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5 de maio de 2024, 8h00

Evandro Lins e Silva (1912-2002) tomou posse na Academia Brasileira de Letras em 11 de agosto de 1998. Sucedeu Bernardo Ellis. Foi recebido por Josué Montello. Seu discurso de posse é depoimento franco e eloquente da relação que há entre o jurídico e o literário. É um manifesto otimista sobre as aproximações entre Direito e literatura. É o tema dos embargos culturais dessa semana.

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Lins e Silva exemplificou, em seu discurso, como convivem advogados e literatos. Trata-se também de uma profunda reflexão sobre sua vida, e sobre seu envolvimento, como advogado, como professor e como político, nas lutas sociais que o Brasil vivenciou ao longo do século XX. Lins e Silva nasceu no Piauí, em Santa Isabel, e pontificou no Rio de Janeiro, e em Brasília, onde atuou no Supremo Tribunal Federal. “O salão dos passos perdidos”, seu livro de memórias, é convite para conhecer o Brasil e a luta de um grande brasileiro. Vale a pena. Não sei de edições recentes, mas há vários exemplares na Estante Virtual.

Com referência ao fardão e à espada, que simbolizam as vestes, Lins e Silva enfatizou que sua posse na ABL ensejava o reconhecimento de sua carreira, e sua defesa pelas liberdades. Viveu intensamente a cultura brasileira, cultuando língua e literatura nacionais, como pontos de inflexão de seus trabalhos como advogado, magistrado, publicista e professor. Enfatizou também sua atuação como Procurador-Geral da República e Ministro do Supremo Tribunal Federal, cargos mais altos que ocupou:

“Como sabeis, antes da veste talar, que hoje envergo, por vossa magnanimidade, três outras usei, a beca de advogado, a beca de procurador geral da República e a toga de ministro do Supremo Tribunal Federal, e a elas devo, sem dúvida, influência muito importante, senão decisiva, no verdadeiro concurso de títulos que é a escolha do sucessor de um titular da Academia Brasileira de Letras. Confesso que entre as aspirações que poderia normalmente alimentar não figurava a de ocupar, algum dia, uma cadeira de membro efetivo deste Cenáculo”.

Insistiu que havia uma relação fortíssima entre o Supremo Tribunal Federal e a Academia Brasileira de Letras. Ressaltou essa conexão história, e listou exemplos de juristas literatos, a exemplo de Ministros do STF que atuaram na ABL. Insistiu que a contribuição entre as instituições era mútua. O acadêmico enfatizou como direito e literatura permanentemente se entrelaçam:

“Há mesmo entre a Academia e o Tribunal uma certa e antiga contiguidade: quando os juízes não entraram na Academia, foram os acadêmicos que entraram no Tribunal. Pois não nasceu a Academia, antes de qualquer outra, da inspiração de Lúcio de Mendonça? Morto este, a Academia vai buscar-lhe, como sucessor, o grande Pedro Lessa. Depois, são os acadêmicos João Luís Alves, Ataulfo de Paiva e Rodrigo Octavio que passam a honrar as bancas da Corte Suprema. Hoje, a lista está acrescida de Cândido Mota Filho, Hermes Lima e Oscar Dias Corrêa, ministros do Supremo Tribunal, professores de direito, os dois primeiros falecidos e o último ainda honrando uma das Cadeiras desta Casa, todos ex-ministros de Estado e autores de valiosas obras de direito e de ensaios.”

Para o acadêmico a importância dos advogados na academia tem alguma relação com o imaginário da afinidade da expressão jurídica com a oratória e com a escrita. Há uma fonte mútua de atuação. Advogados inegavelmente contribuem para o avanço da literatura, ainda que sob a forma de uma expressão mais marcadamente jurídica, e menos acentuadamente criativa. A cultura jurídica, segundo Lins e Silva, também estaria contida na cultura literária.

Há um estilo forense, que o acadêmico empossado criticava, mas que que não seria regra; o advogado também se expressaria literariamente de forma satisfatória. Por outro lado, ainda que se tenha necessidade de um discurso jurídico eficaz há riscos (comprovados) de estilos marcados pela aridez e pela rigidez, substancialmente afastados de uma arte literária propriamente dita. Segundo Lins e Silva:

“O ‘estilo forense’, normalmente, não seduz; é produzido, em geral, de modo tosco, rotineiro, cheio de lugares-comuns, fórmulas repetitivas, sem nenhum encanto. É o que San Thiago Dantas chamava ‘boca de foro’, o jargão profissional, que coloca em fôrma os modelos adotados nos trabalhos judiciários. A essa gíria os iconoclastas costumam aplicar a sátira de Lima Barreto: ‘Para eles (os doutores javaneses) é boa literatura a que é constituída por vastas compilações de cousas de sua profissão, escritas laboriosamente em um jargão enfadonho com fingimento de língua arcaica’ (…). Dessa caricatura fugiram, para honra e glória da profissão, advogados inúmeros, a começar pelo maior de todos, o nunca assaz lembrado Rui Barbosa, cuja obra é motivo de orgulho para todos nós e paradigma para quem quiser escrever com correção e brilho a língua portuguesa.”

A advocacia, segundo Lins e Silva, exige conjunto de habilidades argumentativas e discursivas que, colocadas em prática, resultam em contribuições literárias significativas. A eloquência forense, nesse sentido (e Lins e Silva foi um brilhante advogado do júri), comprova esse postulado.

O leitor do discurso (ou o ouvinte no dia em que foi proferido) certamente capta a profundidade emocional do orador. Há um pano de fundo na fala que sugere uma ligação entre Justiça e literatura. A cultura nacional, cultivada na academia, é também um subproduto das intersecções entre as atividades forenses e literárias.

Ilustrando os juristas na academia, Lins e Silva mencionou Rui Barbosa e Lúcio de Mendonça. Não se pode perder a lembrança da contribuição de Rui como esteta e estilista da língua, ainda que levado a um nível superlativo, a exemplo (e o exemplo é meu) da contenda com Carneiro Ribeiro, a propósito da redação do Código Civil.

Há um apego para com um aspecto utilitário do domínio da arte literária, por parte do jurista. É que, sugere Lins e Silva, há espaço para uma ênfase na capacidade argumentativa, a partir da utilização de técnicas de fundo artístico e criativo, que são fornecidas pelo domínio da arte da escrita. O jurista arrisca-se em um estilo rotineiro, sem qualquer encanto literário. O jurista talentoso, por outro lado, poderia se afastar desse estilo verborrágico e caricato. O texto forense, assim, seria, também em sua extensão, um texto literário.

Lins e Silva insistiu em referências ao estilo de Rui Barbosa, a quem imputou um perfeito domínio do idioma, cuja leitura recorrente parecia recomendar, para quem pretendesse inspiração para escrever bem, mesmo no direito.

Lins e Silva invocou a semelhança entre uma narrativa feita para o tribunal e a narrativa literária propriamente dita. O objetivo é o mesmo: a conquista da adesão da audiência, isto é, um magistrado que julgue a causa em favor de quem argumenta ou um leitor que se convença da qualidade de um texto literário. No júri (insista-se, onde Lins e Silva pontificou) esse postulado é comprovado. Direito e literatura (na forma talvez mais objetiva de advocacia e literatura) seriam, assim, nichos de complementariedade.

O STF (onde foi magistrado) e a ABL (onde era então empossado) seriam marcados por uma “certa e antiga contiguidade”. Magistrados e acadêmicos, segundo Lins e Silva frequentemente cruzavam caminhos. A fundação da ABL é um exemplo, inclusive porque Lúcio de Mendonça, membro fundador, era, à época, ministro no STF. Para Lins e Silva, menos do que uma coincidência, o que se comprova é um fato histórico marcado por fortíssimo simbolismo. As trajetórias de Rodrigo Otávio (que foi Consultor-Geral da República, autor do célebre parecer sobre a construção da estátua ao Cristo Redentor, e que foi também Ministro do STF) e de Pedro Lessa (também renomado filósofo do direito, além de Ministro do STF) também ilustram esse argumento.

Haveria, assim, uma convergência entre uma (então) mencionada sabedoria jurídica do STF e o (também então) fortíssimo intelectualismo que marcaria a ABL. Para Lins e Silva, tanto o STF como a ABL mostravam-se como guardiões de valores nacionais, ainda que sob enfoque distinto, culturais e constitucionais.  Seriam instituições que atuariam de modo paralelo, na construção de um modelo cultural de apelo nacional. Atuariam, STF e ABL, Direito e literatura, como forças complementares na fixação de um estilo cultural nacional.

As presentes observações são lançadas como nota de rodapé ao trabalho de Fábio Coutinho, já aqui comentado, relativo à presença de juristas na ABL. Fábio é um jurista literato. Tem uma carreira sólida, como jurista e como literato, nesse último caso também como presidente da Academia Brasiliense de Letras. É a Fábio Coutinho a quem dedico a presente crônica literária.

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