Direito Civil Atual

Direito Civil contemporâneo: autonomia e estatuto epistemológico

Autor

17 de junho de 2024, 11h22

“A ampliação dos espaços do direito privado não parece diminuir”: inúmeras reflexões decorrem dessa frase extraída da obra “Direito Civil Contemporâneo — estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais”, do professor da USP Otavio Luiz Rodrigues Jr. [1]

ConJur

Não é demais lembrar que, nesse alargamento de espaços, o Direito Civil, para além das relações privadas, investiga, inclusive, o direito público (sobretudo, a tão antiga — e não menos conhecida — dicotomia público x privado e, mais recentemente, o trato das relações privadas com os direitos fundamentais).

Esse movimento do Direito Civil ocorre sem prescindir da dogmática – uma tradicional e outra contemporânea — para resolver casos concretos dentro da própria disciplina e, de forma direta ou supletiva, dentro das demais disciplinas. Isso porque o Direito Civil é, por assim dizer, uma linguagem universal, um elo comum e, portanto, necessário, histórica e contemporaneamente, à própria Ciência do Direito.

Tal raciocínio fica melhor compreensível nas palavras precisas do professor António Menezes Cordeiro:

Pense-se na sindicância dos exercícios individuais por meio da axiologia do sistema, com recurso ao princípio da boa-fé. No plano externo, o Direito Civil está atento a todas as novidades apuradas nas demais disciplinas. Acolhe a proteção da parte débil, por meio dos aperfeiçoamentos conseguidos no Direito do Consumo e no Direito do Trabalho. Aprofunda a tutela da confiança, protagonizada no Direito Comercial. Controla o exercício de direitos potestativos, com sensibilidade aos direitos dos administrados, no Direito Público. […] E, naturalmente, modela e concretiza os direitos de personalidade e a defesa das pessoas, usando as lições do moderno Direito Constitucional. […] O Direito Civil dos nossos dias as conhece, estuda, valida e repercute em todas as áreas jurídicas, sem prejuízo, naturalmente, de estas as ponderarem e adaptarem aos valores respetivos.” [2]

Elos

Interessantes os elos, ainda hoje muito bem mantidos e respeitosos, entre o Direito Civil e o Direito Penal, apenas para mencionar dois monumentos cuja gênese remonta a — em linhas gerais — desde que o mundo é mundo. Nem sempre a dogmática daquele se aplica acriticamente a este e vice-versa — o mesmo se diga da aplicação acrítica da dogmática de algumas disciplinas a outras, sob pena de desmoronamento de importantes referenciais teóricos de institutos oriundos tanto do Direito Civil quanto das demais disciplinas de direito privado ou público.

Bem observou a 2ª Turma do STF no julgamento da Ação Penal 1.015/DF, da relatoria do ministro Edson Fachin, por ocasião da análise da aplicação (ou não) de uma solução civil à responsabilidade civil do Estado ou do agente público, que:

“[A] questão que aqui se coloca encerra um fenômeno parecido com o que ocorreu com a chamada constitucionalização do direito civil, movimento que viabilizou avanços sociojurídicos importantes, mas que não pode ser banalizado. Aqui, o que se pretende é conferir uma solução civil para um problema constitucional, de índole jurídico-política, sem a devida contextualização. A rigor, a dogmática civil tem suas peculiaridades, e muitas vezes a leitura constitucional acrítica de instituições civis pode ensejar, como alerta Otávio Rodrigues Jr., uma perda de referenciais teóricos do Direito Civil contemporâneo (RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios, p. 56).” [3]

A contextualização mencionada nesse voto é imprescindível para que não se incorra na sobreposição impensada de dogmáticas, para que não se descrevam situações de fato incompatíveis com a fattispecie abstrata, como adiante esclareceu o eminente relator:

 “Aqui, ao aplicarmos acriticamente a lógica civil ao problema da violação a valores democráticos insculpidos na Constituição, estamos perdendo o referencial teórico de institutos político-constitucionais. Neste sentido, apesar da unidade do Direito, é indiscutível que determinados redutos da ordem jurídica seguem lógicas distintas. E assim, apesar de termos construído um sistema de responsabilidade civil do Estado e do agente público amparado na dogmática civil, não é possível lançar mão da sistemática privatista para resolver toda e qualquer falha no funcionamento do aparato estatal.”  [4]

A abertura do Direito Civil à Ciência Jurídica e às demais disciplinas não o faz dispensar novos estudos sobre sua epistemologia, sua metodologia, sua função, sua organização, suas balizas objetivas e materiais e suas relações interdisciplinares.

A essa epistemologia jurídica ou, melhor dizendo, a esse estatuto epistemológico – se deve a proximidade do Direito Civil com a verdade e com os reclamos típicos da (hiper)complexidade social contemporânea, ainda que precise enfrentar dificuldades de encaixe nos modelos atuais da cientificidade, [5] já que a dogmática jurídica como um todo (e não somente a do Direito Civil) tem uma racionalidade peculiar que se formou sobre importantes bases históricas, cujo abalo não se fará sem um alto preço para a ordem jurídica.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

___________

[1] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo – estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

[2] PINTO MONTEIRO, António. Apresentação. In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo…, p. xviii.

[3] AP 1015, Relator: Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 10-11-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-053 DIVULG 18-03-2021 PUBLIC 19-03-2021 REPUBLICAÇÃO: DJe-077  DIVULG 23-04-2021  PUBLIC 26-04-2021 REPUBLICAÇÃO: DJe-079  DIVULG 27-04-2021  PUBLIC 28-04-2021.

 

[4] Idem.

[5] V.: GUERRA FILHO, Willis Santiago. Estatuto epistemológico da pesquisa jurídico-dogmática. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15900. Acesso em: 15 mai. 2024.

 

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!