Opinião

Distinção entre o dolo eventual e a chamada culpa consciente

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9 de julho de 2024, 16h20

É certo que a discussão doutrinária a respeito da distinção entre o dolo eventual (artigo 18, inciso I, do Código Penal) e a chamada culpa consciente é analisada e discutida por todos os bacharéis do Direito.

Avulta curiosidade que, mesmo uma questão tão discutida e tão conhecida, ainda parece não estar bem delimitada jurisprudencialmente.

Ilustrando, no exame do Recurso Especial nº 1.790.039 [1], o Superior Tribunal de Justiça, reformando decisão do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), entendeu pela possibilidade de submissão dos acusados do incêndio da Boate Kiss ao Tribunal do Júri, ante a existência de indícios mínimos da prática de homicídio com dolo eventual.

Na mesma linha, no âmbito dos desdobramentos jurídicos e persecutórios da chamada tragédia de Brumadinho, o Ministério Público de Minas Gerais ofereceu denúncia em face de diversas pessoas físicas, imputando-lhes a prática de homicídio qualificado [2].

Mais recentemente, a morte de um jovem de 27 anos após a submissão a um procedimento denominado peeling de fenol, ministrado por uma profissional sem aparente credenciamento e habilitação para a prática, orientou a Polícia Civil a promover o indiciamento da autora por homicídio com dolo eventual.

Fácil verificar, portanto, que, malgrado a distinção entre dolo eventual e culpa consciente seja já antiga no Direito, seus reflexos, discussões e limites ainda persistem.

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O objetivo das linhas a seguir é, sem se imiscuir no acerto ou desacerto de cada uma das tipificações propostas nos três casos acima narrados, revistar os conceitos e teorias que buscam distinguir a culpa consciente e o dolo eventual, bem como avaliar uma orientação dos tribunais superiores numa ou noutra direção, verificando a existência de segurança jurídica para o tratamento dessa matéria.

Breve introdução

Parece tranquilo na doutrina o ponto comum entre o dolo eventual e a culpa consciente. Em ambos os institutos há uma previsão objetiva do resultado pelo agente. Segundo a dicção do artigo 18, inciso I, do Código Penal, diz-se o crime doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

O cerne de toda controvérsia, portanto, reside na atribuição de significado à expressão “assumiu o risco de produzi-lo’’. Para buscar diferenciar uma categoria de outra, há dois grupos de teorias desenvolvidas pela doutrina (nacional e estrangeira): as teorias volitivas e as teorias cognitivas.

Teorias volitivas

As teorias da vontade podem ser desdobradas em quatro categorias, cujo traço distintivo é a postura do agente diante do resultado previsto concretamente. A propósito:

a) Teoria da vontade, segundo a qual dolo é a vontade de praticar uma ação consciente, um fato que se sabe contrário à lei. Exige, para sua configuração, que quem realiza a ação deve ter consciência de sua significação, estando disposto a produzir o resultado.

b) Teoria da representação, segundo a qual o dolo é a vontade de praticar a conduta, prevendo o agente a possibilidade de o resultado ocorrer. É suficiente que o resultado seja previsto pelo sujeito, mesmo que não o deseje.

c) Teoria do assentimento (ou do consentimento), segundo a qual basta para o dolo a previsão ou consciência do resultado, não exigindo que o sujeito queira produzi-lo. É suficiente o assentimento do agente ao resultado. O Brasil adotou, no artigo 18, I, do Código Penal, a teoria da vontade (para que exista dolo é preciso a consciência e vontade de produzir o resultado — dolo direto) e a teoria do assentimento (existe dolo também quando o agente aceita o risco de produzir o resultado — dolo eventual) [3].

A teoria do consentimento defende que haverá dolo eventual quando o agente, prevendo concretamente o resultado, com ele consente ou o aprova. De plano, já se identifica um certo exagero, na medida em que exigir um consentimento ou aprovação com o resultado esperado muito assemelha o dolo eventual do chamado dolo direto.

Já a teoria da indiferença advoga que agirá com dolo eventual o agente que, prevendo o resultado, avança na realização da conduta criadora do risco desaprovado, sendo indiferente ao seu desfecho.

Há, ainda, que se destacar a existência das chamadas teoria da não comprovada vontade de evitação do resultado. Tal corrente teórica se vale de um dado concreto e objetivamente apreciável, consistente no exame do acionamento de contrafatores pelo agente para evitar a produção do resultado.

Essa ideia, embora pareça fornecer um referencial mais seguro, é alvo de crítica, especialmente em razão de que, nem sempre o sujeito ativo aciona medidas de defesa, justamente por supor que o resultado, embora previsto como possível, não irá ocorrer.

Por fim, existem as teorias ecléticas, também conhecida como “teoria do levar a sério”.

A respeito dessa corrente, defende-se que não é necessário que o sujeito tenha indiferença em relação ao resultado para que haja dolo eventual. Basta, para tanto, que o sujeito, diante de uma elevada probabilidade desse resultado ocorrer, conforme-se com isso e prossiga com a conduta perigosa.

Teorias da representação

Já as teorias da representação (também chamadas de teorias intelectivas), buscam analisar sob o prisma do grau de conhecimento do agente a respeito da probabilidade da causação do resultado. Trata-se do entendimento de vontade em sentido atributivo-normativo, não em sentido psicológico.

Pela teoria da possibilidade, defende-se que, se o sujeito conhece a mera possibilidade de o resultado acontecer, haverá dolo eventual. Isso, porém, oblitera completamente a culpa consciente do ordenamento jurídico e parece não estar em conformidade com nossa legislação positiva.

Já a teoria da probabilidade, segue na linha de que haverá dolo eventual sempre que houver um conhecimento, por parte do agente, da existência de um perigo qualificado para o bem jurídico.

Nessa diretriz, se for viável vislumbrar um risco notoriamente considerável para o bem jurídico, aliado ao conhecimento do sujeito a respeito desse perigo, haverá dolo eventual. Assim, essa teoria se funda na exclusividade de um elemento cognitivo (conhecimento da situação especialmente grave de perigo), não necessitando de nenhum dado volitivo.

O efeito prático dessa teoria decorrente é a transfiguração da culpa grave (identificada em graves violações aos deveres objetivos de cuidado) em dolo eventual.

Já a teoria do perigo desprotegido defende que sejam estabelecidos graus de perigo, de forma escalonada, para aferir mais segurança na avaliação.

Tal linha teórica defende que, caso haja um perigo desprotegido, haverá dolo eventual. O perigo é desprotegido quando o resultado é uma consequência de meros fatores aleatórios de sorte ou azar. Não há, pois, domínio sobre a ocorrência do resultado.

Havendo uma viabilidade de controle desse perigo, o caso deverá ser tratado como culpa consciente.

Instabilidade jurisprudencial

Feito esse brevíssimo resumo a respeito das teorias cogitadas numa ou noutra direção, resta analisar a orientação majoritária do Superior Tribunal de Justiça, contrapondo-os com o julgamento do Recurso Especial nº 1.790.039.

Numa breve pesquisa, vislumbra-se que, mesmo sem adotar expressamente uma corrente, o STJ parece fixar, principalmente em homicídios ocorridos no trânsito, uma orientação no sentido de adotar a teoria volitiva da indiferença, conforme se percebe da leitura da ementa a seguir:

“O elemento psíquico do agente é extraído dos elementos e das circunstâncias do fato externo. Não há como afastar o decisum que reconheceu o dolo eventual em crime de homicídio na direção de veículo automotor, de forma fundamentada e com base nas provas dos autos, ao apontar sinais concretos do agir doloso, a saber, a ingestão de álcool, o excesso de velocidade e a indiferença do recorrente ante o resultado danoso. (…)”

Já no julgamento do Recurso Especial nº 1.790.039, envolvendo a tragédia da Boate Kiss, o voto do ministro Rogério Schietti Cruz [4], embora faça alusão aos precedentes envolvendo a teoria volitiva da indiferença, ressalta a dificuldade para a aferição desse estado anímico em cada caso, mencionando que essa análise deve ser desenvolvida à luz do risco gerado para cada bem jurídico ou incremento desse risco pelos agentes.

Disse sua excelência na ocasião:

“(…)

Como regra, nas situações em que o agente descumpre regras de conduta e é uma das pessoas que podem ser vitimadas pelo fato natural causado por seu agir, a tendência natural é concluir pela mera ausência do dever de cuidado objetivo, elemento caracterizador da culpa (stricto sensu), sob uma de suas três possíveis modalidades, a imprudência (falta de cautela e zelo na conduta), a negligência (desinteresse, descuido, desatenção no agir) e a imperícia (inabilidade, prática ou teórica, para o agir).

Nem sempre, porém, essa falta de observância de certos cuidados configura tão somente uma conduta culposa. Há situações em que, claramente, o comportamento contrário ao Direito traduz, em verdade, uma tácita anuência a um resultado não desejado, mas supostamente previsto. Exemplos de dolo eventual mais pungentes e mais claramente perceptíveis podem ser mencionados, como a ‘brincadeira’ conhecida como roleta-russa, em que há quase percepção de que acontecerá um resultado danoso, e acaba o agente anuindo a ele. Em situações de crime no tráfico viário, pode-se exemplificar o dolo eventual como presente nos casos de ‘racha’, mormente quando a competição é assistida por populares, a sugerir um risco calculado e eventualmente assumido pelos competidores (que preveem e assumem o risco de que um pequeno acidente pode causar a morte dos circunstantes).

Parece haver concordância entre os doutrinadores pátrios de que o nosso Código Penal se filiou, de maneira geral, à teoria finalista da ação, na qual o dolo e a culpa traduzem o elemento subjetivo do tipo. E, quanto ao dolo, há também certo consenso de que o art. 18, I, do CP – que dispõe ser doloso o crime quando o agente, com sua atuação, quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

Desse modo, para a caracterização do dolo eventual, não se exige uma vontade inquestionável do agente, tal qual no dolo direto: bastam a anuência e a ratificação subjetivas, situadas na esfera volitiva. Em singela lição, Luiz Vicente Cernicchiaro obtemperou: ‘O agente tem previsão do resultado, todavia, sem o desejar, a ele é indiferente, arrostando, sem a cautela devida, a ocorrência do evento’ (RHC nº 6.368/SP, 6a T., DJ 22/9/1997, grifei).

Mas como identificar esse elemento psíquico que configura o dolo eventual do agente? Eis a dificuldade de se concluir acerca da previsão e do consentimento do agente quanto ao resultado. E daí o questionamento direcionado a este caso: como o intérprete e aplicador do direito comprovará, de forma motivada, o estado anímico do sujeito que provoca centenas de homicídios, consumados e tentados, como na espécie, sem que haja confissão válida de sua parte?

Na clássica lição de Nelson Hungria, para reconhecer-se o ânimo de matar, ‘Desde que não é possível pesquisá-lo no foro íntimo do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O fim do agente se traduz, de regra, no seu ato’ (Comentários ao Código Penal. v. 49, nº 9. Rio de Janeiro: Forense, 1955, destaquei). Assim, somente com a análise dos dados da realidade de maneira global e dos indicadores objetivos apurados no inquérito e no curso do processo, será possível aferir, com alguma segurança, o elemento subjetivo do agente.”

Já o voto da ministra Laurita Vaz menciona que “sobre o dolo eventual, cumpre destacar que as condições da casa noturna e as características do próprio evento eram passíveis de aumentar consideravelmente o risco à vista de qualquer incidente” [5].

Segurança jurídica mínima

Bem se vê, portanto que, sem buscar um overruling da orientação do Superior Tribunal de Justiça, as passagens do voto condutor do aresto, assim como dos que o secundaram, encaminharam, nesse caso específico, a análise do dolo para um sentido atributivo-normativo (não psicológico), aferindo-se as circunstâncias objetivas de violações objetivas de cuidado e o grau de criação do risco desaprovado para o bem jurídico, muito se avizinhando às teorias da representação.

É certo que a conclusão dos elementos do dolo é extraída a partir de dados objetivos externados em cada caso concreto, ante a inviabilidade de penetrar no estado anímico do agente.

Contudo, é preciso que o tribunal estabeleça uma distinção clara a respeito da corrente que adota para a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, já que isso representa a adoção de requisitos distintos para a própria tipicidade da conduta.

Se for adotada a teoria volitiva da indiferença (como parece ser predominante nos julgados da corte), os elementos de autoria para a afirmar a tipicidade devem apontar que o agente, prevendo o resultado, estava completamente indiferente à realização da materialização do risco ao bem jurídico que sua conduta causasse.

Já se for adotada alguma teoria da representação, bastará a demonstração do mero conhecimento do agente a respeito da criação da situação de um risco desaprovado, não mais se perquirindo a respeito de sua postura psicológica quanto ao desfecho previsto (indiferença ou assentimento, por exemplo).

Essa insegurança deve ser freada principalmente para estabelecer uma parametrização para os casos de tragédias de grande repercussão (como o incêndio da Boate Kiss ou Brumadinho), hipóteses nos quais as regras de experiência indicam não ser possível cogitar de uma indiferença ou assentimento dos agentes com o resultado.

Com isso não se quer afirmar o acerto ou desacerto do reconhecimento do dolo eventual nos casos em referência.

Quer-se, apenas, alertar a necessidade urgente de que o Superior Tribunal de Justiça consagre uma segurança jurídica mínima para o tratamento distintivo entre dolo eventual e culpa consciente, evitando-se tipificações casuísticas a depender da repercussão social do fato e do resultado.

 


[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2019/Denunciados-por-mortes-em-incendio-na-boate-Kiss-vao-a-juri-popular.aspx

[2] https://www.mpmg.mp.br/portal/menu/comunicacao/noticias/denuncia-oferecida-pelo-mpmg-contra-16-pessoas-pelos-crimes-praticados-em-brumadinho-e-recebida-pela-justica.shtml

[3] ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 112-113

[4] https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/REsp%201790039%20-%20Voto%20Relator%20Rogerio%20Schietti.pdf

[5] https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/REsp%201790039%20-%20Voto%20Laurita%20Vaz.pdf

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