Opinião

ICMS na transferência entre estabelecimentos de mesmo contribuinte: contextualização

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25 de janeiro de 2024, 6h08

O ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação) é indiscutivelmente um tributo com muitos nuances complexos, os quais inclusive culminaram com sua alteração constitucional (reforma tributária — Emenda Constitucional nº 132/2023). Contudo, as implicações deste tributo estadual continuam a permear a rotina dos contribuintes, inclusive nas operações de transferência (interna e interestadual) entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Inicialmente, se faz necessário mencionar que o tema não é novo, muito pelo contrário. O Superior Tribunal de Justiça editou a súmula nº 166 em 14/08/1996, a qual indica que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.

As discussões acerca do tema continuaram e ensejaram nas análises pelo Supremo Tribunal Federal, instância máxima no poder judiciário. Em 2023, por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49, a corte declarou a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Kandir (artigo 11, parágrafo 3º, inciso II, da Lei Complementar nº 87/1996), que possibilitava a cobrança do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica. Contudo, o referido entendimento somente seria aplicável (em razão da modulação) a partir do exercício financeiro de 2024.

Nessa toada, primeiro ponto a se considerar foram os efeitos temporais visto que com a aplicação da modulação ao julgamento, a eficácia do entendimento da corte suprema seria apenas no ano de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais que estavam pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento do acórdão que analisou o mérito do tema (4/5/2021).

O STF determinou, ainda, que exaurido o prazo sem que os estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito de os sujeitos passivos transferirem tais crédito, ponto de extrema relevância visto o princípio constitucional da não cumulatividade, aplicável de forma mandatória ao ICMS.

Nessa toada, fora sancionada a Lei Complementar nº204 em 28 de dezembro de 2023, a qual altera a legislação do ICMS, nos seguintes termos:

Art. 12.

I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte;

  • Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas hipóteses de transferências interestaduais em que os créditos serão assegurados:

I – pela unidade federada de destino, por meio de transferência de crédito, limitados aos percentuais estabelecidos nos termos do inciso IV do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada;

II – pela unidade federada de origem, em caso de diferença positiva entre os créditos pertinentes às operações e prestações anteriores e o transferido na forma do inciso I deste parágrafo. (g.n.)

Pois bem, nítida a aplicação do entendimento jurisprudencial acerca da não incidência do ICMS no mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, ou seja, apenas a ratificação do que era considerado e aplicável a longa data. Todavia, em razão da posição contrária dos estados, com o advento da alteração por meio da lei complementar acima mencionada, se internaliza ao ordenamento legislativo tal preceito.

Ocorre que deve ocorrer ainda a convergência desse entendimento com a não cumulatividade, visto que eventual aplicação de estorno ao contribuinte (remetente) ensejaria em um aumento do custo e, ato correlato, ao desrespeito e não aplicação do princípio acima mencionado. Entendimento outrora aplicado pelos estados e diametralmente refutado pelos contribuintes.

Inclusive, cabe indicar, que as decisões judiciais já determinavam a manutenção dos créditos de ICMS nos termos do artigo 155, parágrafo II, inciso I. Em sua literalidade:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:  

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;   

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:     

I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; (g.n.)

Desta feita, a principal análise e ponderações se referem ao formato para se aplicar a não cumulatividade nas situações de transferência entre estabelecimento do mesmo contribuinte, tendo por base que as aquisições podem ocorrer em um estado e a venda por outro, situação que impacta as competências estaduais, assim como cenários logísticos e de precificação dos bens e mercadorias.

No intuito de regular a obrigatoriedade da transferência de crédito do ICMS nas operações acima detalhadas, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) celebrou o Convênio ICMS nº 178/2023, o qual determina alguns pontos de extrema relevância conforme detalhamento abaixo:

  1. obrigatória a apropriação de crédito do ICMS pelo estabelecimento destinatário na remessa interestadual de bens e mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade;
  2. O ICMS a ser transferido deve ser lançado a débito na escrituração do estabelecimento remetente e a crédito no estabelecimento destinatário;
  3. os valores e informações devem estar consignados em nota fiscal;
  4. o ICMS a ser transferido deve se ater às alíquotas interestaduais do ICMS, nos termos da legislação vigente;
  5. na hipótese de haver saldo credor remanescente de ICMS no estabelecimento remetente, este será apropriado pelo contribuinte junto à unidade federada de origem, observado o disposto na sua legislação interna;

Outro ponto de extrema relevância contido no referido convênio se refere a menção expressa que a utilização da sistemática acima mencionada não implicará no cancelamento ou modificação dos benefícios fiscais concedidos pela unidade federada de origem.

O referido convênio produz efeitos desde 1º de janeiro de 2024, logo, os estados devem se manifestar com a “internalização” aos preceitos de cada competência.

Cabe indicar, por oportuno e de forma exemplificativa, que o estado de São Paulo se manifestou por meio do Decreto nº 68.243/2023, o qual aplica taxativamente o Convênio nº178/2023, conforme se verifica do artigo 1º, a saber:

Artigo 1º – Na remessa de bens e mercadorias entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo titular, a transferência do crédito do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviço de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS será: 

I – obrigatória nas remessas interestaduais, devendo ser observado o disposto no Convênio ICMS 178/23, de 1º de dezembro de 2023; 

II – opcional nas remessas internas, observando-se o disposto no artigo 2º deste decreto. 

Sendo assim, cabe aos contribuintes avaliarem os novos posicionamentos de cada estado em que praticam as operações passíveis de incidência do ICMS. De qualquer forma, a Confaz se manifestou por meio do Convênio nº 228/2023 acerca dos regulamentação interna até implementação dos novos procedimentos.

Importante mencionar, por derradeiro, que o Convênio ICMS nº178/2023 não trata (e nem poderia) acerca de incidência tributária, matéria restrita à Lei Complementar nº 204 de 2023 (acima mencionada). Sendo assim, a manifestação do Confaz se refere à aplicabilidade e operacionalização da não cumulatividade, princípio que deve ser observado na sistemática do ICMS.

Autores

  • é advogado, professor, sócio do Glucksmann Associados, mestrando em Direito Tributário na Fundação de Getúlio Vargas (FGV-Direito), especialista em Direito Tributário e MBA/USP-Fipe em Economia de Empresas.

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