Opinião

Corte Interamericana impõe aos Estados o dever de consultar as comunidades indígenas

Autor

  • Yara Singulano

    é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

25 de janeiro de 2024, 21h14

A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu duas decisões paradigmáticas a respeito dos direitos das populações indígenas em 2023: em maio, a sentença do “Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs Guatemala”[1]; e em agosto, a decisão do “Caso Comunidad Garífuna de San Juan y sus miembros Vs. Honduras”[2].

Em ambos, os juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch (brasileiro que atualmente é vice-presidente da Corte IDH) apresentaram, em conjunto, votos concorrentes em que detalham a posição em relação ao direito à consulta e à participação daquelas comunidades.

No primeiro processo, o povo indígena de origem maia pleiteava proteção ao direito de propriedade das terras tradicionalmente ocupadas. Após décadas lutando pela titulação do território, em 2019 o Fundo Nacional de Terras da Guatemala adjudicou a área identificada como “Lote 9” a pessoas da comunidade.  Não obstante, descobriu-se que a área concedida aos indígenas está sobreposta a outra, pertencente a uma fazenda onde é desenvolvido um projeto de mineração. O próprio Estado indicou que a sobreposição cadastral se refere a um conflito de interesses entre indígenas e não indígenas, e que abrange também outros lotes.

Na sentença, a corte declarou a responsabilidade internacional da Guatemala pela falta de adequada titulação, delimitação e demarcação do território. Entendeu que o Estado não realizou consulta prévia e adequada à comunidade em relação ao projeto de mineração que afetou o seu território; e estabeleceu que diversos atos de violência, ameaças e assédio causados pelo conflito territorial afetaram a vida comunitária e a integridade moral de todos os membros da comunidade tradicional.

O voto concorrente dos juízes Mac-Gregor Poisot e Mudrovitsch traz importantes considerações sobre a peculiar noção de território para as culturas indígenas e sua implicação no direito à consulta:

O litígio internacional sobre os direitos dos povos indígenas coloca à Corte Interamericana o desafio hermenêutico de traduzir, através do marco jurídico da Convenção, elementos de organização social e identidade cultural que são específicos das comunidades indígenas e que muitas vezes não correspondem aos conceitos tradicionais de propriedade, terra, vida ou trabalho nela previstos. Neste sentido, os direitos territoriais destes grupos não podem ser reduzidos a um aspecto meramente econômico ou patrimonial. Pelo contrário, o conceito de “território” tem um significado particular e muito mais amplo do ponto de vista da visão de mundo dos povos tradicionais, agregando não só a proteção da propriedade da terra, mas também a proteção da identidade, da cultura e da sua relação com o ambiente. Por estas razões, dada a estreita ligação que os povos originários têm com o seu território, a obrigação de consulta, que cabe ao Estado, assume especial relevância como mecanismo reforçado para a proteção dos direitos territoriais protegidos pelo Pacto de San Jose.[3]

Já no caso que envolve o povo garífuna, tem-se que na década de 1970 o Estado hondurenho começou a outorgar títulos de propriedades a membros da comunidade de San Juan. Todavia, o grupo, que tem caráter rural e vive da agropecuária, da pesca artesanal e do turismo, pleiteava uma área significativamente maior do que a reconhecida pelo governo, bem como questionava a outorga de títulos a terceiros para construção de hotéis, casas particulares e de um parque nacional na área.

Em sua decisão, a Corte IDH declarou Honduras responsável pela violação do direito à propriedade coletiva, da obrigação de garantir a participação nos assuntos públicos e ao direito de acesso à informação pública. A corte também considerou que o Estado foi responsável pela violação das garantias judiciais e pela omissão em investigar fatos informados às autoridades por membros da comunidade e pela violação da sua integridade pessoal, devido ao clima de ameaças e de violência contra o povo garífuna.

A proteção à propriedade comunitária de povos indígenas não é  novidade na jurisprudência da corte. Podemos citar, por exemplo, o “Caso Povo Indígena Xucuru vs Brasil”, julgado em 2018 [4].

Os dois casos julgados em 2023, no entanto, trazem uma nova perspectiva, mais protetiva, sobre o direito à consulta e à participação das populações indígenas em todo projeto ou medida que possa afetar seus direitos.

No processo da comunidade indígena contra a Guatemala, a corte afirmou que o direito à propriedade coletiva não é absoluto —, mas que, para limitá-lo ou restringi-lo, o Estado precisa respeitar determinadas diretrizes, que devem ser: estabelecidas por lei; necessárias; proporcionais; e destinadas a alcançar um objetivo considerado legítimo em uma sociedade democrática [5].

Nesse sentido, a Corte IDH entendeu que é obrigação estatal assegurar a participação efetiva da população indígena nos processos decisórios sobre questões que envolvam seus direitos, como a instalação de empreendimentos minerários ou turísticos no território tradicionalmente ocupado.

Já no processo da comunidade garífuna, a decisão assevera que a consulta deve ser prévia, livre e informada [6]. Em outras palavras, a população deve ser consultada antes que o Estado promova qualquer interferência em seus direitos fundamentais. A manifestação precisa ser livre de coerção ou de qualquer tipo de interferência, e seus membros devem ter acesso a informações claras e precisas sobre as medidas propostas.

A sentença ponderou que o direito de consulta é vinculado ao direito de acesso à informação, garantido pelo artigo 13 da CADH, que fomenta a transparência das atividades estatais e a responsabilidade dos agentes públicos.

No caso, para fundamentar a tese de que o direito à consulta dos povos originários é um direito autônomo que decorre diretamente da própria Convenção Americana, os magistrados Mac-Gregor Poisot e Mudrovitsch resgataram a jurisprudência da corte e o artigo 26 da CADH, que prevê o desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais [7].

O voto lembra que a corte declarou, pela primeira vez, a responsabilidade de um Estado pela violação do direito de acesso à informação no âmbito dos processos de consulta, no “Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs Guatemala”, em razão da insuficiência de informações e da inacessibilidade linguística dos estudos técnicos sobre o empreendimento minerário [8]. E conclui:

A interpretação evolutiva do direito à consulta prévia realizada pela Corte Interamericana levou ao entendimento atual de considerá-lo derivado não só do direito à propriedade comunal (artigo 21), mas também dos direitos de participação (artigo 23) e do acesso à informação (artigo 13).

Conforme recordado nesta decisão, a consulta deve ser realizada antecipadamente, de boa fé, com o objetivo de chegar a um acordo adequado, acessível e informado. É dever dos Estados – e não dos povos indígenas – demonstrar em cada caso se estas dimensões do direito à consulta foram efetivamente garantidas, de tal forma que o descumprimento da obrigação de consultar, ou sua realização sem observar suas características essenciais, compromete a responsabilidade estatal [9].

Por todo o exposto, os casos “Comunidad Garífuna de San Juan y sus miembros Vs. Honduras” e “Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs Guatemala” representam um divisor de águas na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com potencial para incrementar significativamente o nível de proteção às comunidades indígenas.

A partir do entendimento de que o direito à consulta livre, prévia e informada é autônomo e resguardado diretamente pela CADH, há mais um argumento para questionar em sede de controle de convencionalidade, por exemplo, a Lei do Marco Temporal (Lei nº 14.701, de 2023). Conforme apontou o Ministério Público Federal em nota pública, o projeto de lei, não obstante representasse evidente restrição ao exercício e gozo do direito ao território pelas comunidades indígenas brasileiras, foi aprovado sem consulta à população interessada [10].


[1] Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana.  Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_488_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

[2] Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana.   Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_496_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

[3] Voto Concurrente de los Jueces Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot y Rodrigo Mudrovitsch: Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs. Guatemala. P. 03. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_ferrer_mudrovitsch_488_esp.docx. Acesso em: 22 jan. 2024. Tradução livre.

[4] Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana.   Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_346_esp.pdf.  Acesso em: 22 jan. 2024.

[5] Sentença, p. 64. https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_488_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

[6] Sentença, p. 30.  https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_496_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

[7] Voto Razonado de los Jueces  Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot y Rodrigo Mudrovitsch: Caso Comunidad Garífuna de San Juan y Sus Miembros Vs. Honduras. P. 11. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_ferrer_mudrovitsch_496_esp.docx . Acesso em: 22 jan. 2024.

[8] Idem, p. 07.

[9] Idem, p. 14-15. Tradução livre.

[10] Ministério Público Federal: Nota pública. Disponível em:  https://www.mpf.mp.br/pgr/arquivos/2023/notapl2903.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

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  • é advogada do escritório Naves Fleury, mestra em Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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