Opinião

Backlash e tensões entre Legislativo e Judiciário no marco temporal das terras indígenas

Autor

  • Letícia de Mello

    é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) especialista em Direito e em Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) especializanda em Direito Penal Económico pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (IDPEE) em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) professora advogada e associada à The European Law Students Association (Elsa) e ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e à Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

4 de janeiro de 2024, 20h38

Quinta-feira, 28 de dezembro de 2023, últimos dias do ano. Uma das primeiras notícias veiculada pela JP News é a de que o Congresso promulgou o marco temporal e a desoneração [1]. Atenhamo-nos ao primeiro caso.

É de notório conhecimento, até porque amplamente debatido e midiatizado, que o Supremo Tribunal Federal, no ano de 2023, precisamente há cerca de dois meses, proferiu decisão no âmbito do RE nº 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031 — definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional).

Após amplo debate e oitiva de inúmeros setores, a corte, por 9 votos a 2, rejeitou a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, eis que se assentou o entendimento de que a data da promulgação da Constituição de 1988 não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades.

Contudo, antes do julgamento, em meados deste ano, veiculava-se, no âmbito do Senado as expectativas dos congressistas de que o STF paralisasse o julgamento sobre o tema, a fim de permitir que a discussão se desse no espaço legitimo à formação de consensos [2].

Entretanto, contrariando tais expectativas, o pronunciamento judicial antecedeu a conversão dos Projetos de Lei nº 490/2007, aprovado na Câmara dos Deputados em 30 de maio de 2023, e nº 2.903/2023, na Lei 14.701, de 2023, promulgada com vetos parciais (estes majoritariamente rejeitados pelo derrubados pelo Congresso — vide Veto 30/2023 [3]), conforme se depreende da MSG 536, de 2023[4].

Mais do que marcar a baixa adesão aos vetos do presidente da República, isso reflete a dificuldade na articulação política em relação ao tema, acirrando-se o embate entre os poderes Legislativo e Judiciário, eis que a novel legislação já nasce com uma pecha, eis que o marco temporal já fora julgado inconstitucional pela corte brasileira.

Aliás, uma das razões presidenciais à imposição dos vetos foi, além da contrariedade ao interesse público, a patente inconstitucionalidade dos dispositivos que fixam o referido marco temporal. Um excerto do texto que justifica os vetos é elucidativo:

Em que pese a boa intenção do legislador, este dispositivo, como já sinalizado quando da análise do veto do art. 4º, incorre em vício de inconstitucionalidade e contraria o interesse público ao usurpar direitos originários previstos no caput do art. 231 da Constituição Federal, e já foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal em decisão  proferida em 27 de setembro de 2023, que estabeleceu a tese de repercussão geral no Recurso Extraordinário (RE) nº 1017365, decisão essa que rejeitou a possibilidade de se adotar a data da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988) como marco temporal para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas [5].

A partir dessas considerações, cabe esclarecer que o presente artigo de opinião não tem por escopo analisar e firmar uma posição acerca do mérito do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, e tampouco da Lei nº 14.701, de 2023, mas sim problematizar o visível tensionamento entre os poderes e, à luz da literatura (isso também é necessário! [6]), refletir sobre a legitimidade para a última palavra, considerando-se que a decisão do STF não vincula o Legislativo e que o Supremo Tribunal Federal, provocado, sempre poderá analisar a (in)constitucionalidade da legislação gestada pelo legislador e promulgada pelo Executivo.

Inicialmente, cumpre rememorar que essa tensão entre os poderes deu azo à iniciativa, pelo Poder Legislativo, de inúmeras propostas de emenda à Constituição — todas tendentes à limitação do Poder Judiciário, nomeadamente do Supremo.

A tensão institucional entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário não é uma novidade, senão que remonta ao final dos anos 1990, em que o STF, outrora de perfil mais tímido e conservador — e mesmo pelo seu distinto esboço nas Constituições anteriores, em que seu âmbito de atuação era significativamente diminuto —, passou a ostentar uma atuação (muito) mais progressista.

Os fatores que contribuem à referida mudança paradigmática são muitos. A Constituição de 1988, mais abrangente, perfectibiliza-se num documento prolixo, de perfil programático. E esse perfil dirigente da Carta fez com que novos mecanismos instrumentais fossem imprescindíveis à consecução dos ideais concretistas encampados pelo constituinte originário.

Anote-se a isso o avançar de técnicas decisórias que, afeitas às novas tipologias, expandiram a atuação da Corte — nomeadamente as decisões construtivas criativas [7].

Nesse sentido, rompe-se o perfil de um “legislador negativo” e se inaugura uma fase em que o Supremo Tribunal Federal, através de decisões às vezes polêmicas, passa a assumir um protagonismo sem precedentes no ordenamento jurídico brasileiro, desafiando, por vezes, o princípio da separação dos poderes.

Nos últimos anos, inúmeras críticas emergiram a partir da atuação do Supremo Tribunal Federal, sobretudo em casos mais recentes, como o da descriminalização do porte de drogas, o marco temporal e a legalização do aborto até a 12ª semana de gravidez — este último ainda não definido, pois somente a ministra Rosa Weber proferiu o seu voto até o momento.

Contudo, deve-se recordar de outras decisões que foram muito polêmicas, como a criminalização do não recolhimento de ICMS próprio declarado e a celeuma acerca da execução provisória da pena, embates “pacificados” no ano de 2019.

Todos esses episódios foram contribuindo para o aumento da reprovabilidade da atuação da corte, não apenas perante setores da sociedade, mas também frente aos demais poderes, nomeadamente o Legislativo [8].

Em anos pretéritos outros, o Congresso laborou na busca de instrumentos legislativos para frear a atuação demasiado ativista do Supremo.

Dentre outras iniciativas, no ano de 2011, a PEC nº 33, proposta pelo deputado Nazareno Fonteles, do PT-PI, tinha por escopo alterar a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis, condicionar o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo STF à aprovação pelo Poder Legislativo e submeter ao Congresso a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição. A PEC fora arquivada em 31/01/2015, na forma do artigo 105, do RICD.

Outra PEC que chamou a atenção, ainda que também tenha sido arquivada no ano de 2022, fora a de nº 35, que tramitou no Senado, por iniciativa do então senador Lasier Martins, do PDT-RS, com o substitutivo de autoria do senador Antônio Anastasia, do PSDB-MG. Em essência, a proposta dizia com a alteração do artigo 101 da Constituição para determinar que os ministros do Supremo fossem escolhidos a partir de lista tríplice elaborada pelos presidentes dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União, pelo procurador-geral da República e pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Estabelecia, ainda, que o mandato fosse periódico (de dez anos), seguido por um período de inelegibilidade (cinco anos) após o término do mandato .

Disso se infere, portanto, que a PEC nº 50, proposta há poucos dias, e que tramita na Câmara dos Deputados, por iniciativa do deputado Domingos Sávio, do PL-MG, não é uma tentativa inédita de “impor limites” ao Supremo Tribunal Federal, senão que é fruto de uma longa e exaustiva “batalha” entre essas Instituições.

Contudo, diferentemente das propostas anteriores, que se mostravam razoáveis, a atual proposta parece destoar um pouco de uma solução juridicamente satisfatória aos problemas que emergem da alegada sobreposição do Supremo aos demais poderes — se é que existe uma solução adequada considerando o desenho institucional projetado pelo constituinte originário.

A referida PEC propõe, em linhas gerais, a alteração do artigo 49, da Constituição, para estabelecer competência ao Congresso para sustar, por maioria qualificada dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado, as decisões do Supremo Tribunal Federal transitadas em julgado que extrapolem os limites constitucionais. Nas razões justificativas, aduzem os autores da proposta que:

O estado democrático de direito se sustenta no princípio da independência e harmonia entre os poderes. Para que este princípio basilar seja assegurado é fundamental que exista respeito equilíbrio entre os poderes, isto se dá pelo sistema de pesos e contrapesos, ou seja, nenhum poder é soberano sobre o outro. Porém não há que se falar em um “Poder Supremo” para o judiciário, mas antes em dever Supremo de assegurar o respeito às leis elaboradas por aqueles que detém o poder que emana do povo, “o poder de legislar em nome do povo”.  Assim, se o Supremo Tribunal Federal, de forma controversa decide e julga contrariando a própria Constituição e, portanto, a ampla maioria dos representantes do povo, o estado democrático de direito é colocado em risco.  Desta forma, é fundamental que haja recurso capaz de rever a decisão de afronta a vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso [9]

Em que pese o intento seja justo e justificável e reforce a aversão à sobreposição institucional, de todo indesejável nas democracias “saudáveis”, tem-se que o proposto no bojo da PEC nº 50/2023, não parece o mais adequado. Explica-se.

É de notório conhecimento que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal não vinculam o legislador que, reputando razoável, poderá propor uma nova legislação com o inteiro teor — assumindo apenas o ônus de minuciar a sua decisão política — da outrora declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Também é verdade que eventuais desacordos entre as instituições são e estão sendo resolvidos por meio de efeito backlash, como é o caso da reação do Congresso à decisão relativa ao marco temporal a nortear a demarcação das terras indígenas.

Exatamente por isso a alusão ao Mito de Sísifo. Teríamos um eterno “rolar” de leis e decisões sobre e com o mesmo objeto?

É claro, porque supondo-se vinculativa a postura última do Legislativo, estaríamos invertendo os papeis de sobreposição, não? Desta forma, teríamos uma legitimidade democrática porque a última palavra seria a dos representantes do “povo”, privilegiando-se a hegemonia da vontade prevalecente, apenas? A história demonstra, não sem terríveis marcas, que a sobreposição do Poder Legislativo pode culminar numa tirania das maiorias contra as minorias.

São muitos questionamentos para os quais ainda não temos respostas concretas e se tivéssemos, talvez não fossem as mais adequadas, pois não se constroem soluções magicas para impasses que remontam a séculos de discussão. Uma coisa parece mais acertada: não se constrói democracia a partir da outorga de poder absoluto a “A” ou “B”, mas sim a partir de um adequado mecanismo de checks and balances, em que cada um dos atores institucionais cumpre o seu “papel” de forma responsiva.

 


[1] Deve-se atentar ao fato de que a notícia traz, como primeiro alerta, a possível (re)judicialização da matéria.

[2] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/06/01/projeto-do-marco-temporal-das-terras-indigenas-chega-ao-senado. Acesso em: 28 dez. 2023.

[3] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/15969. Acesso em: 28 dez. 2023.

[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 28 dez. 2023.

[5] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-536-23.htm. Acesso em: 28 dez. 2023.

[6] Afinal, como bem lembra Lenio Streck: “Não tenho dúvida de que a literatura pode ensinar muito ao direito. Faltam grandes narrativas no direito. A literatura pode humanizar o direito. Há vários modos de dizer as coisas”. TRECK, Lênio Luiz; TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e literatura: da realidade da ficção a ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 227. Apropriemo-nos, pois, de alguns destes “modos” e tornemos o direito mais   humano.

[7] Aduz-se que tal postura criativa é abertamente defendida pelo Ministro Barroso. : BARROSO, Luís Roberto.; MELLO, Patrícia Perrone Campos. O papel criativo dos tribunais – técnicas de decisão em controle de constitucionalidade. Revista da AJURIS – QUALIS A2, [S. l.], v. 46, n. 146, p. 295–334, 2019. Disponível em: https://revistadaajuris.ajuris.org.br/index.php/REVAJURIS/article/view/1049. Acesso em: 30 dez. 2023.

[8] Inúmeras são as notícias veiculadas diariamente nesse sentido. V .g.: “O senador Plínio Valério (PSDB-AM) criticou em pronunciamento no Plenário nesta terça-feira (13) o que considera ser ativismo judicial dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele explicou que há uma constante interferência daquela Corte na autonomia do Poder Legislativo ao decidir sobre matérias que são da competência do Congresso Nacional”. Fonte: Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/09/13/plinio-critica-ativismo-judicial-do-stf-nas-atribuicoes-do-congresso-nacional Acesso em: 01 jan. 2024.

[9] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2391567. Acesso em: 30 dez. 2023.

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